11.12.16
O Caso Renan Calheiros: Segurança para, pelos menos, sabermos quem comanda nossos Poderes
Por Saul Tourinho Leal
Em dezembro de 2008, o STF decidia o “caso Raposa Serra do Sol” (PET 3388) quando, votando a liminar, formou-se um placar de sete votos num sentido. O ministro Marco Aurélio pediu vista. O colega, Carlos Ayres Britto, relator, argumentou que dever-se-ia proclamar o resultado, pois já havia maioria e a questão era delicada. “Excelência, então seria o caso de cassar a vista que pedi do processo. Vossa Excelência propõe a cassação do pedido de vista? Chega a esse ponto, a essa teratologia? Oh, ministro Carlos Ayres Britto”, rebateu o ministro Marco Aurélio. Prevaleceu o pedido de vista.
Oito anos depois, o ministro Marco Aurélio determinou o afastamento do presidente do Congresso Nacional, apreciando, sozinho, uma antiga cautelar anteriormente prejudicada na ADPF 402, ajuizada pela Rede, mesmo estando o julgamento paralisado por um pedido de vista do colega, ministro Dias Toffoli. A ADPF aparentemente contava com seis votos favoráveis a que réus não presidam nem a Câmara dos Deputados nem o Senado, pois integram a linha sucessória da presidência da República.
Um réu pode ser presidente da República sem que a ele se aplique qualquer suspensão de mandato, seja por ter se tornado réu antes de sua diplomação, seja porque, depois de diplomado, se tornou réu quanto a um crime comum dissociado das funções presidenciais (art. 86, § 1º, I e § 4º). Hoje, o senador Renan Calheiros é elegível para o cargo de presidente da República. E não pode presidir o Senado porque talvez substitua o presidente num de seus pernoites no exterior?
A ADPF concentra-se nos réus do STF, mas, se potencializarmos o raciocínio, Luiza Erundina (PSOL/SP), condenada numa ação popular, seria “indigna” de presidir a Câmara. O mesmo se diga quanto ao senador Cristovam Buarque (PDT/DF), por uma ação de improbidade. Numa peleja política, o ex-presidente Fernando Henrique tentou, no STF, tornar réu o antecessor Itamar Franco (Inq 2179). Se tivesse conseguido, Itamar seria “indigno” de presidir o Senado? Erundina, Cristovam e o saudoso ex-presidente Itamar Franco são pessoas decentes que gozam de boa reputação em nossa comunidade.
Jornalistas de coragem, artistas criativos, escritores talentosos, cartunistas espirituosos, livres pensadores, líderes sociais, ativistas de direitos humanos…, frequentemente se veem como réus. São, eles, “indignos”? Chega-se a supor que o que o Partido almejava era simplesmente afastar Eduardo Cunha e Renan Calheiros das presidências da Câmara e do Senado, respectivamente. Se era isso, ou os justos pagarão pelos pecadores, ou a Corte terá de dar o dito pelo não dito no futuro.
Voltando à ADPF 402, em agosto, a procuradoria-Geral da República havia opinado pela sua prejudicialidade, por não ter, a inicial, indicado o ato específico violador de preceito fundamental da Constituição. Além disso, como a ação se voltava para o então presidente da Câmara, depois afastado, alegou-se não haver “mais interesse de agir”, devendo, o caso, “ser extinto sem resolução de mérito”. Em novembro, contudo, num segundo parecer, a PGR defendeu o afastamento. Um dos argumentos foi o de que um réu teria de ter reuniões com advogados e, isso, “tende a perturbar-lhe a mente”. Veio uma ainda mais persuasiva: “Que mensagem e que exemplo esse estado de coisas daria para as crianças…?”. Pois é.
Dia 1º/12, o senador Renan Calheiros tornou-se réu, por 7 x 3, acusado de irregularidades no uso da verba de gabinete (Inq 2593). Mesmo o Senado podendo sustar o andamento da ação (art. 53, § 3º e § 5º, da CF), dia 5/12, às 11h17, o Partido volta-se à ADPF e apresenta novo pedido sustentando que já havia maioria e que o ministro Marco Aurélio deveria retomar, sozinho, o pedido cautelar anteriormente prejudicado. Falou no “grave desencanto e a frustração com as instituições republicanas”. Alegou que “esses são bens e valores de importância transcendental” e invocou o “sentimento constitucional”. Vieram, então, duas afirmações: “Como é altamente improvável que o julgamento da presente ADPF venha a ser finalizado antes do término do mandato do senador Renan Calheiros, que se encerra em 1/2/2017”, não haveria como “aguardar a finalização do mérito da ação”. A ADPF 402 mirava, agora, expressamente, o presidente do Congresso, um chefe de Poder. Foi dito isso no novo pedido, mas o cidadão apontado sequer foi ouvido, como impõe o art. 5º, LV, da Constituição.
