7.07.16
A instabilidade da jurisprudência do STF sobre o estado de inocência (princípio da não culpabilidade). Ou, o que é um “precedente”?
Por José Miguel Garcia Medina
Qual o significado da garantia prevista no art. 5º, LVII, da Constituição (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”)?
Venho defendendo, há algum tempo, que no caso não se está diante de mera presunção de inocência: o réu encontra-se em estado de inocência, já que não é considerado culpado enquanto não verificado o trânsito em julgado. Sustento, também, que a Constituição caracteriza o processo penal como instrumento de tutela da liberdade do indivíduo contra o Estado (Constituição Federal Comentada, 3.ed., Ed. RT, p. 172).
Que dizer, porém, da jurisprudência do STF sobre o tema?
Pode-se afirmar, sobretudo depois do que decidiu o Ministro Celso de Mello, em 1.7.2016, no HC 135.100, que o STF não tem jurisprudência firme a respeito.
Destaco o seguinte trecho da referida decisão monocrática (sem os grifos do original):
‘Nem se invoque, finalmente, o julgamento plenário do HC 126.292/SP – em que se entendeu possível, contra o meu voto e os de outros 03 (três) eminentes Juízes deste E. Tribunal, “a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário” –, pois tal decisão, é necessário enfatizar, pelo fato de haver sido proferida em processo de perfil eminentemente subjetivo, não se reveste de eficácia vinculante, considerado o que prescrevem o art. 102, § 2º, e o art. 103-A, “caput”, da Constituição da República, a significar, portanto, que aquele aresto, embora respeitabilíssimo, não se impõe à compulsória observância dos juízes e Tribunais em geral.’
Fica claro que o julgado proferido pelo STF no HC 126.292 não é considerado um precedente vinculante pelo Ministro Celso de Mello. Note-se, a propósito, que o Ministro Celso de Mello enfatiza o fato de tal julgado ter sido proferido por maioria, como a destacar a fragilidade da decisão.
Tem-se, assim, que, embora o Ministro Celso de Mello não o tenha mencionado, ele segue orientação anterior do STF, firmada no ano de 2009 no julgamento do HC 84.078 (aliás, também por maioria de 7 a 4).
Chamo a atenção, aqui, para duas questões: O Ministro errou, ao não seguir a orientação adotada pelo STF no julgamento do HC 126.292? A decisão proferida no julgamento do HC 126.292 deve ser considerada um precedente, com força vinculante?
O problema que se coloca, a meu ver, está menos em se criticar a decisão tomada pelo Ministro Celso de Mello (embora eu não desconsidere a gravidade desse fato, como ressalto abaixo), e mais em se constatar que, ao contrário do que muitos poderiam supor, a decisão proferida no HC 126.292 não significou a superação da orientação outrora firmada no julgamento do HC 84.078.
Nem todas as decisões proferidas por nossos tribunais superiores são precedentes. Entendemos, também, que não existe precedente “a priori”.
O CPC/2015 concebe procedimentos vocacionados, ao menos formalmente, à criação de precedentes (assim, por exemplo, os incidentes de resolução de demandas repetitivas e de assunção de competência). Por isso, chamo as decisões oriundas de tais procedimentos de “precedentes em sentido formal”. Substancialmente, uma decisão é precedente (ou “precedente em sentido substancial”) quando, por suas qualidades, é considerada e seguida em julgamentos posteriores. Esse aspecto qualitativo confere reconhecimento substancial ao precedente. Trato dessa distinção na 4.ª ed. do Novo Código de Processo Civil Comentado (Ed. RT, p. 1309 ss.).
O déficit qualitativo de uma decisão do STF ou do STJ reduz ou, até, prejudica o reconhecimento substancial a tal “precedente”, reduzindo sua “força” vinculante, fazendo com que juízes não o respeitem.
