Por Saul Tourinho Leal
25.03.14

O Constitucionalismo da Esperança

 

“Esperança é uma arma poderosa e nenhum poder na Terra pode lhe privar dela” – escreveu Nelson Mandela em 23 de junho de 1969, da prisão Robben Island, numa carta a sua então esposa, Winnie Mandela.

Dia 15 de dezembro de 2013, aos 95 anos, ele seria sepultado em Qunu, uma aldeia num vale estreito repleto de campinas, cortado por riachos de água cristalina e rodeado de colinas verdejantes. Lá, Madiba passou a infância na companhia de seus pais.

A atmosfera da África do Sul, ao contrário do que se supunha, era de celebração. Não havia desespero. Todos reverberavam um sentimento de profundo orgulho.

O jovem da etnia Xhosa virou um charmoso advogado militante e, posteriormente, um ativista político capaz de grandes renúncias pelo compromisso de livrar seu povo do regime do apartheid. De Soweto, nos arredores de Johannesburgo, aquele homem alto, forte, carismático, sedutor, praticante de boxe, que cultivava hábitos refinados, deu uma demonstração do seu caráter diante da condenação iminente à pena de morte: “Lutei contra a dominação branca e lutei contra a dominação negra. Tenho cultivado o ideal de uma sociedade livre e democrática na qual todas as pessoas vivem juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal no qual deposito a esperança de viver e alcançar. Mas se for preciso, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer”.

O juiz converteu sua pena por crime de sabotagem em prisão perpétua e ele saiu dali acorrentado pelas mãos e pés, vestindo a roupa de guerreiro tradicional à sua etnia.

Quase três décadas depois, livre, Nelson Mandela introduziu na sua agenda a proposta de reconciliação. “Peguem suas armas, suas facas, suas ‘pangas’, e joguem ao mar. Eles me deixaram preso 27 anos e eu os perdoei. Se sou capaz de perdoar, vocês também são!”- ordenou, em cadeia nacional de televisão em 1990, quando o país se desmanchava em sangue na luta entre brancos e negros.

“Quem defende a reconciliação e a paz não é um fracote com sentimentos reprimidos e vontade controlada, mas alguém que ama apaixonadamente a vida” – afirma Jürgen Maltmann, para quem “uma Ética da Esperança na plenitude da vida resiste à cultura da unidade global e conserva a diversidade das culturas, porque nelas residem as possibilidades do futuro”[1].

Esse sentimento foi levado para a Constituição. Basta ouvir a melodia do seu preâmbulo: “Nós, o povo da África do Sul, Reconhecemos as injustiças do nosso passado; Honramos aqueles que sofreram por justiça e liberdade em nossa terra; Respeitamos aqueles que trabalharam para construir e desenvolver o nosso país, e Acreditamos que a África do Sul pertence a todos que nela vivem, unidos na nossa diversidade”.

Eu estava na Cidade do Cabo e uma grande homenagem seria prestada. O Grand Parade diante da sede do Parlamento era anunciado há dias. Estava decidido a acordar cedo naquele domingo, pegar a van que faz o transporte público e ir até o centro levar flores. Eu tinha levado uma bandeira do Brasil e achei por bem também deixá-la lá.

A esperança é o sentimento-raiz do constitucionalismo contemporâneo da África do Sul. O processo de elaboração da Constituição foi marcado pela convicção de que o medo havia dado espaço para a crença sincera na superação das dores do passado.

A associação entre medo e esperança encontra ressonância no pensamento de Spinoza: “Se concebemos que uma coisa que está por vir é boa e pode ocorrer, daí a mente adquire essa forma que denominamos esperança e que não é mais que uma certa espécie de alegria mesclada com um pouco de tristeza. Se, pelo contrário, julgamos que a coisa que pode ocorrer é má, daí vem à nossa mente a forma que denominamos medo”[2] – anota.

No momento em que eu entrei na fila das condolências, senti um sincero sentimento de perda. Mandela não era meu avô, nem um ente querido, sequer o líder do meu país, mas era difícil não me conectar a ele, a suas idéias, ao seu legado e àquela atmosfera tão única.

Eu vi flores, cartas, bandeiras dos mais variados países, cartolinas com desenhos de crianças, muitas delas com corações feitos em lápis de cor. Vi também fotos de Mandela, cartazes com suas frases mais famosas e recortes de jornais.

