Por Luís Roberto Barroso e Aline Osorio
16.01.18

O STF em 2017: A República que ainda não foi

 

Por Luís Roberto Barroso e Aline Osorio

INTRODUÇÃO

A presente retrospectiva do ano de 2017 no Supremo Tribunal Federal é dividida, como de costume, em duas partes. A Parte I traz uma reflexão institucional e doutrinária acerca da atuação do Tribunal no período. A Parte II apresenta breve resenha das principais decisões do ano. E que ano!

Uma perda irreparável e um legado a proteger

O ano do Supremo Tribunal Federal teve um início trágico. Não há como fazer uma retrospectiva de 2017 sem o registro triste da morte do Ministro Teori Zavascki e sem prestar-lhe a homenagem devida e merecida. Por suas mãos passaram alguns dos casos mais emblemáticos da história recente do Supremo. Entre eles, a relatoria da Lava Jato, com a homologação de 25 acordos de colaboração premiada, a possibilidade de execução da pena após a condenação em segundo grau, o afastamento da presidência da Câmara dos Deputados de parlamentar sob acusações graves e a prisão de um senador acusado de interferir em investigação em curso. Teori foi exemplar como cidadão, como juiz e como pessoa humana, e faz imensa falta ao país, ao Tribunal e aos seus amigos. Em artigo escrito a pedido da Folha de São Paulo, publicado logo após a sua morte, o primeiro autor desta retrospectiva consignou:

“Teori tinha essa percepção (de que estávamos conduzindo uma virada histórica rumo a um país maior e melhor), e supervisionava a Operação Lava-Jato aristotelicamente: com virtude, razão prática e coragem moral. Continuar o trabalho de mudar o patamar ético do Brasil, com a mesma determinação e serenidade, será a forma mais digna de homenageá-lo”[1].

Um ano de incertezas, frustrações e resistência

O ano de 2017 trouxe incertezas, avanços e retrocessos em relação ao combate á corrupção no Brasil. No Supremo Tribunal Federal ainda há visões diversas acerca do papel do Poder Judiciário no esforço de rompimento do pacto oligárquico de saque ao Estado brasileiro que tem assinalado, de longa data, a vida política nacional. Na Segunda Turma, a relatoria da Lava Jato deslocou-se para as mãos firmes e serenas de Luiz Edson Fachin, apesar de muitas vezes minoritário. Diversas das denúncias que ele recebia terminaram rejeitadas ou ficaram suspensas por pedidos de vista. A Primeira Turma, por sua vez, condenou, com base em prova abundante, um antigo político, símbolo da corrupção e da velha ordem; afastou do mandato um Senador da República acusado de utilizar o cargo para achacar pessoas e empresas; e recebeu denúncia contra um Senador suspeito de haver se beneficiado de esquema de superfaturamento de obra em estádio. Refletindo as diferentes visões existentes no Tribunal, também o plenário se mostrou dividido em votações importantes.

A fotografia do momento atual do Brasil é devastadora. Basta ler a narrativa a seguir, baseada apenas em fatos, sem qualquer juízo de valor. Eis o quadro: a) o Presidente da República sofreu duas denúncias por parte do Procurador-Geral da República, por corrupção passiva, organização criminosa e obstrução de justiça[2]; b) um ex-Presidente da República foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro em primeiro grau de jurisdição; c) outro ex-Presidente da República teve denúncia recebida pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa; d) dois ex-chefes da casa civil foram condenados criminalmente por corrupção passiva e lavagem de dinheiro; e) o ex-Ministro-Chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República foi preso, sob a acusação de ter escondido em um apartamento mais de R$ 51 milhões encontrados pela Polícia Federal f) mais de um ex-governador de Estado se encontra preso sob acusações de corrupção passiva e outros crimes; g) todos os conselheiros (menos um) de um Tribunal de Contas estadual foram presos por corrupção passiva; h) um Senador, ex-candidato a Presidente da República, foi denunciado por corrupção passiva; i) dois ex-Presidentes da Câmara dos Deputados estão presos, um deles já condenado pelos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas.

Além disso, a colaboração premiada de mais de 70 executivos da empreiteira Odebrecht resultou na delação de 415 políticos, de 26 partidos, aí incluídos ex-Presidentes da República, atuais e anteriores Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, 14 Prefeitos ou ex-Prefeitos de capitais, 22 Governadores ou ex-Governadores, 25 Senadores ou ex-Senadores e 18 Ministros ou ex-Ministros de Estado. Já a colaboração da empresa JBS envolveu 1829 políticos, de 28 partidos, bem como o Presidente atual, ex-Presidentes e dezenas de Deputados, Senadores e Governadores. Alguém poderia supor que há uma conspiração geral contra tudo e contra todos! O problema com esta versão são os fatos: os áudios, os vídeos, as malas e mochilas de dinheiro, os apartamentos repletos, assim como as provas que saltam de cada compartimento que se abra.

Durante todo o ano, a operação Lava Jato e as reações do mundo político aos seus desdobramentos ditaram a pauta do STF. E novos questionamentos surgiram sobre temas diversos, como: a validade de acordos de colaboração premiada e os limites da competência do relator e do colegiado para sua homologação (Pet 7074 QO); a possibilidade de o STF aplicar medidas cautelares contra parlamentares, incluindo o afastamento do mandato (AC 4327 e ADI 5526); a possível revisão do entendimento, recém afirmado no Tribunal, de que é possível a execução da pena após a condenação em segundo grau (já inobservado em diversas decisões monocráticas na Corte, e.g., HC 146815 e MC no HC 138337); a necessidade de limitar o foro por prerrogativa de função (AP 937 QO); a possibilidade de Assembleias Legislativas suspenderem decisão judicial que decrete a prisão de Deputado Estadual (ADIs 5823, 5824 e 58250), entre outros.