É de se indagar sobre as qualidades que devem ser ostentadas por um julgado proferido pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, para que, ainda que não seja vinculante nos termos do art. 102, § 2.º da Constituição, seja levado em consideração, respeitado e seguido pelos juízes – aí incluídos os Ministros do próprio Tribunal superior. Pelo teor da decisão monocrática proferida pelo Ministro Celso de Mello, a contrario sensu, decisões que não se insiram no rol daquelas que, à luz da Constituição, seriam vinculantes, poderiam ter, no máximo, força persuasiva (das entrelinhas da decisão, pode-se extrair a suposição de que, além disso, pesou o fato de a decisão proferida no julgamento do HC 126.292 ter sido tomada por maioria, mas isso não fica claro).
Tem-se, então, o seguinte quadro: Pode-se dizer que, a manter-se esse estado de coisas, o Ministro Celso de Mello não desrespeitou a jurisprudência do STF, pois a decisão proferida pelo STF no julgamento do HC 126.292 não chegou a representar a superação definitiva da orientação antes firmada no julgamento do HC 84.078 pelo mesmo STF. Dizendo-se de outro modo, a decisão proferida pelo STF no julgamento do HC 126.292 não pode ser considerada um precedente, e muito menos um “precedente vinculante”. Afinal, como afirmou o Ministro, a decisão proferida no julgamento do HC 126.292 “não se impõe à compulsória observância dos juízes e Tribunais em geral”.
A instabilidade jurídica que resulta disso tudo é alarmante. Impõe-se ao STF o grave dever de definir, com urgência, e de modo categórico, a questão relacionada à inteligência do art. 5.º, LVII, da Constituição.
Indo além, e examinando mais amplamente o cenário, fica claro que o STF nem sempre preza pela estabilidade de sua jurisprudência. Recorde-se que o próprio julgamento proferido no HC 87.078 representara, também, a alteração da orientação jurisprudencial anterior do mesmo Tribunal.
Ora, o que mudou, em tão pouco tempo, a justificar tantas idas e vindas? Ao que tudo indica, não se está diante de fenômenos ligados à incongruência social ou inconsistência sistêmica, para lembrar de termos empregados por Eisenberg, tão caros àqueles que estudam os precedentes no common law. A meu ver, o que tem levado a essas viragens jurisprudenciais é, sobretudo, a alteração do quadro de ministros dos Tribunais superiores, o que conduz à formação de maiorias ocasionais nesse ou naquele sentido.
Temos afirmado que o papel desempenhado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça deverá experimentar um salto de qualidade, à luz do CPC/2015 (Direito Processual Civil Moderno, Ed. RT, 2.ª ed., 2016, p. 1362 ss.). Isso fica claro sobretudo à luz de disposições como os arts. 926 e 927 do novo Código (mas também, p.ex., dos arts. 489, § 1.º, V e VI, 988, IV, e § 5.º, II, dentre outros). É necessário estudar o tema à luz da Constituição brasileira, sem se deixar levar por estrangeirices que nada tem a ver com nossa realidade jurídica e social. Levemos a sério o papel que deve ser desempenhado por nossos Tribunais superiores.
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José Miguel Garcia Medina, professor titular da Universidade Paranaense e professor associado da Universidade Estadual de Maringá, doutor e mestre em direito pela PUC-SP, advogado.
O presente artigo corresponde a uma versão adaptada e atualizada pelo autor de nota publicada originalmente em sua página no Facebook.
Foto: Carlos Humberto/SCO/STF.
A dúvida que me fica é se a questão deve ser tratada pela eficácia vinculante do precedente ou se deve ser abordada pela interpretação dada pela corte que, por ser presumidamente correta, não poderia ser afastada sem ao menos algum ônus argumentativo maior. Dizer, como na decisão, que a decisão anterior não é um precedente vinculante, que não é mesmo (ao mesmo no sentido formal apontado no texto), não faz com que se possa dar outra interpretação à norma constitucional livremente, sem ao menos dialogar com a decisão anterior. Não sabemos, portanto, porque o Ministro não considerou a decisão anterior como precedente, no sentido substancial proposto pelo texto. Se assim for, mais uma vez o STF se afirma como corte recursal ou de cassação, que decide caso a caso, e não como uma corte constitucional propriamente dita.