Por Rodrigo Lago
24.06.13

Constituinte exclusiva para reforma política: dois momentos

 

2009 – Michel Temer: “Uma constituinte exclusiva para a reforma política significa a desmoralização absoluta da atual representação”. (“Não à Constituinte exclusiva”, publicado no site da Câmara dos Deputados em 2009-2010)

2013 – Dilma Rousseff: “Quero, nesse momento, propor o debate sobre a convocação de um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política que o país tanto necessita. O Brasil está maduro para avançar e já deixou claro que não quer ficar parado onde está” (discurso da Presidenta da República, Dilma Rousseff, durante reunião com governadores e prefeitos de capitais, em 24.06.2013)

* O constitucionalista Michel Temer é o atual vice-presidente da República, eleito para o quadriênio 2011/2014 com a presidente Dilma Rousseff, nas Eleições 2010. Ao tempo do artigo acima citado, porém, ainda era deputado federal e presidente nacional do PMDB.

O Brasil vivencia um momento indecifrável. O povo saiu às ruas para protestar. Tudo pode ter começado com o impopular aumento de vinte centavos nas passagens de ônibus em São Paulo. Alguns poucos manifestantes foram ganhando adesões em massa. De repente, um conflito com a Polícia Militar foi o suficiente para eclodir a revolta popular no Brasil inteiro. No Rio de Janeiro, estima-se que apenas em um dos dias de manifestação havia trezentas mil pessoas na tradicional Avenida Rio Branco – os manifestantes afirmam que havia um milhão de pessoas. O aumento das passagens foi revogado em São Paulo e em várias cidades no Brasil, mas o povo não saiu das ruas. As reclamações são as mais diversas: o desperdício de dinheiro público com os estádios da Copa do Mundo; os poderes de investigação criminal e a demonizada PEC 37; a impunidade; a necessidade de reforma política; a deficiência de representação institucional; mobilidade urbana; mais recursos para a saúde e para a educação. Enfim, o povo está insatisfeito, mas não se sabe exatamente como acalmá-lo.

A presidente Dilma Rousseff, então, em reunião emergencial com os governadores e com os prefeitos das principais cidades brasileiras, lançou uma proposta inusitada. Dentre outros quatro pactos, propôs a “convocação de um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política que o país tanto necessita” (discurso da Presidenta da República, Dilma Rousseff, durante reunião com governadores e prefeitos de capitais, em 24.06.2013).

Surge a  indagação: seria possível uma Constituinte específica, ou exclusiva para tratar de reforma política? A resposta é negativa.

O Poder Constituinte Originário não deve satisfação à norma alguma, senão ao próprio povo que outorgou os seus poderes. Nem se invadirá, neste texto, a discussão acerca do denominado transconstitucionalismo dos direitos fundamentais ou mesmo do respeito aos direitos adquiridos, que se imporia inclusive ao Poder Constituinte Originário. Certamente o “processo constituinte específico” tratado no discurso da presidente não seria Originário, posto que não haveria o completo rompimento e superação da Constituição de 1988.

Então, estaria a presidente tratando do denominado Poder Constituinte Derivado? Em sendo, este Poder é vinculado a uma norma, no caso à Constituição que delegou ao mesmo o Poder de Reforma. Em outras palavras, uma Constituinte Exclusiva para a reforma política seria uma espécie de Poder de Reforma, também denominado Constituinte Derivado.

E o Poder de Reforma, ou Constituinte Derivado, deve respeito às cláusulas pétreas, sendo estas as expressas, mas também as implícitas. Nestas últimas cláusulas pétreas, as implícitas, se inclui a vedação ao processo de reforma chamado de dupla revisão. O Congresso Nacional recebeu da Constituição uma atribuição indelegável, irrenunciável, que o Poder de Reforma.

Para José Afonso da Silva, a denominada dupla revisão representa “simplesmente uma fraude à Constituição” (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 442). Paulo Gonet, incorporando as lições de Nelson de Souza Sampaio, sustenta ser intangível ao Poder de Reforma “as normas concernentes ao titular do poder reformador” (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 305).

A própria Constituição veda ao Congresso Nacional a delegação de sua competência privativa e especificamente a competência legislativa sobre direitos políticos e eleitorais. Qualquer ideia sobre uma Constituinte específica exigiria a revogação do art.68, §1º, II, além da reforma do art. 60, ambos da Constituição. E estas disposições devem ser constitucionalmente protegidas, como cláusulas pétreas implícitas. Não é à toa que o art. 60 da Constituição permaneceu íntegro em sua redação após as seis emendas de revisão e as setenta e três emendas constitucionais já promulgadas. E nem o povo pode modificar o núcleo petrificado da Constituição.

A pensar de forma diversa, o povo poderia tudo, sem limitações, e as próprias cláusulas pétreas não teriam mais razão de ser. Seria possível, por exemplo, revogar o art. 16 da Constituição, para no passo seguinte implementar uma reforma casuística no processo eleitoral às vésperas da própria eleição; ou revogar o art. 60, §4º, para em seguida se instituir a pena de morte no Brasil. Ou de forma mais ousada, seria possível reformar o art. 82 da Constituição, reduzindo o tempo de mandato do presidente da República, cassando o próprio mandato da presidente da República, Dilma Rousseff. As propostas seriam teratológicas.

