26.02.18
Supremo Tribunal Federal deve buscar a invisibilidade política
Por Rodrigo de Oliveira Kaufmann
Recentemente, em 28 de janeiro, a Folha de S.Paulo publicou uma contundente crítica do professor Conrado Hübner Mendes ao STF. Naquele artigo, o professor verbalizou a impressão de milhares de brasileiros — juristas ou leigos — com a forma de trabalho dos ministros do tribunal, dirigindo críticas à forma individualista, pessoal, incoerente e ativista com que alguns de seus membros decidiam e a maneira como a jurisprudência da própria corte era considerada (ou desconsiderada). Em sua opinião, o STF passou de “poder moderador a poder tensionador, que multiplica incertezas e acirra conflitos”. Havia ali, de fato, razões desenhadas de preocupação acerca das posições adotadas pelo STF, que, “ao abdicar de seu papel constitucional”, atacava o “projeto de democracia”.
O artigo do professor Conrado Hübner Mendes teve repercussão e mereceu considerações e respostas tanto de ministros do STF quanto de juristas[1].
Em texto intitulado “O perigo da simplista crítica de que ‘tudo é culpa do STF’”[2], o professor Lenio Luiz Streck fez a sua crítica da crítica. Em seu entendimento, o “fatalismo típico de um certo realismo jurídico” presente na posição do professor Conrado Hübner Mendes convolou-se em crítica simplista não institucional de quem apenas não concorda politicamente com o que decide o STF. O problema está, portanto, no fato de que o STF não se preocupa com a “integridade do direito”, de que o tribunal não busca “coerência sob um ponto de vista normativo”.
Embora reconheça a importância das observações externadas e de que ambos os juristas acertam em determinados aspectos, suas posições parecem desfocadas e proponho aqui uma outra abordagem.
Parto de três premissas fundamentais que considero importantes de serem identificadas e, com elas, pontuo o que me afasta das críticas anteriores: (i) não me parece possível realizar uma crítica construtiva sem que se estabeleça um paradigma ou uma referência de controle (obviamente, esse paradigma deve ser um modelo possível e concreto de tribunal); (ii) o STF não é — nem nunca foi — o somatório de seus membros, mas, ao contrário, são seus membros o resultado do que o STF é; e (iii) os problemas de legitimidade enfrentados pelo STF não podem ser adequadamente examinados com base no que se faz caso a caso ou na sua relação com a ciência do Direito, mas com base no seu protagonismo político.
Ao contrário de 20 anos atrás, hoje o STF é pauta de comentários de todos. Qualquer pessoa se sente com a autoridade suficiente para examiná-lo e julgá-lo, de criticar seus procedimentos e suas solenidades, de imaginar seus objetivos institucionais e o seu dever-ser no quadro de separação dos Poderes. Há quem diga que isso é bom porque representaria a democratização de uma instância judicial que era escondida. Porém, em princípio, há pouca vantagem no fato de o STF ter se transformado em assunto cotidiano. Os efeitos disso são evidentes para quem quiser examinar o problema para além da rasa demagogia: a democratização da crítica transformou-se em vulgarização do próprio tribunal, e as observações pouco pertinentes acerca do STF que se ouve e se lê nos jornais acabam por pautar, inclusive, o jurista constitucional, o historiador especializado, o estudioso do tribunal e de sua jurisprudência, o analista cuidadoso da institucionalidade do tribunal. Alguns de seus membros, desconhecedores da história do tribunal ou desinteressados de retirar dela algum ensinamento, acabam embarcando nessa tendência de diminuir a corte. O resultado disso é o caos de críticas levianas e pouco sofisticadas que já prejudicam, inclusive, a academia e os estudos de Direito Comparado.
Dou de barato, portanto, que na causa disso estão também os próprios ministros do STF, que, de maneira impetuosa, assumiram, nos últimos 15 anos, funções que nunca lhes couberam institucionalmente, que deixaram de debater no Plenário e com a serenidade necessária e povoaram indevidamente espaços públicos para o confronto de ideias e de opiniões, algo terrível para o próprio tribunal. Entretanto, esse não é o problema, mas apenas o efeito decorrente.
Meu ponto é que, a partir de 2002, o STF mudou, e foi essa mudança que resultou nesse rol de desvios e inconsistências procedimentais. Que mudança foi essa? O tribunal deixou de ser institucionalmente discreto, de ser politicamente humilde, deixou de ser juridicamente auto-limitador e assumiu, de maneira equivocada, as premissas sedutoras de um protagonismo político, na linha de um novo constitucionalismo proposto pela doutrina.
O mais grave disso tudo é que essa mudança desastrosa foi querida e forçada pela grande parte de nossos juristas e acadêmicos que viam naquele tribunal austero, conservador, altivo e recatado, sinais de atraso e de subdesenvolvimento jurídico. Essas vozes queriam ativismo em matéria de direitos fundamentais, queriam “coragem” em matéria política, queriam ministros mais militantes e criadores. Queriam um tribunal mais “aberto à sociedade” — como se essa fosse a sua função. O discurso constitucional majoritário desses últimos anos ajudou a encorpar esse trágico caminho: por meio da pretensa interpretação de princípios, o STF foi empurrado — e aceitou! — reescrever a Constituição e a não mais respeitar os sacros limites da separação de Poderes, da autonomia da vontade e da livre iniciativa. Tudo se relativizou, e o tribunal passou a ser populista.
