Damares Medina
18.08.13

E se fosse chicana?

 

O processo não é somente ciência do direito processual, não é somente técnica de sua aplicação prática, senão que é também leal observância das regras do jogo, é dizer, fidelidade aos cânones não escritos de correção profissional que marcam o limite entre a elegante e meritória mestria do esgrimista perfeito e as torpes arteirices do fulheiro.”[1]

O segundo dia do julgamento dos recursos dos réus do Mensalão (como ficou popularmente conhecida a Ação Penal-AP n. 470) foi marcado por desentendimentos entre os ministros relator e revisor, Min. Joaquim Barbosa e Min. Ricardo Lewandowski, respectivamente, do Supremo Tribunal Federal (STF). O fato não é inédito, já no julgamento do mérito da AP n. 470, revisor e relator desentenderam-se a ponto de o então presidente do STF, Min. Carlos Britto, assegurar “o direito de prosseguir no livre exercício de seu voto” ao Min. Lewandowski. De lá, para cá, mudaram a fase processual (trata-se de recurso e da última chance de revisão do julgamento) e a função do relator (o Min. Joaquim Barbosa é, ao mesmo tempo, relator e presidente do tribunal, o que lhe permitiu encerrar imediatamente a sessão em razão do desentendimento).

Uma leitura institucional remete-nos a algumas questões relevantes como a razão de ser dos órgãos colegiados, o papel do dissenso, os papéis do revisor, do relator e do presidente, os embargos nas ações penais originárias do STF e o direito de decidir do juiz.

Todo órgão judicial revisional deve ser colegiado. A função do colégio não é outra senão promover o dissenso, a discordância, a divergência, caso contrário, não seria preciso mais de um. No popular: ‘duas cabeças pensam melhor que uma’. Muito antes de a filosofia destacar a função da antítese no aperfeiçoamento das reflexões e do pensamento filosófico (seja a partir da dialética hegeliana, da alteridade kantiana ou do consenso habermasiano), a teoria darwiniana já apoiava evolução das espécies na diversidade, na contradição, no dissenso. Até o senso comum denuncia: ‘toda unanimidade é burra’.

É por amor ao dissenso que os órgãos colegiados não podem ter um número par de membros. Desde Minerva, havendo o empate, o presidente deverá ser o fiel da balança. No STF, ao contrário de Minerva (que votou exclusivamente em função do empate), o presidente sempre vota, e, no caso de empate, poderá votar em dobro, um verdadeiro voto de qualidade (que foi exercido uma vez pelo Min. César Peluso, então presidente, por ocasião do processo que ficou conhecido como Ficha Limpa).

O exercício dialético recomenda: se para alguns a sessão se delongara, para quem está ou poderá um dia se vir na situação de réu, com a sua liberdade ameaçada, com certeza não há demora. Afinal, o jogo só acaba quando a última decisão transitar em julgado. O que parece chicana a uns, para outros pode ser a mais genuína pedra de salvação. Esse é o papel fundamental do contraditório, seja ele entre as partes, seja ele entre os pares, ministros do STF. Sem o contraditório em sua mais ampla acepção, não existe processo válido, e sem o processo válido não se alcança a Justiça.

A função do revisor ancora-se na imprescindibilidade da antítese e do dissenso para o aperfeiçoamento dos julgamentos penais. O revisor deve atuar como antítese do relator, de forma a alcançar o mais aperfeiçoado resultado, essa é sua função institucional. O exercício do voto revisional deve ser assegurado livre de quaisquer tipos de censura, pressões ou coações, sob pena de mácula ao devido processo legal, um direito e garantia fundamental de todos nós cidadãos. O presidente do tribunal tem o dever de assegurar aos seus pares o livre exercício do direito de voto. Por isso a acumulação das funções de relator e presidente, pelo Min. Joaquim Barbosa, mereceu repúdio dos defensores dos réus, haja vista a evidente concentração de poder que pode desequilibrar o jogo processual.

Essa problemática torna-se ainda mais sensível nos casos de competência originária do STF, órgão de cúpula do Poder Judiciário. Se, de um lado, os réus do mensalão possuem direito a foro privilegiado, de outro, eles perdem o direito ao duplo grau de jurisdição. O STF é, ao mesmo tempo, julgador e revisor. O julgamento dos embargos é a única e última oportunidade de revisão da decisão, seja mediante a correção de erros, omissões ou contradições, ou mediante a revisão do entendimento. Ainda que essa revisão signifique uma volta atrás. Trata-se última chance de os réus verem sua liberdade salvaguardada.

Dir-se-á que os embargos não se prestam a efeitos infringentes. Com toda láurea devida ao dissenso (unânime, majoritário ou não), no caso das ações penais originárias do STF, os embargos funcionam como um duplo grau, se não de jurisdição, pelo menos de julgamento. Está na constituição que todos merecem uma segunda chance, por que não os ‘mensaleiros’?

Ao fim, mas não menos importante, a decisão do juiz é a culminância do processo judicial e o ápice da Jurisdição, o poder do Estado de dar o Direito. Ao decidir o juiz está investido do Estado, sendo ele próprio o Estado. Todo juiz tem o direito e o dever de decidir, divergir e corrigir a sua decisão sem nenhum tipo de hostilização (seja do presidente, dos pares, seja pela delonga ou até mesmo pela inverosimilhança dos argumentos). Mais do que princípio constitucional, o livre convencimento do juiz é um dos pilares da construção do Brasil democrático. É um direito do ministro, do réu e de seu advogado. É um direito de todos nós advogados e de todos nós cidadãos! Por isso, para que o dissenso não desborde em desentendimento, é sempre bom lembrar que o Supremo Tribunal constrói mais do que Justiça, constrói o Brasil.


DAMARES MEDINA é advogada especializada em contencioso constitucional, mestre e doutoranda em Direito e Professora de Direito Constitucional.

Foto: Nelson Jr./SCO/STF

[1] CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. Campinas : Bookseller, 1999, v. 3, p. 229.



4 Comentários

  1. Rafael Souza disse:

    “Está na constituição que todos merecem uma segunda chance”??? A qual Constituição o autor se refere? Não pode ser a do Brasil, pois isso não está lá…

  2. Priscilla Cabral disse:

    Excelente artigo de Damares Medina. Além de muito bem conceituada, a autora foi excelente em sua obra sobre Amicus Curiae. Demonstrou a ridicularização da Corte quando Ministros (precipuamente aqueles que querem ser os queridinhos da população) preocupam-se mais com sua vaidade do que em respeitar o debate constitucional.

  3. rodolfo macena de siqueira disse:

    Rafael Souza

    Acredito que a autora fez referência ao duplo grau de jurisdição previsto na CF.

  4. thiago disse:

    O duplo grau de jurisdição não é garantia constitucional, não está previsto na Constituição expressamente, e não é princípio implícito de acordo com o próprio STF- nisso a autora é doutrina minoritária. Por outro lado, a Convenção Americana de Direitos Humanos prevê sim o duplo grau de jurisdição. Não havendo solução para esse impasse- visto que o STF revisa ele mesmo no Brasil- que ao menos se admita os efeitos infringentes aos embargos de declaração quando a ação penal é de competência originária, permitindo um novo julgamento, transbordando as hipóteses de omissão, obscuridade ou contradição.