23.10.14
A Justiça Eleitoral e o tom da campanha presidencial
As eleições presidenciais de 2014 acontecem num contexto comunicativo novo. Além da mídia tradicional, a campanha se desenvolve intensamente nas redes sociais, sem regramento de etiqueta, criando ambiente conflagrado e agressivo, acima do tom usual. Esse contexto tem influenciado sobremodo o discurso dos candidatos em sua propaganda em rádio e televisão e nos debates públicos. Ao invés de centrarem a campanha na desejável exposição de programas e promessas, levaram-na a um intenso denuncismo e à chamada desconstrução da imagem de adversários. A dúvida que emerge diz respeito a saber se esse ambiente de campanha é útil para o eleitor e se fortalece nossa jovem democracia. Há de se indagar sobre o papel da Justiça Eleitoral nesse ambiente: se lhe cabe pautar o discurso dos candidatos para vedar-lhes o ingresso na nova seara discursiva que transborda a discussão de ideias e programas.
O Tribunal Superior Eleitoral optou, num primeiro momento da campanha presidencial, por aplicação liberal do marco normativo da propaganda dos candidatos, trazido pela Lei 9.504/97. Interveio, apenas, quando o discurso tangenciava o âmbito dos crimes contra a honra ou continha inverdade flagrante sobre adversários, de modo a garantir ampla liberdade de manifestação, ao mesmo tempo em que se esforçava por um mínimo de ética na promoção de candidaturas. Buscou impedir a ofensa grosseira e criminosa, bem como o engodo a desinformar o eleitor. Essa diretriz foi estabelecida em reiteradas decisões em sede de representações por propaganda irregular, com ou sem pedido de direito de resposta. A grande maioria dessas representações foi julgada improcedente, sem que se pudesse apontar maior ou menor impacto para esta ou aquela coligação partidária, prevalecendo, pois, a ação equilibrada. É preciso dizer que a Procuradoria Geral Eleitoral, que se manifesta em todos os processos submetidos à Justiça Eleitoral, adotou, já de início, posicionamento menos tolerante a excessos verbais de toda a índole.
A postura menos intervencionista da Justiça Eleitoral – nessa matéria específica de liberdade de opinião e manifestação nos programas eleitorais – manteve-se ao longo de todo o primeiro turno das eleições presidenciais, inclusive contrariando expectativas daqueles que, num ou noutro momento, foram vítimas da aludida desconstrução.
Foi no meio da campanha do segundo turno das eleições presidenciais que a Corte resolveu inovar. Ao julgar a representação 1658-65, em 16.10.2014, em sede de cognição sumária e por apertada maioria (quatro ministros a favor, três contra) resolveu alterar sua abordagem, advertindo os concorrentes de que, dali em diante, seria mais rigorosa. O objetivo é evitar os recíprocos ataques pessoais em que se compraziam os candidatos. Orientação nesse sentido foi repassada aos Ministros que vão apreciar pedidos de resposta dos candidatos.
Essa mudança de rumo causou estranhamento ao público especializado, temeroso de que a guinada jurisprudencial pusesse em risco uma das principais garantias constitucionais do processo eleitoral, que é a segurança jurídica e uniformidade de aplicação das regras ao longo do pleito eleitoral. Se o Tribunal tinha tolerado até então essa linha de ação propagandística, poderia, agora, proibi-la? Cabe lembrar que, no segundo turno, os candidatos têm idêntico tempo de rádio e televisão, podendo, num certo sentido, se defender eficazmente das críticas do adversário. No primeiro turno, no qual a Corte firmou a orientação mais liberal, o tempo dos candidatos era distinto.
Entendemos, por duas razões, que a mudança anunciada na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral é equivocada.
A primeira razão é que a liberdade de expressão é essencial para a campanha eleitoral cumprir sua função precípua, que é permitir ao eleitor que se informe, não só sobre ideias, propostas e programas dos candidatos, mas também sobre seus históricos de vida, seja em termos de performance profissional e funcional, seja em termos de sua idoneidade social. E quem melhor para expor estes aspectos, certamente que com viés interessado e crítico, do que os adversários?
