4.04.12
O caso Demóstenes Torres e a validade probatória das escutas telefônicas
A pergunta que não quer calar: qual a validade jurídica das escutas telefônicas que teriam flagrado o envolvimento do senador Demóstenes Torres com a exploração ilegal de jogos de azar e outros favores prestados ao empresário Carlinhos Cachoeira? A questão é complexa, tanto no aspecto jurídico, tratando do tema em tese, como no aspecto fático, especificamente no caso Demóstenes. Não abordarei o caso concreto, por vários motivos, dentre eles por não conhecer com profundidade nenhum dos dois inquéritos – Operação Vegas e Operação Monte Carlo. Nem mesmo os folheei. Lançarei abaixo apenas alguns esclarecimentos sobre os contornos jurídicos do tema, sem abordar a aplicação destes ao caso concreto. Aproveito o caso concreto apenas para convidá-los a visitar o tema sob o aspecto constitucional.
É de todos sabido que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (CR, art. 5º, LIII). Ao analisar um caso rumoroso, envolvendo o então senador Aloísio Mercadante, que era acusado de crime eleitoral, o Supremo Tribunal Federal assim definiu a questão acerca do indiciamento de congressistas e a investigação criminal de seus atos:
No exercício de competência penal originária do STF (CF, art. 102, I, “b” c/c Lei nº 8.038/1990, art. 2º e RI/STF, arts. 230 a 234), a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo dominus litis. 11. Segunda Questão de Ordem resolvida no sentido de anular o ato formal de indiciamento promovido pela autoridade policial em face do parlamentar investigado. (Pet 3825 QO, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 10/10/2007, DJe-060, 04-04-2008)
Assim, um congressista, ou qualquer outra autoridade com foro criminal funcional, só pode ser investigada quando o tribunal competente autorizar formalmente. No caso de altas autoridades, não cabe à Polícia o poder de indiciá-los, mas somente aos tribunais. E competirá a um dos membros deste tribunal, como relator, analisar eventuais pedidos de produção de provas que dependam de autorização judicial. Mas, perguntariam, essa situação se aplica apenas no caso do próprio congressista ser um dos indiciados? A Polícia pode não promover o indiciamento do congressista, conduzindo diretamente o inquérito, por si mesma, ou sob a supervisão de um juiz de primeira instância? O procedimento, assim, seria correto, afinal o congressista não foi indiciado? A resposta é negativa a todos os questionamentos.
O STF lançou luzes sobre este ponto ao decidir no famoso precedente do caso Sandro Mabel (STF – Inq 2291 AgR, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2007, DJe-142, 14-11-2007). Neste processo, envolvendo a empresa fabricante dos biscoitos Mabel e supostos crimes tributários praticados na gestão desta, o STF assentou ser irrelevante para instaurar a sua competência que haja pedido formal de indiciamento do congressista. Basta, para deslocar a competência do inquérito ao STF, que haja o indiciamento implícito. Ou seja, caso um inquérito reúna elementos indiciários contra um congressistas, deverá ele, a partir deste momento, tramitar sob a autorização e supervisão do foro funcional competente, independente de se pretender já naquela oportunidade o indiciamento formal deste.
O que isto significa? Tão logo se evidencie a participação de um congressista em atividade criminosa, mesmo que indiciária a coautoria, a investigação criminal deverá ser remetida ao respetivo tribunal, aquele que detenha competência para autorizar o seu indiciamento. Neste caso, se o inquérito já tramitava sob a supervisão de algum juiz de primeira instância, quer porque foi necessário prorrogar o prazo para o seu encerramento, quer porque foi necessária a produção de alguma prova cuja autorização judicial é essencial, deverá a autoridade policial remeter os autos à este para que decline imediatamente da competência ao tribunal correspondente, no caso o STF quando se tratar de congressistas. Somente se recusado o indiciamento da autoridade detentora de prerrogativa funcional, voltará o inquérito a tramitar diretamente perante a Polícia, sob a supervisão, quando necessária, de juízo de primeira instância.
