12.02.10

A Emenda Constitucional 33 e a possibilidade de se confundir contribuinte eventual com não-contribuinte

POR SERGIO CRISPIM

A despeito da Constituição da República em seu texto original ter previsto no artigo 155, § 2º, inciso IX, alínea a, que o ICMS – Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços – incidirá também sobre a entrada de mercadoria importada do exterior, ainda quando se tratar de bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal se firmou no sentido de que não haverá incidência da referida exação nos casos em que o adquirente do produto vindo de outro país seja não-contribuinte do imposto.
A justificativa utilizada pelo Supremo Tribunal Federal se limitou, portanto, aos casos em que o destinatário das mercadorias seja um prestador de serviços sujeito à tributação do ISS ou ainda pessoa física.
O entendimento foi consagrado nos recursos extraordinários de nº 191346, 202714, 196472, 203075, 185789 e 266921, todos anteriores ao ano de 2001 e, portanto, com julgamentos concluídos antes da edição da Emenda Constitucional de nº 33, cuja redação, entre outros, alterou a disposição da alínea a do inciso IX do § 2º do art. 155 da Carta Republicana, para prever o seguinte, verbis:
IX – incidirá também:
a) sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço;
Os recursos extraordinários acima mencionados deram origem à Súmula 660, cuja publicação primeira se deu no Diário de Justiça de 09 de outubro de 2003, com a seguinte redação, verbatim:

NÃO INCIDE ICMS NA IMPORTAÇÃO DE BENS POR PESSOA FÍSICA OU JURÍDICA QUE NÃO SEJA CONTRIBUINTE DO IMPOSTO.