No mesmo dia, numa feliz iniciativa do ministro Luís Roberto Barroso, o STF recebeu o filósofo Michael Sandel, professor de Harvard, que falou sobre “Ética Pública e Democracia”. Todos ouvimos dele que o maior escândalo da história dos Estados Unidos foi o Watergate. Fui checar. Em 1974, após o presidente Richard Nixon ter renunciado, o Congresso, incendiado, aprovou uma lei casuística que previa que Nixon não poderia ter acesso imediato aos seus papéis e fitas na Casa Branca. A Suprema Corte foi acionada (Nixon v. Administrator of General Services, 1977). A prudência veio do voto-vencido do juiz Warren Burger: “Considero muito perturbador que os princípios fundamentais do Direito Constitucional estejam subordinados ao que parecem ser as necessidades de uma situação particular. O fato de os momentos de grande angústia nacional dar origem a paixões nos lembra por que os três Poderes foram criados como separados e iguais, cada um destinado a verificar, por sua vez, possíveis excessos de um ou de ambos. (…) Para ‘punir’ uma pessoa, o Congresso – e agora o Tribunal – despedaça o tecido do nosso arcabouço constitucional”. Nos EUA, a prudência num país em choque veio do voto-vencido. Na ADPF 402, o ministro Marco Aurélio, às 15h, determinou, sozinho, que o presidente do Congresso se afaste da presidência, dentre outras razões, por estar “ensejando manifestações de toda ordem”.
Vem da Constituição a composição da Mesa do Congresso sendo, o presidente do Senado, o seu necessário presidente (art. 57, § 5º). A liminar reformou materialmente a Constituição quanto ao que se exige para a formação da Mesa do Senado e, consequentemente, do Congresso. Também repercute na formação dos Conselhos da República e de Defesa Nacional (art. 89 e art. 91), órgãos que contam com a presença do presidente do Senado e que deliberam sobre defesa Nacional, guerra e paz.
Dia seguinte, num manifesto assinado por toda a Mesa, o Senado anunciou que o certo a fazer seria aguardar a manifestação do pleno da Suprema Corte quanto ao seu recurso. O pleno é o órgão competente para apreciar ações contra o presidente do Senado (art. 5º, I e V do RISTF). Julgando o recurso, a liminar foi revertida por 6 x 3.
A democracia não é feita só de representantes do povo. Mas nunca houve uma sem eles. O preâmbulo da Constituição se abre com os “representantes do povo”. São eles que assinam o texto ao final. O art. 1º, parágrafo único, reitera que “todo o poder emana do povo”, sendo exercido, primeiramente, pelos “representantes eleitos”. Esmagar adversários políticos ou líderes indesejados, humilhá-los e persegui-los, é uma deformação da política. Por isso, precisamos da jurisdição constitucional. O STF foi convidado a embarcar numa caçada incompatível com a ADPF, principalmente numa liminar.
No julgamento, a presidente, ministra Cármen Lúcia, falou em pacificação. Permitir que as pessoas possam dormir e acordar sabendo, pelo menos, quem comanda Poderes do país, seria um bom começo. Passa da hora.
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Saul Tourinho Leal é advogado sênior em Brasília e doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP. Foi premiado com a bolsa Vice-Chancellor Fellowship pela Universidade de Pretória, para realizar estudos de pós-doutoramento junto ao ICLA, Institute of Comparative Law in Africa. Saul foi clerk do juiz Edwin Cameron, na Corte Constitucional sul-africana e presidiu o Comitê para Relações com a África do Sul, do Conselho Federal da OAB, que lhe outorgou o Troféu de Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. É tradutor das obras do jurista Albie Sachs, indicado por Nelson Mandela para a Corte Constitucional.
Texto publicado originalmente no site Migalhas, edição 8.12.2016.
Foto: Agência Brasil Fotografias/Flickr.
Único juiz de sua própria autoridade e, como tribunal constitucional, situado fora e acima da tradicional tripartição dos poderes do Estado, por isso mesmo o STF não pode abusar dessa autoridade. Sabe-se, por outro lado, que não é o poder, mas a autoridade que gera a obediência, entendendo-se que a autoridade nasce pelo reconhecimento das virtudes do que manda por aqueles que lhe prestam obediência. A Constituição, também é consabido, além de instituir e manter certa ordem jurídica, institui e preserva/deve preservar a unidade política. Por isso, qualquer decisão que atente contra essa ordem jurídica e essa unidade política, é constitucionalmente inadequada, é funcionalmente “inconstitucional”. Nesse sentido, no “caso Renan”, a decisão do Pleno do STF, como se deduz dos votos majoritários que lhe consubstanciaram, e deste texto de Saul Tourinho Leal, era a que se impunha, a bem da supremacia e da teleologia da nossa Constituição. A Constituição é o estatuto do poder, mas não de qualquer poder, antes, apenas, daquele que tem na juridicidade o seu referente último e a ratio que lhe dá suporte.