Outra dúvida que se coloca é se seria possível, então, mesmo que apurados elementos indiciários contra um congressista, que a Polícia optasse por investigar apenas outros envolvidos em crimes conexos? A resposta também é negativa. A presença de autoridade com foro funcional faz atrair a competência em relação a todos os indiciados, somente neste foro deve ser decidido acerca de eventual desmembramento do inquérito, em razão do princípio da unicidade da persecução penal. O STF já resolveu essa controvérsia expressamente:
Agravo regimental. Reclamação. Desmembramento de representação criminal. Envolvimento de parlamentar federal. Desmembramento ordenado perante o primeiro grau de jurisdição. Usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal. Reclamação procedente. Anulação dos atos decisórios. 1. Até que esta Suprema Corte procedesse à análise devida, não cabia ao Juízo de primeiro grau, ao deparar-se, nas investigações então conjuntamente realizadas, com suspeitos detentores de prerrogativa de foro – em razão das funções em que se encontravam investidos -, determinar a cisão das investigações e a remessa a esta Suprema Corte da apuração relativa a esses últimos, com o que acabou por usurpar competência que não detinha. 2. Inadmissível pretendida convalidação de atos decisórios praticados por autoridade incompetente. Atos que, inclusive, foram delimitados no tempo pela decisão agravada, não havendo, evidentemente, ao contrário do que afirmado pelo recorrente, determinação de “reinício da investigação, com a renovação de todos os atos já praticados”, devendo, tão somente, emanar novos atos decisórios, desta feita, da autoridade judiciária competente. 3. Agravo regimental não provido. (STF – Rcl 7913 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 12/05/2011, DJe-173 DIVULG 08-09-2011 PUBLIC 09-09-2011 EMENT VOL-02583-01 PP-00066)
Dessa forma, vê-se que o STF não apenas assentou que cabe somente ao próprio STF autorizar o desmembramento de investigações e ações penais nas quais tenha como suspeito, investigado ou indiciado, um congressista, como também decidiu ser inadmissível a convalidação dos atos decisórios. Ou seja, podem ruir também decisões que autorizaram afastamento de sigilos fiscais e bancários, como também as interceptações telefônicas. No caso, aplica-se o art. 5°, LVI da Constituição da República: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. E ainda se pode aplicar, na hipótese, a teoria dos frutos da árvore envenenada, a contaminar todas as demais provas que só tenham sido produzidas a partir de elementos colhidos de escutas que passaram à situação de ilegais. Estas são as luzes jurídicas a iluminar o exame da legalidade, ou ilegalidade, das provas produzidas nos inquéritos que têm o senador Demóstenes Torres como indiciado, agora formalmente, após o pedido do procurador geral da República ter sido deferido pelo ministro Ricardo Lewandowski. Cabe apenas analisar se à estes inquéritos, e às respectivas escutas, se aplicam estes precedentes do STF.
Depois da condenação popular sumária, e da iminente cassação por quebra de decoro parlamentar, alguém se arrisca a analisar se o senador corre risco de ser condenado sob o devido processo legal?
_________________________
RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO é advogado, conselheiro seccional e presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA. É membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), fundador e articulista do Os Constitucionalistas. Siga o autor no Twitter @rodlago e no FaceBook.
* Texto extraído do grupo Direito Constitucional e Eleitoral no Facebook, publicado em 03 de abril de 2012. Visite o grupo e solicite a sua admissão.
Foto: bitzcelt/Flickr.
Parabéns ao articulista. Mas não me parece que o precedente citado no final do artigo se aplica ao caso Demóstenes. Pelo que compreendi das informações até este momento divulgadas, a JF em Goiás não determinou o desmembramento de nenhuma investigação: apenas comunicou ao PGR e ao STF o encontro fortuito de provas referentes a crimes diversos dos que estavam sendo investigados. Perceba-se que o precedente cita expressamente “investigações então conjuntamente realizadas, com suspeitos detentores de prerrogativa de foro”. Aparentemente, não é o mesmo quadro do caso Demóstenes/Cachoeira.
