Por Jane Reis Gonçalves Pereira
2.04.16

Semipresidencialismo ou semiconstitucionalismo?

 

Por Jane Reis Gonçalves Pereira

Na atual crise política, uma das ideias que têm sido aventadas como solução é a mudança do sistema de governo, adotando-se o semipresidencialismo, que fracionaria o Poder Executivo entre o presidente eleito e um chefe de governo indicado pelo Parlamento. Não vou discutir aqui os defeitos do nosso sistema ou as virtudes da alternativa. O mais urgente é debater o que significa mudar as engrenagens políticas da Carta de 1988 com uma aguda crise política em curso.

Um princípio elementar dos sistemas republicanos é não permitir que quem está no poder altere as regras de seu exercício. Nesse sentido, qualquer debate sobre a mudança da equação política não deve ser realizado com a participação dos agentes que dela se beneficiarão. Por isso, mesmo que a proposta de mudar o regime apareça como resultado de um acordo entre governo e oposição, ela representará uma grave deslealdade com o pacto democrático. E a Constituição, que deveria servir para regrar a luta política, é reformulada para que os que se sentem constrangidos por seus comandos possam vencer a batalha da ocasião.

Modificar a engenharia constitucional com a máquina em funcionamento é uma prática que corrói o constitucionalismo e comporta riscos importantes. Um deles é incentivar que os agentes políticos passem a usar tal recurso para se manter no poder. Emendas e confecção de novas constituições para permitir reeleições de mandatários (como já aconteceu na Bolívia, na Venezuela e no Brasil) são exemplos que não devem ser reproduzidos ou banalizados. As reformas no sistema político pressupõem debate abrangente e sereno, que se revela inviável em cenário de crise. Mais importante, devem produzir efeitos apenas após as eleições seguintes, evitando assim que sejam pautadas pelo autointeresse e o casuísmo.

Cabe questionar, ainda, se um plebiscito ou referendo resolveria o problema do déficit de representatividade dos atuais mandatários. A resposta poderia ser afirmativa se não vivêssemos um momento turbulento, marcado pela oposição entre vilões e heróis de grupos políticos rivais. Como debater os prós e contras das reformas sem os associar aos protagonistas da crise? Uma discussão contaminada pelo personalismo e pela insinceridade de propósitos geraria mudanças estruturais com impactos importantes e persistentes.

Por fim, deve ser lembrado que as últimas décadas da história constitucional brasileira, marcadas trocas no controle político que seguiram o esquadro da Constituição de 1988, representam um luxo recente e singular.  Como disse Paulo Bonavides, “a história, nas repúblicas periféricas, é um cemitério de Constituições”. Ao olhar para o nosso passado e para os países vizinhos, veremos que mais comuns foram as trocas fora do marco institucional, promovidas para adaptar o texto constitucional às circunstâncias e às preferências conjunturais dos que estão no poder. Mudar o sistema de governo nesse momento seria como reformar a casa no meio de um terremoto.

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Jane Reis Gonçalves Pereira é professora adjunta de Direito Constitucional da UERJ. É juíza federal.

Artigo publicado originariamente no site Jota, edição 31.03.2016.

Foto: Reunião da Comissão de Impeachment (Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados).



Um comentário

  1. Inocêncio Mártires Coelho disse:

    A ponderação crítica desse texto, sincera e equilibrada, trouxe-me à lembrança o processo de alteração da Carta Imperial de 1824, regulada nos dispositivos transcritos abaixo. Talvez fosse o caso de se revisitar esses preceitos, não para repeti-los, anacronicamente, mas para retirar deles o que tem de mais expressivo, de resto como observado com perspicácia pela professora Jane Reis Gonçalves Pereira: “Mudar o sistema de governo nesse momento seria como reformar a casa no meio de um terremoto.”

    Art. 173. A Assembléia Geral no princípio das suas sessões examinará se a Constituição Política do Estado tem sido exatamente observada, para prover, como for justo.

    Art. 174. Se passados quatro anos, depois de jurada a Constituição do Brasil, se conhecer que algum dos seus artigos merece reforma, se fará a proposição por escrito, a qual deve ter origem na Câmara dos Deputados, e ser apoiada pela terça parte deles.

    Art. 175. A proposição será lida por três vezes com intervalos de seis dias de uma à outra leitura; e depois da terceira, deliberará a Câmara dos Deputados, se poderá ser admitida à discussão, seguindo-se tudo o mais que é preciso para formação de uma lei.

    Art. 176. Admitida a discussão, e vencida a necessidade da reforma do artigo constitucional, se expedirá lei, que será sancionada, e promulgada pelo Imperador em forma ordinária; e na qual se ordenará aos eleitores dos deputados para a seguinte legislatura que nas procurações lhes confiram especial faculdade para a pretendida alteração, ou reforma.

    Art. 177. Na seguinte legislatura, e na primeira sessão, será a matéria proposta, e discutida,e o que se vencer prevalecerá para a mudança, ou adição, à lei fundamental; e juntando-se à Constituição, será solenemente promulgada.

    Art. 178. É só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos Poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o que não é constitucional pode ser alterado sem as formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias.