10.02.10

Como garantir os direitos sociais com a iniciativa totalmente livre?

Por FLohn
A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu primeiro artigo, petreamente nos informa que a República brasileira será formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituindo-se, assim, em Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos, entre outros, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
Já numa primeira leitura poder-se-ia cogitar de uma contradição posta entre tais fundamentos. Esse aparente conflito serve como ponto de partida para uma reflexão acerca de como pôde o Estado conciliar princípios tão antagônicos, dentro da mesma disposição legal. E como dirimiu esses conflitos em uma mesma sociedade. Isso ocorreu, em âmbito mundial, por meio da garantia estatal de direitos especiais tanto para os trabalhadores como para os empregadores, a estes últimos conservado o legado do Liberalismo – o da livre iniciativa, que inicialmente pretendia representar igualdade jurídica, embora apenas formal. Atualmente, tal conceito foi transmutado como direito das pessoas humanas, e não apenas condição das relações jurídicas.
A crítica que se propõe, portanto, é à da transmissão de conceitos e categorias gerais de forma a-histórica (verdades absolutas): a ciência jurídica, incluída entre as ciências sociais, exige, para que alcance uma idéia fortalecida sobre si mesma, uma análise sobre a sociedade a que é contemporânea. Conceitos como liberdade e igualdade jurídica são permeados pela ideologia dominante, em nosso caso o Estado Social de Direito, que regula a ordem econômica e social, limitando o poder e projetando a tutela dos direitos sociais – que incluem o trabalho – para além dos interesses individuais.
Parece tão óbvio que a ideologia permeie todas as atividades organizadas, mas se faz necessário conhecer aquela ideologia (motivação) que constitui o nosso ordenamento jurídico, o direito posto, que toma forma no cotidiano.
Olhemos, primeiramente, para importantes períodos da História, em particular na transição entre Idades Média e Moderna, onde o poder, alternado entre as mãos de monarcas, oligarcas e tiranos, pensava sua força produtiva – os seres humanos – como mercadoria. O capital e o trabalho tiveram, em suas especificidades regionais, diferentes tratamentos, porém quase nenhuma garantia, especialmente no que se refere aos trabalhadores.
Houve, desde então, um grande processo de transformações. Entretanto, as questões jurídicas trazidas ao debate não encontrarem respaldo suficiente nos textos normativos existentes, acarretando, primeiramente, num exagerado Positivismo.
A ideologia em tela pode ser traduzida em valores de justiça social ou distributiva, e passou a dominar o cenário mundial no século XX. A sociedade passou a exigir o acesso aos bens e serviços produzidos, como também a valorização do esforço empregado na produção e enriquecimento das empresas e nações. Daí a necessidade de atuação do Estado, cuja intervenção anteriormente seria rechaçada pelos liberalistas, para fazer prevalecer o interesse coletivo, evitar os abusos e garantir a afirmação da dignidade humana.
No Estado Social de Direito (welfare state) todos os temas sociais juridicamente relevantes foram constitucionalizados. Tida por muitos como uma das mais modernas, nossa Constituição passa por profundas reflexões a respeito de seu conteúdo lógico e axiológico, considerada a consagração de muitos direitos. Esses direitos criam obrigações. Resta compreender como executar o que está posto no texto constitucional de maneira eficiente. O Estado Pós-moderno exige entendermos atentamente como se deu o processo de positivação das regras e princípios, como também a judicialização das políticas públicas. Somente assim conseguiremos uma melhor aplicação do texto constitucional. As normas positivadas não podem ser um limite expresso para adequação do Direito à realidade cotidiana da Nação.
Em nossa Constituição encontramos o fundamento da ordem econômica no art.170, onde se valoriza o trabalho, o labor e a iniciativa privada, que seria o mercado de natureza capitalista. O princípio da livre iniciativa traduz a liberdade econômica, tendo como limites o capital e a aptidão de quem o manipula, e não outros limites explícitos, tendo conceito aberto, pois não o encontramos no texto. Representa a liberdade em sua essência, e dá ao cidadão o direito de iniciativa totalmente livre, observados os limites da lei.
Já os valores sociais do trabalho, elencados ainda no primeiro artigo da nossa Constituição, tratam, como o próprio verbete informa, de um valor. Fazendo um pequeno adendo filosófico, valor é aquilo que é (bom, belo, justo etc.), ao passo que princípio corresponde a aquilo que deve ser, ou seja, aquilo que se busca alcançar – “o fim”. Enquanto o princípio é o percurso, o valor é a chegada.
