Por José Miguel Garcia Medina
13.12.16

A crise de autoridade dos juízes

 

Por José Miguel Garcia Medina

Não sou juiz. Sou escritor, professor, advogado. Mas me sinto no dever de falar dos juízes do STF. Sobretudo porque este texto é um manifesto em defesa dos juízes.

Isso não quer dizer que os juízes gostarão deste meu texto. Cá entre nós, muitos juízes não gostam que falem sobre como eles devem atuar, assim como os professores não gostamos que se intrometam em nossa liberdade de cátedra, e os advogados não gostamos que digam como devemos advogar. (Nem falarei dos escritores de livros jurídicos; aqui, a coisa é mais difícil: quem discorda de uma opinião muitas vezes é considerado um ignorante, burro mesmo, ou, no mínimo, um sujeito a serviço das forças do mal…)

Sinto-me, no entanto, não no direito, mas no dever de escrever a respeito dos juízes. Como professor e escritor de direito constitucional e processual civil, eu já me bastaria, já estaria, por assim dizer, credenciado a tanto. Como advogado também (afinal, o art. 133 da Constituição, antes de dar ao advogado prerrogativas, impõe a ele o dever de zelar pela administração da justiça). Mas sinto-me no dever de escrever isso especialmente como cidadão. Cidadão, esse ser abstrato que é lembrado apenas como eleitor, e em épocas de eleição. Cidadão, que, para quase todos os políticos, não representa nada além disso: o sujeito a ser ludibriado em troca de um voto.

Mas, vamos lá: falemos dos juízes.

Vi-me no dever de escrever a respeito ao ler a reportagem publicada na edição de 10/12/2016 no Estadão. O título da reportagem/entrevista, ‘Marco Aurélio Mello acabará entrando para a história pela porta dos fundos’, é boa síntese do que está ali.

Como chegamos a esse ponto? Como chegamos ao ponto em que um membro do legislativo, um chefe de um dos poderes da república, sente-se à vontade para dizer que um juiz da Corte mais alta do país deve ser considerado incapaz de julgar, deve ser considerado um atrapalhado?

Voltemos um pouco no tempo.

Há anos – muitos anos, aliás – tenho sustentado que a autoridade do juiz não deve basear-se na coerção (essa foi uma das “teses” que defendi em minha tese de doutorado, que apresentei em 2001, sobre o conceito de tutela mandamental). Isso não quer dizer que autoridade não deve ter à sua disposição meios de coerção de que possa fazer uso, caso sua decisão não seja cumprida ou sua ordem não seja obedecida. Mas a coerção deve decorrer da autoridade, e não o contrário (lembro-me de um escrito de Hannah Arendt, em seu “Entre o passado e o futuro”, que citei na tese que apresentei: “onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou”).

Nas últimas duas décadas, “matamos” o conceito “puro” de tutela mandamental. Outrora, o conceito de tutela mandamental assentava-se na ordem, na autoridade; hoje, prepondera a orientação (a meu ver, equivocada), de que a tutela mandamental assenta-se na coerção.

Se devo respeitar a decisão judicial em razão da coerção, tudo passa a ser um jogo de forças: não respeito o juiz, mas temo a multa diária; logo, a depender do valor da multa, considero mais conveniente descumprir a decisão judicial. Pior: se sei que o valor total da multa, ao final, pode ser reduzido (embora haja controvérsia, essa orientação é dominante na jurisprudência), aí sim é que não cumprirei a decisão judicial (esse estado de coisas é que está à base do que inserimos no anteprojeto do novo CPC, que, na redação aprovada, consta do art. 537, § 1.o).

O mesmo modo de pensar pode ser empregado ao se falar, p.ex., do respeito vertical aos precedentes.

Escrevi, em tempos pré-históricos, algo contrário à súmula vinculante. Antes da aprovação da EC 45/2004, eu afirmava que as súmulas vinculantes não seriam respeitadas, se o STF não se preocupasse em editá-las com base em sólidos fundamentos: “O assunto, portanto, diz respeito à credibilidade, à autoridade, à respeitabilidade das decisões proferidas pelos órgãos do Poder Judiciário perante os cidadãos, perante os demais órgãos do Estado e, ainda, dentre os próprios juízes das instâncias inferiores. A questão que se coloca é a de se saber se uma orientação jurisprudencial deve se firmar pela autoridade de seus argumentos ou pela imposição coercitiva. Ou, com outras palavras, se as decisões judiciais devem ser acatadas porque convincentes, aos olhos das partes e da sociedade como um todo, ou se devem ser meramente suportadas, mesmo que com isso não se alcance a paz social.” O texto foi publicado em 2003, na revista eletrônica Consultor Jurídico. Hoje, todos vemos que as súmulas vinculantes são um fracasso: o STF as edita timidamente, ciente de que tendem a ser descumpridas, o que levará a que se ajuízem enxurradas de reclamações (há manifestação contundente do Min. Teori, dentre outros, nesse sentido).