Resumindo, mesmo que aprovada por plebiscito, a convocação de Constituinte específica seria inconstitucional. Só se poderia admitir uma Constituinte caso se reconhecesse o rompimento da ordem constitucional. Uma Constituinte plena, geral, sem amarras, e que aprovaria uma nova Constituição.

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RODRIGO LAGO é advogado, conselheiro federal da OAB em exercício, ex-presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA, diretor-geral da Escola Superior de Advocacia do Maranhão – ESA-OAB/MA, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e fundador e articulista do Os Constitucionalistas. Siga o autor no Twitter e no Facebook.

Foto: Roberto Stuckert Filho/PR



11 Comentários

  1. Camila disse:

    Acho uma pena que um assunto tão bom como esse seja rechaçado tão veementemente pela comunidade jurídica em geral. Sim, é bem complexo e requer muitas reflexões. Para mim, parece claro que a única forma de se efetivar uma reforma política nuclear seja feita por componentes fora do Congresso Nacional. Agora temos que pensar como isso é possível. Ordens como Espanha e Suíça permitem revisão total da Constituição por meio de plebiscito, já é um exemplo de como lidar com a democracia sem tanto medo. Foi o próprio Poder Constituinte que foi às ruas clamar por mudanças, será que ele precisa agora da sua auto-limitação ou pode avançar? Sou a favor, sem sombra de dúvidas. Seria um “poder reformador sui generis”. Mas ficou claro que é preciso inovar, tanto a política quanto a doutrina.

    RESPOSTA DO AUTOR: Prezada Camila, se for a vontade do povo, que venha uma Constituinte Originária,sem amarras ou limitações. E se for a vontade dessa Constituinte Originária aproveitar parcialmente o texto da Constituição de 1988, muito bem. Agora, não daria para chamá-la de Constituinte específica, com poderes limitados. Obrigado pelo debate!

  2. Fafa disse:

    Excelente, Rodrigo!!!

  3. Rômulo disse:

    Parabéns pelo artigo. Excelente!

  4. Samira disse:

    Tenho medo de uma Constituinte originaria com os que atualmente comandam esse pais! Espero que não aconteça!

  5. Fabiana disse:

    To com medo disso… sério… Quem gostava desses plebiscitos absurdos e inconstitucionais para enganar as massas era o Chaves… O plebiscito que a Dilma está propondo não é necessário para a finalidade que ela diz, apenas abrirá possibilidade para a aprovação de propostas absurdas e tudo isso ainda com o aval da povo.

  6. Guilherme Valente disse:

    Mas Rodrigo, essa manifestação popular que leva mais de 1 milhão de pessoas às ruas, diariamente, em todo o País, não seria o que a doutrina denomina de poder constituinte “difuso”, latente no seio da sociedade??? Se o próprio Poder Constituinte “Difuso” busca a reforma das estruturas políticas da Nação, então como a “doutrina” poderia limitá-lo?? Certo! o constituinte originário é inicial, ilimitado e incondicionado, e em tese nem mesmo o STF poderia controlá-lo em face de tais atributos. Entretanto, o povo brasileiro mostrou que tem maturidade p/fiscalizar o poder quando quer, e se essa eventual Constituinte desbordar dos marcos p/os quais foi convocada, tenho certeza que o povo de novo sai as ruas e bota as coisas no lugar. Lembre-se que Dilma tinha aprovação recorde e que, por mais que a inflação comece a botar as manguinhas p/o lado de fora, ainda temos uma economia relativamente estável frente as demais que derrocaram ante a crise de 2008/2009. Mesmo assim, o povo está na rua, pleiteando o que merece ter. Então, penso que deveríamos confiar mais no povo, que, em ultima instância, é o verdadeiro titular do poder (art. 2º, § único da CF).

  7. Adriana disse:

    Excelente texto. O cidadão brasileiro que despertou para seus direitos, precisa despertar também para a consciência de como funciona um Estado Democrático de Direito, cuja Carta Magna é seu principal alicerce!
    Constituintes servem para introduzir ou aniquiliar regimes democráticos. É o que penso. Precisamos melhorar nossas instituições, não destrui-las. Temos de banir a impunidade, não promover a anarquia ou um regime autoritário. Já vimos este filme no Brasil e no mundo.

  8. JOSÉ EUGÊNIO DE FARIA disse:

    Como a Constituição atual é cheia de amarras e para que qualquer ato seja legal, sugiro que a Presidente Dilma vá a público em rede de TV e rádio e convoque o Congresso Nacional para votação ABERTA E TRANSMITIDA EM REDE NACIONAL DE TV E RÁDIO UM PROJETO DE LEI QUE ATENDA AO CLAMOR POPULAR,aí sim , saberemos quem são os senadores e políticos que realmente estão do lado do POVO. O PROBLEMA É SIMPLES DE RESOLVER , VOTOU CONTRA O POVO ASSINOU A PRÓPRIA SENTENÇA DE MORTE !!!

  9. Guilherme Louzada disse:

    Meu primeiro acesso ao blog. Parabéns aos criadores por proporcionar mais um ambiente de aprendizado e de discussão do Direito Constitucional. Acerca do debate, filio-me ao argumento supracitado de que, o povo é o real titular do poder como reza o art. 2º da Carta Política.

  10. Felipe Freitas disse:

    Parabéns Rodrigo.

    “Guilherme Valente”, poder constituinte difuso não é o que você está acreditando que seja.