Ao se editar a súmula, ainda que posteriormente à Emenda Constitucional 33, surgiu discussão a respeito do teor da emenda e se doravante será necessária a revisão jurisprudencial e do próprio enunciado 660 do Supremo Tribunal Federal, o que agora, na relatoria do Ministro Eros Grau, está suscitado pelo Estado do Rio Grande do Sul do recurso extraordinário 594996, cuja repercussão geral foi reconhecida com ementa que vale a pena transcrever:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. ICMS. EC 33/2001. O debate travado nos presentes autos diz com a incidência de ICMS na importação de equipamento médico por sociedade civil não-contribuinte do imposto, após a Emenda Constitucional nº 33/2001, que conferiu nova redação ao disposto no artigo 155, § 2º, IX, alínea a, da Constituição do Brasil. Repercussão geral reconhecida.
No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Corte originária da controvérsia, o posicionamento tomado em favor da Clínica Radiológica da Cidade de Passo Fundo Ltda., veio em reiteração de sucessivas decisões que aquele sodalício já tomou em casos análogos e sempre no sentido de confirmar o entendimento de que ainda que a habitualidade não seja mais essencial no texto constitucional para fins de se aferir a incidência do ICMS do importador, referida exação não pode ser exigida de quem não seja contribuinte.
A ementa do acórdão objeto do recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ficou assim redigida, verbatim:
TRIBUTÁRIO E CONSTITUCIONAL. ICMS. IMPORTAÇÃO DE EQUIPAMENTO MÉDICO POR SOCIEDADE CIVIL. NÃO-CONTRIBUINTE. OPERAÇÃO MERCANTIL POSTERIOR À EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 33/01. INEXISTÊNCIA DE LEI ESTADUAL REGULAMENTANDO. IMPOSTO INDEVIDO.
De acordo com precedentes do STF, a importação de equipamento médico por sociedade civil, destinado à prestação de serviços não está sujeita ao recolhimento do ICMS, se o bem importado não se destina ao comércio, mas à prestação das próprias atividades profissionais de quem o está importando. Ainda que a habitualidade não mais seja reputada essencial para a incidência do ICMS na importação de mercadorias e bens, não pode ser tributado o importador que não seja contribuinte. Ademais, a superveniência de alteração na Constituição não tem o condão de constitucionalizar a legislação estadual que antecedeu a modificação introduzida pela EC nº 33/01 e, inexistindo nova lei regulando a atual hipótese de incidência do ICMS, não há falar na exigência de tal tributo nem em restabelecimento da eficácia da Lei Estadual nº 8.820/89. APELAÇÃO DESPROVIDA.
Interessante observar que o posicionamento encontra-se efetivamente consolidado no âmbito daquela corte sulina em razão de reiterados acórdãos e tanto é assim que se lançou mão no caso do permissivo do artigo 557 do Código de Processo Civil na edição da decisão via posicionamento unipessoal.
O Superior Tribunal de Justiça, por seu turno, adotou postura mais conservadora e sem maiores aprofundamentos, o relator do recurso especial nº 1.018.543-RS, Ministro Francisco Falcão, apesar de não contar com jurisprudência dominante, ainda assim lançou mão do artigo 557 do CPC para determinar a reforma do acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sob o singelo argumento de que a entrada do bem (equipamento de radiologia) importado do exterior deu-se posteriormente à Emenda 33/2001, conforme demonstrado na petição inicial.
Daí que o Supremo Tribunal Federal, ao tratar do julgamento do recurso extraordinário nº 594.996-RS, já com repercussão geral reconhecida, poderá adotar alguns caminhos que levarão a conclusões diferentes a respeito da temática.
Poderá dizer que razão assiste ao Superior Tribunal de Justiça, o que não se coadunará com a tradição da corte de bem argumentar através de judiciosos estudos. A conclusão nessa hipótese será de aceitar que a lei complementar nº 114/2002, ao criar nova modalidade de contribuinte, já traz em seu bojo a completa de exigência tributária, o que, a meu ver não ocorre, conforme explanação dada mais adiante.
Outra hipótese será a de reconhecer que a pessoa física ou jurídica não contribuinte do imposto sobre a circulação de mercadorias e prestação de serviços – ICMS foi finalmente alcançada pelo texto constitucional na redação dada pela emenda constitucional nº 33/2001 e que a lei complementar nº 114/2002 estipulou de forma terminante quem são os novéis contribuintes e que falta apenas a cada ente da federação regulamentar a matéria via legislação ordinária. Esse entendimento faria coro a alguns doutrinadores com relação à necessidade da matéria ser regulada no âmbito dos estados da federação para passar a ser exigível o tributo, mas deixaria de responder adequadamente à pergunta: contribuinte eventual do imposto é o mesmo que não contribuinte do imposto?
A idéia de que o imposto ICMS ainda está pendente das respectivas regulamentações no âmbito dos estados da federação está presente em importante escólio de Hugo de Brito Machado, cuja leitura recomendo já que a transcrição aqui não se faz possível.
O entendimento daquele jurista é o mesmo adotado em outras oportunidades pelo Supremo Tribunal Federal, conforme se lê do voto do eminente Ministro Eros Grau:
Por outro lado, é de ser observado que somente a previsão constitucional de incidência do ICMS, mesmo na hipótese de operação realizada por quem não seja contribuinte habitual do imposto, na importação do exterior por pessoa física ou jurídica, não é bastante em si para legitimar a exigibilidade da exação. É imprescindível, ante os princípios em que se apóia o ICMS, a edição de legislação ordinária disciplinando a maneira como será realizada a compensação, tendo em consideração a necessidade de ser observado o princípio da não-cumulatividade do ICMS, o que não se tem na espécie.
Como dito anteriormente, o Supremo Tribunal Federal, nesta hipótese, estará respondendo de forma adequada do ponto de vista da regulamentação dos impostos e atribuindo a cada ente da federação a competência legislativa que lhes compete. Não apenas isto, mas estará corrigindo equívoco horrendo consignado no acórdão do Superior Tribunal de Justiça acerca da matéria.
Entretanto, não estará a responder ainda a questão mais importante relativa ao tema: contribuinte eventual do imposto é o mesmo que não-contribuinte do imposto?