Se isso é assim em relação aos enunciados de súmula vinculante, por que não o seria com os assim chamados “precedentes qualificados”? Também aqui, a meu ver, é indispensável que a decisão deva ser considerada um precedente não apenas “formal”: o precedente deve ser reconhecido como tal, substancialmente. Uma decisão mal fundamentada, baseada em argumentos frágeis, superficiais, morais ou políticos, tende a ser superada, desobedecida.

Aí está o problema. O novo CPC exige que a jurisprudência seja uniforme e estável, e impõe que às decisões de tribunais se verguem os órgãos que os compõem e os órgãos inferiores.

Não se vê, porém, ainda, e salvo poucas exceções, preocupação em se criar decisões modelares, fundadas em argumento de princípio. Não raro, o próprio STF profere decisões que apelam a argumentos morais, alinhados a ponderações valorativas, típicas de sustentações políticas, do que é mais conveniente, do que se pensa pessoalmente sobre as questões da vida e do mundo. Deixa-se o pensar o direito de lado – embora o direito pudesse servir de base para o que se pudesse decidir – e vai-se longe, vai-se para outros campos, a fim de se decidir. Os argumentos fundados em valores, indo à moral para além do direito, são maleáveis, fluidos, com alto grau de variação, no tempo, no espaço, em relação às pessoas, à sua formação, à sua tendência, aos viéses que manifestam. Passo a olhar o juiz não como um juiz que decidiu, mas como uma pessoa qualquer que manifesta uma opinião religiosa, política. Se é assim, a decisão padece de pouca legitimidade jurídica intrínseca.

Constroem-se castelos nas nuvens. Decisões assim proferidas serão desobedecidas.

Mas há algo mais. Afinal, devo confiar não apenas na qualidade do julgado. Também aquele que profere a decisão deve transmitir confiança. Os juízes do STF transmitem confiança, tal como atuam, hoje?

O procedimento de tomada de decisão quanto aos problemas mais importantes, como regra, é realizado em um palco, para dizer o mínimo, curioso: os juízes da mais alta Corte, diante das câmeras, votam longamente, valem-se de argumentos muitas vezes não jurídicos, atacam-se, dirigem-se aos demais juízes da Corte de modo pejorativo.

Que dizer do que se faz fora do Tribunal? Longe de questionar a vida pessoal dos ministros (que não me interessa), indago aqui sobre as manifestações dos juízes em relação à sua função, sobretudo à função que desempenham no Tribunal. Não se trata, apenas, de dizer o que é ou não conveniente. Posso, como juiz da Corte superior, antecipar minha opinião sobre um caso, às redes de televisão? Posso, como juiz do Tribunal que tem por razão de existir a guarda da Constituição, insultar meus colegas de trabalho, criticar o que fazem, o que decidiram, tratá-los como incapacitados ou pessoas malignas, em entrevistas às revistas e jornais?

Qualquer pessoa, ainda que seja uma criança, não confia em alguém que se porta assim. Quem não transmite credibilidade não tem autoridade. Quem não tem autoridade não é respeitado. E toda medida tomada para fazer valer a decisão que quem não merece ser respeitado acaba sendo uma violência.

É o momento de todos nós nos ocuparmos disso: temos que resgatar a autoridade dos juízes. Juízes não respeitáveis não sustentam um Estado constitucional, democrático e de direito, que se ocupa de realizar direitos fundamentais. Temos que pensar em modos de fazer com que os juízes voltem a ser respeitados. Sou escritor, professor e advogado, e, como tal, sempre me manifestei nesse sentido. Quem lê o que escrevo, quem assiste as minhas aulas e quem me acompanha na advocacia sabe disso.

Penso que isso deve ser feito não apenas por quem é escritor, professor, advogado. Penso que todos os juízes brasileiros deveriam se manifestar sobre o modo como os juízes do STF estão se portando. A doutrina tem sua responsabilidade, os advogados têm sua responsabilidade, os professores de direito têm sua responsabilidade, mas, a meu ver, a manifestação mais contundente deveria ser tomada pelos próprios juízes.

Não podemos mais admitir que os juízes de nosso Supremo Tribunal Federal continuem a corroer a confiança que todos devemos ter nos juízes. Repito e concluo: temos, todos, que atuar de modo a resgatar a autoridade dos juízes.

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José Miguel Garcia Medina, professor titular da Universidade Paranaense e professor associado da Universidade Estadual de Maringá, doutor e mestre em direito pela PUC-SP, advogado.

Texto publicado originalmente no Facebook do autor.

Foto: José Cruz/Agência Brasil.



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