Enquanto percebia o valor de todas aquelas demonstrações de afeto, atrás de mim um pai guiou sua filha pequena, branca como a neve e com os lisos cabelos da cor de ouro, até o alambrado onde tudo estava depositado. A criança segurava um cão de pelúcia branco, sorridente, dentro de uma caixa plástica transparente. Ela deixou o cão ali, sobre um mundo de flores. Então olhou rindo para seu pai e seguiu. “Era o brinquedo predileto. O amigo do coração. Ela quis que Madiba não se sentisse sozinho no novo lar” – justificou o pai, diante do olhar inconveniente e insistente que eu não consegui controlar.

Para Tomás de Aquino, a esperança tende em direção a algum bem, como àquilo que seja possível obter com alguma certeza.  “Que seja bom, pelo qual difira do temor; que seja um bem futuro, pelo qual difira da alegria e do prazer; que seja um bem difícil, pelo qual difira do desejo; que seja um bem possível, pelo qual difira do desespero” – registra.

Igualdade. Esse era o bem primeiro a ser assegurado por aquele sentimento de esperança catalisador do processo de elaboração da Constituição de 1996. “Nunca perdi a esperança que essa grande transformação ocorreria[3]” – afirmou Nelson Mandela.

Só a esperança seria capaz de assegurar a continuidade da luta contra o apartheid. “A esperança não aflige a alma, pois é mais causa de prazer enquanto faz a coisa distante estar, de algum modo, presente, conforme a fé de adquirí-la” – afirma Tomás de Aquino, destacando que “o movimento natural quanto mais se aproxima do término, tanto mais se lança. E é o que semelhantemente ocorre com a esperança” [4].

A África do Sul mostrou que a esperança é uma emoção fundamental para um povo oprimido. Ela propicia o engajamento popular que mantém vivo o senso de comunidade, o ideal ubuntu sobre o qual tratamos no capítulo “Langa: O laboratório do direito à moradia”. Esse sentimento gera efeitos virtuosos. O personagem de Charles Dickens, em um dos seus mais célebres romances, disse: “Ao habituar-me às minhas esperanças, comecei, sem sentir, a notar o efeito delas sobre mim mesmo e sobre os que me cercavam[5].

Ao final da cerimônia de sepultamento, abri a bandeira do Brasil e a pus sobre as costas. Abaixei-me para deixar o buquê de flores que trazia comigo. Olhei novamente para todas as demonstrações de afeto. Então, me levantei. Caminhei um pouco com a bandeira nas costas enquanto procurava um espaço para fixá-la de forma a ficar visível.

Foi quando jornalistas me abordaram: “Por favor! O senhor poderia dar uma declaração?” – me disse o apresentador da ETV, uma emissora sul-africana de grande reputação. “Vou fixar essa bandeira e saio logo” – respondi, no que ele disse: “Fazemos questão que o senhor fale conosco segurando a bandeira do seu país”.

Jürgen Moltmann afirma que o agir sustentado pela esperança é um fazer livre, não forçado, que concede à fé não só asas, mas leva também à resistência e à persistência. Tais características a diferenciam “de uma simples expectativa ou de uma espera paciente. Onde todos os sentidos ficam atentos, a razão humana se torna perturbadora de um saber transformador”. Segundo ele, “nosso senso de possibilidade é estimulado pelo medo ao menos com a mesma intensidade do que pela esperança. No medo, está em jogo a nossa vida; na esperança, uma vida plena”. Essa esperança “chama as pessoas a sair de sua apatia e de seu pessimismo e a participar ativamente dos movimentos de libertação”.

Quando Moltmann afirma que a esperança é diferente de uma simples expectativa, ele deixa claro o papel do engajamento popular, instrumento fundamental de movimentação rumo à conquista de direitos. “A esperança desperta o nosso senso de possibilidade” – diz. Isso resulta no que se chama, na África do Sul, de constitucionalismo transformador que, para Karl Klare, é comparável a um agente cuja missão é induzir grandes mudanças sociais por meio do processo político, sem violência e com base legal.

O papel da esperança, portanto, é manter politicamente vivos aqueles que, diante do cinismo dos poderosos, das injustiças das leis e da indignidade das condições de vida impostas pelos maus líderes, começam a se sentir exaustos e a pensar em desistir.

