15.10.09
O Supremo Tribunal Federal é uma Corte Constitucional?
POR FERNANDA LOHN
Uma corte constitucional é, por definição, um órgão do judiciário ou diverso, cuja principal função é julgar a constitucionalidade de leis, emitindo pareceres sobre elas e decretos dos poderes Executivo e Legislativo, em consonância com correta aplicação da Constituição. Já uma suprema corte tem caráter de última instância, de corte de apelação. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal – STF – não é autêntica corte constitucional, pois acumula funções de corte constitucional e suprema corte.
Em 1803, ocorreu nos Estados Unidos o famoso caso Marbury vs. Madison, julgado pelo Chief Justice Marshall, primeiro a ensejar a possibilidade do controle judicial de constitucionalidade das leis em face da Supremacia da Constituição. Foi o nascimento do Judicial Review, que impõe ao juiz a verificação da harmonia entre a lei aplicada ao caso concreto e à Constituição.
Uma importante discussão acerca do controle de constitucionalidade realizada no século passado ocorreu entre Carl Smith e Hans Kelsen. O primeiro, defensor do estado totalitário, apontou para a idéia de que o controle de constitucionalidade ficaria a cargo do chefe do Estado, pois caso tal tarefa fosse dada a uma corte constitucional, esse controle implicaria uma politização da justiça e uma judicialização da política. Hans Kelsen, criador da Teoria Pura do Direito, inspirou a redação da Constituição Austríaca de 1920, na qual foi criada a primeira corte constitucional que instituiu a tese de validade das leis atuando como “legislador negativo”: não criar leis, mas ter a competência de julgá-la e retirá-la do ordenamento jurídico, revogando-a total ou parcialmente.
O Professor Mauro Cappelletti foi o primeiro a denominar os modelos de controle difuso, ou norte-americano, e concentrado, ou austríaco[i].
No Brasil adotou-se o controle de constitucionalidade difuso desde a primeira Constituição depois da proclamação da República do Brasil, em 1891, por influência de Ruy Barbosa, que seguia o modelo norte-americano, perpetuado por todas as Constituições seguintes.
Passamos por um regime ditatorial que nos deixa herança até os dias atuais. Por exemplo a escolha unilateral dos ministros do STF, na qual nem os outros poderes e nem mesmo outros órgãos de representação popular tiveram participação. Contudo, nos anos 80, renasce nosso Estado Democrático de Direito. Apesar disso, tal prática persiste até hoje. Quando há a indicação de um Ministro para o STF cumprem-se somente formalidades na Casa Legislativa, sem ressalvas.
Roberto A. Santos, Desembargador do TRT/PA, em 1987, muito sabiamente anteviu a crise judiciária, ainda naquele momento pré-constituinte e sugeriu dois “gêneros de mudanças”, quais sejam: a “mudança estrutural em países recém-saídos de regimes ditatoriais – Itália, Alemanha, Portugal” e a “mudança de espírito da profissão judicial ao impacto principalmente das campanhas dos jovens sindicatos da Magistratura”. Afirmou que a mudança de espírito seria a mais interessante, pois traria à discussão a “imagem mítica do juiz e a pressão do sistema judiciário para afastar o juiz do compromisso básico com as questões populares”. E acrescenta a crítica de que não devemos simplesmente copiar outros sistemas, mas olhar para nossas realidades e nos reestruturar: “Seria de conveniência sondarmos nossa própria realidade sócio-cultural, a ver se ela não apresenta originalidades e requerem um tratamento especial.”[ii]O texto promulgado na Constituição de 1988 informa no art. 92, que compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, mas delimita a questão da corte constitucional, tornando-a corte de apelação e tribunal constitucional e, assim, “por falta de transcendência, continuam a subir mais de 100.000 processos por ano”[iii]. Ou seja, “embora a Constituição diga que a competência precípua do Supremo Tribunal Federal é a guarda da Constituição, o excesso de competências e de feitos, que são notórios, fizeram submergir a guarda da Constituição, que hoje é apenas uma das competências da Corte Suprema e que só pode ser exercida precariamente, sob a pressão e a premência de muitos outros feitos que lá estão e chegam diariamente, vindos de todo país e na expectativa de uma decisão rápida.”[iv]Ademais, vale ressaltar o aumento populacional e taxa escolarização, conforme os dados do IBGE que apontam: “Entre os Censos de 1940 e 2000, a população brasileira cresceu quatro vezes. O Brasil rural tornou-se urbano (31,3% para 81,2% de taxa de urbanização) e ( …) o país conseguiu reduzir em cinco vezes a taxa de analfabetismo, que caiu de 56,8% para 12,1%. A taxa de escolarização, entre crianças de 7 a 14 anos, aumentou de 30,6% para 94,5% (…) No período em foco, agricultura, pecuária e silvicultura, que em 1940 representava 32,6% da população ocupada, declinou para 17,9%, em 2000. [v] Os dados apresentados indicam que torna-se evidente o aumento de demandas judiciais.
Não há como não imaginarmos o caos processual agravando-se a cada dia. Concordo com o jurista Ives Gandra da Silva Martins, convencido de “que a Suprema Corte não pode ser um tribunal híbrido (constitucional e de administração de justiça). Terá que ser apenas uma Corte Constitucional.”[vi]Após recente episódio midiático ocorrido no plenário do STF, declarou o presidente federal da OAB, Cezar Britto, estar na hora do “Congresso Nacional transformar o STF em Corte Constitucional, estabelecendo um mandato de dez anos, sem reeleição, para os seus membros”[vii]Não é difícil, depois dessa breve análise, concluir que o STF não é uma corte constitucional na sua essência. Nossos problemas são históricos e merecem atenção do Poder Legislativo preventivamente, antes que o caos processual se estabeleça, devendo legislar no sentido de torná-lo uma corte constitucional exclusiva, deixando a cargo do Superior Tribunal de Justiça a competência de última corte de apelação.
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[i] SANTOS,Roberto A. Corte Constitucional (A Crise do Supremo Tribunal Federal – Uma proposta). Revista de Direito Público. N. 82 – Abril – Junho 1987 –Ano XX. Pág. 115
[ii] idem.p. 117
[iii] MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins. Uma corte constitucional. Publicado no Jornal Gazeta Mercantil em 05.01.2006.
[iv] DALLARI, Dalmo de Abreu. Uma corte constitucional para o Brasil. Boletim dos Procuradores da República. Ano IV – n. 43 –Novembro 2001. P. 10.
[v] “Tendências Demográficas: uma análise da população com base nos resultados dos Censos Demográficos de 1940 e 2000”. http://www.ibge.gov.br
[vi] MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins
[vii] Folha on line. http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u555631.shtml em 24.04.2009