Não há, nos marcos normativos da Lei das Eleições, nº 9.504/97, determinação expressa de que a propaganda eleitoral se destina somente à difusão de ideias e programas ou proposições. Ela somente obsta que a propaganda possa “degradar ou ridicularizar candidatos”, art. 53, §§ 1º e 2º, ou seja “ofensiva à honra de candidato, à moral e aos bons costumes”. O Código Eleitoral, aplicável em certas situações, proíbe, além desses crimes contra a honra, também a divulgação de fato sabidamente inverídico, art. 323.
A exposição de candidatos é extremamente proveitosa para a democracia. Ela não é realizada apenas por ideias e planos políticos abstratos, mas sobretudo pelas pessoas que os formularam e que demonstram intenção de os implementar. Sem se conhecer o idealizador, o significado da ideia não fica completo. Discursos, num exame semiótico, obtêm seu significado não só por sua semântica e gramática internas, mas também por seu aspecto pragmático, o contexto externo em que se desenvolvem, aí compreendendo o momento de sua exteriorização e as características de quem os exterioriza. O eleitor tem, por isso, o direito de conhecer plenamente a pessoa que difunde as ideias e os planos políticos para poder, ou não, conferir-lhes credibilidade e tecer um juízo sobre a sua viabilidade. Só assim estará plenamente apto a decidir em quem votar. Censurar a crítica pessoal, por mais acerba que seja, é cercear gravemente o debate eleitoral, viciando profundamente a manifestação de vontade do eleitor pela ignorância sobre os atributos de quem por ele pode ser escolhido.
Como constou em parecer do Ministério Público Eleitoral:
é inquestionável …que o horário eleitoral gratuito foi concebido pelo legislador não para ser um locus de ataques e ofensas recíprocas, de índole pessoal, mas sim para a divulgação e discussão de ideias e de planos políticos lastreados no interesse público e balizados pela ética, pelo decoro e pela urbanidade…
Todavia é o eleitor – e não a Justiça Eleitoral – que deve ser o juiz do atingimento, pelos candidatos, desse objetivo, exceto se houver a já mencionada ridicularização, divulgação de fato sabidamente falso ou crime contra a honra. O eleitor saberá punir – pelo voto – aqueles candidatos que fizerem ataques desarrazoados ou vis a seus adversários.
A segunda razão tem a ver com a segurança jurídica eleitoral, que tem estatura constitucional. Dela depende a fairness, a justiça do pleito. É importante que todos os atores do sufrágio conheçam de antemão as regras do jogo e que estas não sejam alteradas no seu curso. Nessa linha, ensina o Ministro Gilmar Mendes que “o Tribunal Superior Eleitoral, quando modifica sua jurisprudência, especialmente no decorrer do período eleitoral, deve ajustar o resultado de sua decisão, em razão da necessária preservação da segurança jurídica que deve lastrear a realização das eleições, especialmente a confiança dos cidadãos candidatos e cidadãos eleitores” (in www.conjur.com.br/2012-ago-18/observatorio-constitucional-seguranca-juridica-jurisprudencia-eleitoral, acessado em 19.10.2014).
Mudanças de última hora podem levar ao pensamento – certamente que indevido, mas possível – de que se tivessem sido feitas anteriormente, o resultado do pleito poderia ser diverso e que fazê-las agora pode beneficiar uma candidatura ou outra. A nosso ver, estas correções de rota devem ser feitas antes das eleições ou para eleições futuras. Enquanto transcorre o pleito eleitoral, elas não são bem-vindas.
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Ana Paula Mantovani Siqueira, Ângelo Goulart Villela e Luiz Carlos dos Santos Goncalves são membros do Ministério Público Federal atuando em auxílio do Procurador-Geral Eleitoral junto ao Tribunal Superior Eleitoral.
Artigo publicado originalmente no JOTA, edição 22/10/2014.
Foto: Roberto Jayme/ASICS/TSE.