No apartheid, prevalecia o desespero. Foi a esperança por um mundo igualitário que fez com que o país virasse esta página. Paolo Rossi chama a atenção para o fato de que a humanidade sempre oscilou “numa situação de incerteza, entre a esperança e o desespero” e que em muitos momentos de pessimismo generalizado há o “desaparecimento de toda e qualquer possível, mesmo tênue e pálida esperança”[6].

Hoje, graças a uma Constituição generosa, ao engajamento popular e ao exercício da jurisdição constitucional, o país tem dado saltos quanto à concretização de direitos que até bem pouco tempo eram utopias, tornando possível o empoderamento dos mais variados grupos, base de toda sociedade democrática e politizada.

Se foi a esperança que manteve a África do Sul ativa politicamente a ponto de reverter os males do apartheid, por que não abraçá-la? Como acreditar num amanhã melhor sem sermos guiados por um sentimento sincero e forte de esperança?

Manuel Castells fala de um mundo de aflição econômica, cinismo político, vazio cultural e desesperança pessoal. Ele se refere ao Brasil de hoje. Todavia, destaca que foi a humilhação provocada pelo cinismo e pela arrogância das pessoas no poder, seja ele financeiro, político ou cultural, que uniu aqueles que transformaram medo em indignação, e indignação em esperança de uma humanidade melhor.

“De vez que uma característica distintiva da mente humana é a capacidade de imaginar o futuro, a esperança é um ingrediente fundamental no apoio à ação com vistas a um objetivo” – afirma Castells, mostrando o valor da esperança na luta dos cidadãos.

Nelson Mandela afirmou que “a coragem não era a ausência do medo, mas o triunfo sobre ele”. Elaborar, implementar e consolidar uma Constituição é uma missão que não se executa sem o maquinário da coragem. Sai o medo, entra a esperança.

Nós, brasileiros, devemos colocar o medo de lado e marcharmos rumo às nossas aspirações legítimas por um governo menos cínico, um capitalismo mais humano e o respeito à dignidade dos nossos concidadãos.

Para Manuel Castells, “quando o individuo supera o medo, emoções positivas assumem o controle, à medida que o entusiasmo ativa a ação, e a esperança antecipa as recompensas por uma ação arriscada”[7].

Eu já havia assinado o Livro de Condolências e saído da área reservada às homenagens. Estava na praça diante da Houses of Parliament, e o jornalista da ETV pedia para que o cinegrafista destacasse a Bandeira do Brasil.

“O que representa a morte de Nelson Mandela para o povo brasileiro?” – perguntou. Eu não sabia bem o que responder. Estava um pouco envergonhado por notar tantas pessoas olhando e um número considerável de jornalistas e fotógrafos. Outros profissionais, percebendo a movimentação, se aproximaram, incluindo uma jornalista do Die Burger, o mais conceituado jornal sul-africano. Simplesmente deixei sair.

“Ele foi um líder mundial extraordinário. Os brasileiros têm em seus corações os mesmos ideais defendidos por Mandela. De certa forma, a luta dele foi a luta da esperança, que é a nossa também” – declarei.

Eu recordava dos momentos de reflexão que tive num dos lugares mais lindo que já vi, sentado sobre grandes pedras, diante de um oceano infinito. O nome deste local, mais uma vez, nos remete para o ideal de Mandela: Cabo da Boa Esperança.

Este sentimento é tão poderoso que, mesmo Dante Alighieri, na Divina Comédia, ao descrever a entrada do inferno, põe o poeta Virgílio a ler a advertência: “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais!”. Sem esperança, vem o desespero, que é o próprio inferno.

Depois de ter esta experiência, achei por bem dividi-la com os brasileiros, levando adiante um ideal pela qual devemos, sim, lutar.

Neste ponto, a parceria com Os Constitucionalistas foi de fundamental importância. Na série Jurisdição Constitucional na África do Sul, tivemos seis encontros: 1) “Eu tenho HIV!” – disse o ministro da Corte Constitucional; 2) Emparedando a Corte Constitucional; 3) Langa: O Laboratório do Direito à Moradia; 4) Por que o Zimbábue e a África do Sul tomaram rumos tão diversos; 5) A Conversa com Albie Sachs; e 6) O Constitucionalismo da Esperança. O texto de hoje marca o nosso último capítulo.