Quanto à diferenciação entre contribuinte e não contribuinte, recomendo a leitura de alguns novos doutrinadores que tratam do assunto com bastante propriedade. Mas devo considerar também que os entes da federação estão famintos por novos recursos e não vão deixar passar em brancas nuvens o assunto, até mesmo porque tem eles importante argumento no sentido de que a desoneração da carga tributária é destinada à exportação e não à importação e que a emenda constitucional nº 33/2001 teria sido editada justamente para corrigir esta distorção.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal somente estará dando respaldo a alguma política tributária de boa qualidade se a cobrança do imposto no caso vier acompanhada de políticas governamentais mais concretas no sentido de atrair indústrias do setor e de desenvolver tecnologias brasileiras que possibilitem a criação de um parque industrial no âmbito nacional. Perceba-se, entretanto, que a Emenda Constitucional 33 é do ano de 2001, ou seja, passados quase nove anos nenhum governo nada fez nessa direção, o que nos leva a crer que apenas se pretendeu ali criar nova hipótese de incidência com o objetivo de arrecadar mais.
Daí que o ativismo judicial que tanto tem marcado a atuação da nossa Corte Constitucional poderá valer no caso para condicionar a instituição do referido imposto à hipótese do mercado nacional gerar indústrias de equipamentos similares. A cobrança do ICMS tal como previsto na Emenda Constitucional 33 passaria a ter caráter protetor do parque industrial brasileiro.
O Supremo parece já ter a resposta ao tema e nesse sentido é importante a leitura de alguns excertos do Recurso Extraordinário n.º 203.075/DF – Tribunal Pleno, j. 29.10.1999 – versando sobre a importação de veículo. Proclamou a respeito o Min. Maurício Corrêa, designado redator para o Acórdão:
“(…)
2. Estabelece o artigo 155, inciso II, da Constituição Federal, que compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir imposto sobre ‘operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior’, dispondo seu inciso IX, alínea ‘a’, primeira parte, que o ICMS incidirá também ‘sobre a entrada de mercadoria importada do exterior, ainda quando se tratar de bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento’.
3. Do referido preceito sobressaem expressões significativas para se determinar a extensão da norma constitucional e a exigibilidade ou não do tributo na importação de bens por pessoa física: I) operação relativa à circulação de mercadoria; II) mercadoria; III) estabelecimento.
4. Desse modo, é de fundamental importância que se busque interpretar os princípios gerais de direito privado, para pesquisar a definição, o conteúdo e o alcance dos conceitos utilizados pela Constituição Federal que, por estarem prescritos na legislação comum, não podem ser alterados pela legislação tributária (CTN, artigos 109 e 110).
5. Com efeito, são hipóteses de incidência do ICMS a operação relativa à circulação e à importação de mercadorias, ainda quando se trate de bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento. No ponto, o termo operação exsurge na acepção de ato mercantil; o vocábulo circulação é empregado no sentido jurídico de mudança de titularidade e não de simples movimentação física do bem, e a expressão mercadoria é atribuída a designação genérica de coisa móvel que possa ser objeto de comércio por quem exerce mercancia com freqüência e habitualidade.
6. Por outro lado, cumpre observar que o termo consumo, empregado pela Constituição Federal ao dispor que o imposto incidirá também na importação de mercadoria, ainda que se trate de bem destinado a consumo ou ativo fixo do estabelecimento, diz respeito ao estabelecimento comercial e não à pessoa física que importa bens para seu gozo e fruição. A expressão estabelecimento tem o mesmo sentido do que lhe confere o Código Comercial (C. Com., artigo 1º, III, 2ª parte), de tal modo a designar o próprio local ou o edifício em que a profissão é exercida, compreendendo todo o conjunto de instalações e aparelhamentos necessários ao desempenho do negócio ou da profissão de comerciante, componentes do fundo de comércio.
7. Fixadas essas premissas, há que se concluir que imposto não é devido pela pessoa física que importou o bem, visto que não exerce atos de comércio de forma constante nem possui ‘estabelecimento destinatário da mercadoria’, hipótese em que, a teor do disposto no artigo 155, IX, alínea ‘a’, da Constituição Federal, o tributo seria devido ao Estado da sua localização (RE n.º 144.660-RJ, Pleno, redator para o acórdão Min. Ilmar Galvão, DJU 21.11.97).
8. Observo, ainda, a impossibilidade de se exigir o pagamento do ICMS na importação de bem por pessoa física, dado que, não havendo circulação de mercadoria, não há como se lhe aplicar o princípio constitucional da não-cumulatividade do imposto, pois somente ao comerciante é assegurada a compensação do que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.
9. Assim sendo, creio não poder afastar-me do que penso ser a melhor exegese para o cabal entendimento da regra constante da letra a, do inciso IX, do artigo 155 da Carta da República. De fato, se lido de um só fôlego o texto, poder-se-á extrair que o imposto é devido por se tratar de bem destinado a consumo, hipótese em que, a meu ver, se desfaz essa afirmação ao concluir o preceito com peremptória negativa desse primeiro enunciado, tanto mais que o imposto só é devido ao Estado onde estiver situado o estabelecimento destinatário da mercadoria ou serviço.
10. A toda evidência, pessoa física, como é o caso dos autos, ‘de carne e osso’, não é pessoa jurídica para se transformar em estabelecimento destinatário da mercadoria!
Outra decisão do Pretório Excelso no mesmo sentido:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPORTAÇÃO DE BEM POR SOCIEDADE CIVIL PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS. EXIGÊNCIA DE PAGAMENTO DO ICMS POR OCASIÃO DO DESEMBARAÇO ADUANEIRO. IMPOSSIBILIDADE. 1. A incidência do ICMS na importação de mercadoria tem como fato gerador operação de natureza mercantil ou assemelhada, sendo inexigível o imposto quando se tratar de bem importado por pessoa física. 2. Princípio da não-cumulatividade do ICMS. Importação de aparelho de mamografia por sociedade civil, não contribuinte do tributo. Impossibilidade de se compensar o que devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal. Inexistência de circulação de mercadoria. Não ocorrência da hipótese de incidência do ICMS. Recurso Extraordinário não conhecido.
O inteiro teor dos julgados aqui parcialmente transcritos possibilita amplo conhecimento sobre a matéria, mas não cabe no conteúdo desse trabalho menção mais extensa.
Em conclusão, assevero que o Supremo Tribunal Federal está diante de boa oportunidade para corrigir o equívoco em que laborou o Superior Tribunal de Justiça e encerrar de vez a cobrança do ICMS sobre não-contribuintes e evitar nova carga de tributos em quem empreende e gera empregos. Está aberta também a possibilidade de considerar o não-contribuinte como contribuinte eventual, nos termos da Emenda 33, o que, imagino, seria providência bem-vinda apenas após a implementação de indústrias nacionais que viessem a dar início à produção de equipamentos similares.

