21.12.09

Comentários a Peter Häberle

POR PATRÍCIA LAMARÃO

Afirmar-se que o Direito é produto social e que como tal sofre, inevitavelmente, constantes evoluções ao passo das transformações sociais é admitir-se tanto a lógica do silogismo, quanto a veracidade das premissas que o fundamentam, porém não é demais fazê-lo. O Direito, bem como os ordenamentos jurídicos, não pode ficar estanque, engessado por valores consagrados em uma dada comunidade em um determinado período, sem que seja revisitado e adaptado a novas realidades sociais.

Não podemos aprisionar as futuras gerações a valores que a presente geração reconheceu como fundamentais. Bem como não podemos deixar de observar que a garantia de determinados direitos às gerações futuras depende de ações ou omissões das gerações presentes. Assim é que, por exemplo, para garantir o direito à paz para as futuras gerações é importante que haja a omissão das gerações presentes no sentido da não proliferação de armas nucleares; bem como é imperioso para que se garanta um meio ambiente ecologicamente equilibrado às gerações futuras, que as gerações presentes atuem na redução da emissão de gás carbônico na atmosfera.

Bem certo que alguns direitos definidos como fundamentais ultrapassam a barreira das comunidades alcançando uma proteção global e que transpassam as fronteiras temporais. Porém, não podemos deixar que esses direitos permaneçam enrijecidos de forma tal que as futuras gerações não possam dele dispor de forma que se adaptem às mudanças sociais.

Os movimentos sociais, que outrora possibilitaram a formação dos Estados de Direito, pautado nas regulamentações internas das comunidades, atualmente poussuem uma preocupação mais global, voltando os olhos às questões que vão além das fronteiras dos Estados soberanos e afligem inúmeras Nações. A complexidade das relações sociais obrigou-nos a reconhecer que a garantia interna de muitos direitos depende inexoravelmente da forma como esse direito é garantido e reconhecido pelas comunidades alienígenas.

É nesse contexto que o trecho da obra de Häberle se insere, verbis: "(…) hoje o Estado Constitucional e o Direito Internacional transformam-se em conjunto. O Direito constitucional não começa onde cessa o Direito Internacional. Também é válido o contrário, ou seja, o Direito Internacional não termina onde começa o Direito Constitucional". (HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. pp. 11 e 12)

Ou seja, cada vez mais os ordenamentos jurídicos internos precisam da conexão com os ordenamentos jurídicos externos para que se veja garantido os próprios direitos consagrados nas Cartas Políticas. Ou, do contrário, como poderíamos garantir a eficácia do artigo 225 da nossa Constituição Federal, que define que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-nos o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações sem que, além de um política interna pautada nas premissas estipuladas nos incisos deste mesmo artigo, não mobilizarmos uma política externa atuante no controle da emissão de gases que provocam o efeito estufa. Em simples palavras, não é suficiente que combatamos apenas a degradação ambiental perpetrada em nosso território se as demais Nações estrangeiras não assumam o mesmo compromisso, pois, nesse exemplo específico, a atmosfera é uma só, a camada de ozônio que nos protege contra os efeitos deletérios da irradiação solar é uma só. Como garantir o meio ambiente equilibrado de nossa comunidade, se outras comunidades cometem degradações que nos afetam diretamente? Os exemplos que alcançam o direito ambiental, o direito à paz, e outros direitos difusos são os mais patentes, mas o raciocínio irradia a vários campos do Direito.

É esse necessário diálogo entre as ordens constitucionais que vai além da visão estanque do Direito Constitucional, ou do Direito Internacional. É um viés maior em que os direitos transbordam as fronteiras espaciais e temporais, sendo gradativamente reconhecidos no âmbito internacional e internalizados nas Cartas Políticas. Não se trata da discussão acerca da criação de ordenamento global, ou uma “Constituição Global”, mas sim de questões e soluções que exigem a cooperação entre as Nações e o intercâmbio entre as comunidades.

E peço vênia para concluir citando a frase final, do capítulo de encerramento, da obra recentíssima do douto acadêmico Marcelo Neves, que de tão óbvia é genial: “o ponto cego, o outro pode ver”*. Isto é, na busca da solução de uma questão constitucional o limite de compreensão de um Estado pode, através da interação com os demais, ser suprido pela compreensão do outro.

*Em trecho anterior o autor assim fundamenta: “(…) O Estado deixou de ser um locus privilegiado de solução de problemas constitucionais. Embora fundamental e indispensável, é apenas um dos diversos loci em cooperação e concorrência na busca do tratamento desses problemas. A integração sistêmica cada vez maior da sociedade mundial levou à desterritorialização de problemas-caso jurídico-constitucionais, que, por assim dizer, emanciparam-se do Estado. (…) as diversas ordens jurídicas entrelaçadas na solução de um problema-caso constitucional (…) que lhes seja concomitantemente relevante, devem buscar formas transversais de articulação para a solução do problema, cada uma delas observando a outra, para compreender os seus próprios limites e possibilidades de contribuir para solucioná-lo. Sua identidade é reconstruída, dessa maneira, enquanto leva a sério a alteridade, a observação do outro”. (NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 298).



3 Comentários

  1. Paulo disse:

    Belo texto, Patrícia! Parabéns!
    Paulo

  2. Anonymous disse:

    Muito legal o texto, Patrícia! Penso que foi muito bem colocada e que muito enriqueceu o texto a frase de Marcelo Neves e seus comentários a respeito. Parabéns!

  3. Patrícia Lamarão disse:

    Muito obrigada pelos elogios!
    Apesar da linguagem amena do texto fico feliz que a mensagem sobre a importância acadêmica da discussão do tema tenha ressoado.