RESPOSTA: Caro Bruno, obrigado pela leitura. Também não sei ao certo se o último precedente se aplica ao caso Demóstenes. E afirmei isso expressamente ao final do texto: “Cabe apenas analisar se à estes inquéritos, e às respectivas escutas, se aplicam estes precedentes do STF”. Como eu disse no começo, usei o caso Demóstenes apenas como pretexto para abordar essa temática, mas não pretendi fazer um libelo acusatório, ou uma intransigente defesa contra nulidades. Apenas tentei passar aos leitores como a questão deva ser analisada, evitando as conclusões precipitadas, e por isso às vezes equivocadas, sobre alguns pontos jurídicos.
O “encontro fortuito” ocorre quando, por exemplo, num inquérito para apurar desvio de dinheiro público em contratação de obras uma gravação (ou várias) detecta crime de tráfico de drogas por terceiros, por exemplo, ou até também envolvendo algum dos alvos. É óbvio que, em primeiro exame, não há conexão entre os crimes, o apurado, e o encontrado fortuitamente. Por isso, prossegue normalmente o inquérito principal, remetendo-se o encontrado fortuitamente ao foro competente. Não há atração dos crimes por conexão. Repito: não sei se é ou não o caso Demósteses, mas é disso que cuidará o STF ao analisar a validade das provas.
Agradeço a leitura, e convido-o a continuar lendo, criticando e, quando possível, divergindo.
Forte abraço,
Rodrigo Lago
O precedente citado cuida de hipótese distinta daquela abordada pelo articulista. Pelo que foi noticiado, uma vez detectada a identidade do interlocutor e constatada a sua possível participação em ilícitos penais, num caso patente de econtro fortuito de prova, remeteu cópia dos autos às autoridades competentes, prosseguindo a investigação somente contra aqueles que não são privilegiados por essa aberração que é o foro por prerrogativa de função. Se o articulista tivesse atentado para esse fato, lembraria que o STF aceita a validade desse tipo de prova e da investigação subsequente (AI 626214 AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 21/09/2010, DJe-190 DIVULG 07-10-2010 PUBLIC 08-10-2010).
RESPOSTA: Caro Luiz Lessa, obrigado pela leitura atenta. Talvez você não deva ter percebido, mas usei o caso Demóstenes apenas como pretexto para debater a questão jurídica, e fui claro ao afirmar que não conheço os autos. Conheço o precedente citado por você. O “encontro fortuito” ocorre quando, por exemplo, num inquérito para apurar desvio de dinheiro público em contratação de obras uma gravação (ou várias) detecta crime de tráfico de drogas por terceiros, por exemplo, ou até também envolvendo algum dos alvos. É óbvio que, em primeiro exame, não há conexão entre os crimes, o apurado, e o encontrado fortuitamente. Por isso, prossegue normalmente o inquérito principal, remetendo-se o encontrado fortuitamente ao foro competente. Não há atração dos crimes por conexão.
Vou ressaltar novamente o que eu disse no início do texto: “Não abordarei o caso concreto, por vários motivos, dentre eles por não conhecer com profundidade nenhum dos dois inquéritos – Operação Vegas e Operação Monte Carlo. Nem mesmo os folheei”. E arrematar com o que consignei no final: “Cabe apenas analisar se à estes inquéritos, e às respectivas escutas, se aplicam estes precedentes do STF”. Enfim, não conheço o caso concreto (examinando realmente os autos, e o que consta das conversas interceptadas, e não apenas do ouvi dizer na mídia), e por isso não posso afirmar se se aplica ou não o precedente. Tratei no texto, singelo, na verdade uma postagem no Facebook, apenas sobre teoria jurídica, algo em tese, e não em exame de caso concreto. Não me arrisco a antecipar o resultado da análise sobre o caso. Convido o amigo novamente a leitura do texto para compreender isto.
Agradeço a leitura, e convido-o a continuar lendo, criticando e, quando possível, divergindo.
Forte abraço,
Rodrigo Lago
Obrigado pela resposta, estimado Rodrigo. E, mais uma vez, parabéns pelo texto, que contribui para o debate de um assunto tão importante e atual.
Sobre o tema, e em sentido contrário, sugiro o belíssimo artigo de Vladmir Aras: http://bit.ly/HU515W