Julgamento de 11/06/2009.
Apelação e remessa 70028944460, rel. Des. Arno Werlang, j. 01/04/2009.
Aspectos fundamentais do ICMS, 2ª edição, São Paulo: Dialética, 1999, p. 19, 22/24.
Ag. Reg. no RE nº 401.558-8/SP, Rel. Min. Eros Grau, j. em 21.09.04, DJU de 15.10.04
BARUFALDI, Norberto e DA PAIXÃO JR., Sebastião Ventura Pereira. A Emenda Constitucional nº 33/01 e a Incidência do ICMS sobre Importação de Bens por Pessoa Não Contribuinte. Revista de Estudos Tributários. Porto Alegre: n. 39, set.-out. 2004, p. 25-35
Recurso Extraordinário n.º 185.789/SP, Min. Maurício Corrêa, j. 03/03/2000



Um comentário

  1. Anonymous disse:

    As decisões monocráticas, em substituição às deliberações colegiadas, deveriam ocorrer apenas quando houvesse jurisprudência dominante sobre o tema versado no recurso. Todavia, não tem sido essa a prática nos tribunais superiores, que lançam mão dessas decisões para matérias inéditas, ou mesmo contrariando precedentes do próprio tribunal. A questão tratada nessa postagem é um grande exemplo disso. Espero que o STF corrija isso.