Com atenção, devemos observar sobre o cuidado que foi dado à matéria na Constituição. E se deve começar pelo princípio da dignidade da pessoa humana, que é um dos valores fundamentais da República, intimamente ligado ao princípio da valorização do trabalho. Segue-se atento ao próprio direito ao trabalho, que é, dentro das prerrogativas do Estado Social, a busca do pleno emprego e do livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão.
Com efeito, a Constituição Social de 1988 dedica capítulo especial informando um rol de garantias ao trabalhador urbano e rural para dar suporte ao princípio frente ao da livre iniciativa, haja vista ser este detentor de liberdade.
São exemplos deste rol de proteção: a relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa; seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário; fundo de garantia do tempo de serviço; salário mínimo, fixado em lei, piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho; irredutibilidade do salário; garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável; décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria; remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei; duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva; repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias; aposentadoria; seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, associação sindical; direito à greve; entre outros. Muitos dos direitos contemplados no texto constitucional são frutos até do excesso de constitucionalização dos direitos sociais, em razão da necessidade do constituinte de afirmá-los.
Juntos, a livre iniciativa e o valor social do trabalho, podem primeiramente parecer antagônicos, mas estão fixados no texto constitucional para atingir os objetivos da própria República, para atingir os fins que o Constituinte deixou expresso, como o desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza e redução das desigualdades regionais.
Sabe-se que mesmo não tendo a livre iniciativa limites expressos, não é impossível sua conciliação com os valores sociais do trabalho, sabendo que o significado deste não ultrapassa a sobrevivência e chega na fonte da identidade do indivíduo. Para haver essa conciliação, faz-se necessário uma maior utilização da Ética na Economia. O direito através dos seus princípios lança uma ética geral vinculante, segundo a qual a atividade econômica deve obedecer aos princípios constitucionais impostos na Constituição Federal.
A realização desses princípios também depende de políticas públicas capazes de inserir planejamento na atividade econômica, de modo a conformá-la com os interesses sociais, como o valor social do trabalho e a própria justiça social. Os governos devem implantar seus programas de governo focados nos princípios norteadores da República Federativa do Brasil, visando sempre a finalidade social.
Por outro lado, parece contraditório ler a expressão justiça social, que nos leva a pensar o antagonismo entre a distribuição de riqueza e modelo capitalista de mercado adotado. Entretanto, uma análise mais atenta nos revela a existência de mecanismos para dar verdadeira efetividade à justiça social, mitigando, assim, a própria noção de justiça social, como, igualmente, limitando a noção de capitalismo. Podemos citar entre esses mecanismos a defesa do consumidor e a do meio ambiente, etc. É dizer: não há direito absoluto, e o da liberdade na iniciativa privada encontra balizas, dentre outros, nos direitos sociais, em uma convivência harmoniosa.
Postas essas premissas, conclui-se que caberá ao Estado garantir a redução das desigualdades regionais e sociais para que estes dois princípios possam coexistir, alcançando, assim, verdadeiramente, a justiça distributiva. Essa garantia deverá ser dada não só pelo Poder Executivo na implantação de políticas públicas de incentivo à economia, como também pelo Poder Judiciário, não se deixando limitar pela letra fria da lei, e pelo Poder Legislativo, que ao perceber lacunas deve discutir propostas buscando atender aos princípios sociais que nortearam a feitura de nossa Carta Magna.


2 Comentários

  1. Anonymous disse:

    Achei ótimas suas ponderações e fico pensando se estamos assistindo um verdadeiro equilibrio entre os poderes (com a judicialização das políticas públicas por ex.)ou uma nova perspectiva do que seja Separação dos Poderes?Bjs, CÂndida

  2. Anonymous disse:

    A Constituição transformou em direitos sociais as demandas sociais geradas a partir do crescimento industrial.O Estado do Bem estar deve intervir na economia o suficiente para regulamentar as atividades produtivas, assegurar a geração de riquezas e diminuir as diferenças sociais.O equilibrio destes valores é o que difere o Estado do bem estar do Estado Assistencial.Parabéns, Fernanda!Bjs, Cândida