Pois bem. O que hoje vemos é o resultado direto dessa mudança radical de paradigma, contra a qual muitos poucos se opuseram. Ministros que representavam essa virtude da formação anterior viraram símbolos de um período ultrapassado e uma nova geração de juristas significando o “novo” e o “moderno” no Direito Constitucional se fez presente no STF. A flexibilidade e a impetuosidade da academia e das modernas correntes jusfilosóficas substituíram, de maneira abrupta, a moderação e o cuidado institucional do antigo tribunal. O caminho “revolucionário” — por assim dizer — assumido pelo novo STF ocorreu na sua jurisprudência e na sua postura e também, como última fase, na postura de seus ministros. O que quero dizer com isso é que a história cobra um preço alto para quem quer fazer experimentalismo generalizado, especialmente a partir da entidade que deveria servir como guardião das instituições e dos princípios estruturantes previstos na Constituição.
Assim sendo, para além do comportamento decisório de cada um dos ministros ou de alguns dos membros do STF ou mesmo de eventuais desvios de postura que possam ser identificados, o problema não parece estar na falta de defesa ou construção da integridade do Direito ou na péssima dogmática jurídica aplicada nas decisões, mas antes no fato de que o STF ter aberto mão de sua humildade institucional e política, sem perceber que assim procedendo estava abrindo mão de sua própria autoridade e legitimidade. Essa autoridade perdida não será reconstruída com um arranjo procedimental, e pessoalmente acho impossível que o tribunal assuma adequadamente funções de árbitro ou de poder moderador sendo formado por juristas que genuinamente acreditam em uma função heroica e vanguardista do Poder Judiciário e da própria interpretação jurídica. Também não parece pertinente a esse tipo de problema uma proposta de solução que aposte em um melhor tratamento do “Direito” e de sua autonomia ou mesmo de uma melhor dogmática jurídica.
Precisamos reconstruir esse tribunal recluso em seu próprio prédio, limitado às suas reuniões plenárias, mais colegiado, menos propositivo; precisamos estranhar — e não aplaudir! — quando se arvora a tentar elucubrar acerca de “políticas públicas” ou propor leituras constitucionais muito inventivas. A verdadeira lástima se faz presente quando o STF quer fazer média com juristas e com a mídia e agir de maneira “politicamente correta”.
Se essa preocupação não estiver na base, se continuarmos a achar que o STF tem alguma função libertadora ou messiânica, de que é ele o responsável por algum tipo de “revolução” social ou jurídica, pouco importará o comportamento dos seus ministros ou seus eventuais desvios de jurisprudência e de procedimento. A crítica, de fato, precisa ser institucional, sob o risco de essa crítica se transformar em mera verbalização de uma paixão não correspondida ou de representar apenas uma rejeição pessoal a este ou aquele ministro.
Essa crítica institucional, entretanto, parece ser algo muito diferente de uma “crítica jurídica”. O STF não tem buscado a realização da “integridade do Direito”? Não tem tentado melhorar sua dogmática ou argumentação jurídica?
Em verdade, foi exatamente a tentativa de “corrigir” esses problemas normativos que fizeram com que o tribunal se distanciasse de sua função essencial de “resolver problemas”, de “destensionar” as relações entre Poderes e equilibrar as relações sociais por meio de interpretações não demonizadoras de certos direitos fundamentais. Por trás de cada decisão polêmica ou trágica do STF está uma “sofisticada” argumentação jurídica com um rico desenvolvimento de raciocínios jurídicos. Afirmar que o STF aplica mal determinada teoria do Direito é querer salvar a teoria e não o STF!
O ministro Roberto Barroso afirmou recentemente que “toda instituição deve ter a humildade de se repensar”. A obrigação vai muito além disso. Talvez tenha chegada a hora de o STF ser “repensado”. Todos nós — academia, doutrina, advogados, juízes, professores, membros do Ministério Público — formatamos indevidamente nos últimos anos o trajeto que tem levado o STF a essa posição melancólica de uma das instituições mais escarnecidas e banalizadas. O país, entretanto, nunca precisou tanto como agora de um tribunal invisível, de uma corte recatada e modesta que — antes de querer elevar direitos fundamentais e se preocupar tanto com a dignidade da “pessoa humana” — seja guardiã das instituições republicanas e da própria Constituição.
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Rodrigo de Oliveira Kaufmann é professor de Direito Constitucional e de Filosofia do Direito em cursos de graduação e pós-graduação em Brasília. Foi assessor e chefe de gabinete de três ministros do Supremo Tribunal Federal. Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Direito e Estado (UnB). É membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.
Artigo publicado originalmente na ConJur, edição 24.2.2018.
Foto: Nelson Jr./SCO/STF.
Notas:
[1] O ministro Roberto Barroso se pronunciou, embora de maneira discreta, reconhecendo que “toda instituição deve ter a humildade de se repensar”. Também o ministro Gilmar Mendes vem se pronunciando, mesmo que não necessariamente em resposta ao texto do professor Conrado Hübner, de que o STF não pode adotar uma posição meramente laudatária “da maioria” ou adotar o clamor público (veja “Em defesa do habeas corpus”, publicado na Folha de S.Paulo em 17/1/2018, e a entrevista concedida a Mônica Bergamo e publicada no mesmo jornal em 6/2/2018).
[2] Texto publicado na Folha de S.Paulo e na ConJur de 4/2/2018.