Penso ter sido uma boa oportunidade de conhecer este fascinante país, os líderes que em variadas esferas influenciaram a marcha pela igualdade, sua Constituição e como a jurisdição constitucional oferta um rico laboratório para pesquisadores de todo o mundo que têm enxergado, no Constitucionalismo Global, uma área repleta de temas cativantes.

Não foi fácil manter viva a chama diante de tudo o que foi feito de cruel, opressor e repugnante nos países africanos durante o apartheid. A esperança foi o sentimento responsável por essa marcha motivadora.

“Hoje, todos nós, com a nossa presença aqui… outorgamos glória e esperança para uma liberdade recém-nascida” – disse Nelson Mandela, no ato de posse como presidente.

Dias antes, no salão do Hotel Carlton no centro de Johannesburgo, ele dividia o pódio com a senhora Coretta Scott King, esposa do outro grande guerreiro da liberdade, Martin Luther King Jr. Estavam, todos, unidos a uma multidão que comemorava a vitória nas eleições. O encontro era bastante simbólico.

Martin Luther King Jr, no discurso “Eu Tenho um Sonho”, finalizou com a frase: “Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança”. Esta firme convicção se tornaria imortal.

Por razões que só o tempo irá me mostrar, a vida me guiou para a Cidade do Cabo quando era possível prestar minhas homenagens a Nelson Mandela. Ao longo da solenidade, minha mente só pensava na mensagem deste homem e no quanto ela foi fundamental para o constitucionalismo atual daquele país.

De volta ao lugar onde deixou depositados seus momentos mais felizes, a remota aldeia de Qunu, Mandela, finalmente, descansou.

Qunu era tudo o que ele conhecia e ele a amava do modo incondicional como que uma criança ama seu primeiro lar. “Eu vi as choupanas simples e as pessoas com seus afazeres; o riacho onde eu havia mergulhado e brincado com os outros garotos; os milharais e pastagens verdes onde manadas e rebanhos pastavam preguiçosamente. Imaginei meus amigos caçando pequenas aves, bebendo o leite doce do úbere da vaca e se divertindo na lagoa localizada no fundo do riacho. Acima de tudo, meus olhos se puseram sobre as três choupanas simples onde eu havia desfrutado o amor e a proteção da minha mãe. Eram a essas três choupanas que eu associava a toda a minha felicidade, à própria vida” – escreveu Nelson Mandela, em suas últimas anotações.

Referia-se ao lugar para onde, tempos depois, seu corpo seria enviado, no sepultamento de um extraordinário homem que, sem ser um santo, nem buscar a perfeição, manteve viva a esperança por um amanhã mais justo. Um amanhã que é nosso também.

_________

Saul Tourinho Leal, doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, foi pesquisador-visitante na Universidade Georgetown no inverno de 2012. Seus estudos sobre Direito e Felicidade foram mencionados pelo ministro Celso de Mello, do STF, que os qualificou como “preciosos” no leading case que reconheceu o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo (ADPF 132). É membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB e autor dos livros Ativismo ou Altivez? O outro lado do STF (Fórum, 2010); Controle de Constitucionalidade Moderno (Impetus: 2010); e Katiba – Vivendo o Sonho do Quênia: O constitucionalismo da esperança na África contemporânea (Impetus: 2013).

O presente artigo é o sexto e último da série Jurisdição Constitucional na África do Sul.

Foto: Mandela Right to Sell Out?/Guardian Liberty Voice.

Notas:

[1] MOLTMANN, Jürgen. Ética da Esperança. Tradução de Vilmar Schneider. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 195.

[2] SPINOZA, Baruch de. Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar. Tradução e notas Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012, p. 109.

[3] MANDELA, Nelson. Longa Caminhada até a Liberdade. Tradução Paulo Roberto Maciel Santos. Curitiba: Nossa Cultura, 2012.

[4] AQUINO, Tomás. A caridade, a correção fraterna e a esperança. Questões Disputadas sobre a Virtude. Tradução de Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. Capinas: Ecclesiae, 2013, p. 198.

[5] DICKENS, Charles. Grandes esperanças. Tradução Daniel R. Lehman. São Paulo: Martin Claret, 2006, (Coleção a obra-prima de cada autor; 49. Série Ouro), p. 304.

[6] ROSSI, Paolo. Esperanças. Tradução Cristina Sarteschi. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 20.

[7] CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 19.



Um comentário

  1. JP disse:

    Uma pena ter acabado, tenho acompanhado a série de forma assídua :/