Merece destaque, no período, a atuação do Ministério Público Federal, tanto no âmbito de diversos Estados como perante o Supremo Tribunal Federal. No mês de setembro, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, concluiu seu segundo mandato. Foi um dos períodos mais intensos na vida da instituição, em razão da extensão e profundidade da Operação Lava Jato, paralelamente às investigações de outros escândalos associados à corrupção endêmica que se disseminou no país. Janot coordenou as duas maiores colaborações premiadas já levadas a efeito até agora – Odebrecht e J&F –, ofereceu denúncia contra o Presidente em exercício, contra um ex-Presidente e contra um ex-candidato a Presidente, em meio a muitas outras. Também pediu a prisão preventiva ou o afastamento do cargo de figuras políticas proeminentes, que lhe custaram antagonismos e ameaças de retaliação. Rodrigo Janot desempenhou papel decisivo no enfrentamento da cultura política de desonestidade que fincou raízes no país. Sob sua liderança, o Ministério Público Federal atuou com integridade, independência e destemor, na linha de antecessores destacados como Cláudio Fonteles, Antônio Fernando e Roberto Gurgel.

Janot foi substituído por Raquel Dodge, segunda colocada na tradicional eleição realizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República. Sua trajetória acadêmica e institucional inclui o LL.M na Universidade de Harvard, uma ativa militância na área de direitos humanos e atuação criminal em casos emblemáticos, tendo coordenado a Operação Caixa de Pandora, que desvendou deplorável esquema de corrupção no Distrito Federal. Seus primeiros movimentos revelam, a despeito do estilo diferente, as mesmas virtudes identificadas acima, que têm caracterizado o Ministério Público Federal.

A centralidade do direito penal na pauta do STF

Supremas cortes, na maior parte do mundo, têm como missão institucional típica interpretar e aplicar a Constituição com a finalidade precípua de proteger valores e direitos fundamentais (inclusive das minorias) e assegurar o respeito à democracia (traçando os limites da atuação de cada poder e impedindo que as maiorias políticas manipulem ou falseiem as regras do jogo democrático em benefício próprio). Por exceção, supremas cortes exercem, também, alguns papeis atípicos, dentre os quais o de atuarem como instância penal para julgamento de determinadas autoridades. No Brasil, como se sabe, este papel atípico ou impróprio foi exacerbado pela Constituição de 1988, na linha do que já fizera a Constituição do regime militar, de 1969: atribuiu-se ao Supremo Tribunal Federal uma ampla competência para funcionar como juízo criminal de primeiro grau para uma grande quantidade de autoridades, inclusive todos os membros do Congresso Nacional.

Em 2017, este papel excepcional, relativo ao exercício da jurisdição criminal, se sobrepôs, em relevância e visibilidade, à pauta típica, ligada ao exercício da jurisdição constitucional. Considerado o arranjo institucional que prevê o foro privilegiado, bem como a existência de cerca de 550 processos criminais em curso no STF, entre inquéritos e ações penais, é compreensível que assim seja no momento atual, de revelação da corrupção estrutural e sistêmica no país, e da tentativa de combatê-la. O inédito em 2017 não foi, porém, o fato de a matéria penal consumir tanto tempo e energia do Tribunal. Isso já havia ocorrido, até com maior intensidade, no julgamento do Mensalão. Incomum foi o nível de tensão com o meio político, com queixas, ameaças e pressões contra o desempenho da competência criminal que a Constituição outorgou ao Supremo Tribunal Federal.

Essa atitude foi reflexo tanto da abrangência das investigações em curso, quanto da própria atuação do STF no enfrentamento da corrupção ao longo dos últimos anos. De um lado, diversamente do Mensalão, a Lava Jato atingiu a classe política de forma generalizada. De outro, o Supremo Tribunal Federal vem sinalizando com a quebra do paradigma da impunidade. Em 2016, sob a liderança do Ministro Teori Zavascki, a Corte tornou concreta a possibilidade de prisão cautelar de parlamentares, de afastamento do exercício do mandato, de colheita de provas (antes inacessíveis) a partir da celebração de acordos de colaboração premiada, bem como de efetiva execução da pena, sem a necessidade de aguardar o trânsito em julgado da condenação. Já em 2017, a possibilidade da redução drástica da prerrogativa de foro, suscitada em questão de ordem no início do ano e que já conta com maioria absoluta dos votos do Plenário, foi mais um ponto de tensão para o mundo político.

Esses episódios incitaram o STF em particular e o país em geral a refletir sobre a República que temos e aquela que queremos construir. É inevitável concluir que o princípio republicano foi colocado em xeque. O Brasil se perdeu pelo caminho, naturalizou as coisas erradas e precisa reencontrar seu rumo. Passou-se a achar normal a nomeação de dirigentes de empresas ou ocupantes de cargos públicos com o propósito de desviarem dinheiro. Criou-se uma legião de pessoas que entenderam apropriado viver com o dinheiro dos outros, dinheiro tomado do Estado ou das empresas. E de empresas que, não apenas acreditavam que a corrupção era o preço de fazer negócios no país, mas também se valiam dela para obterem todo tipo de vantagem indevida. Não há “mocinhos” na estória. Para mudar essas práticas, não se pode ser condescendente com elas. E o Poder Judiciário tem um papel decisivo na mudança desse paradigma, sem punitivismo, sem violar as garantias penais ou ignorar o valor do voto, mas também sem conferir imunidade a criminosos de colarinho branco.

Nesta Parte I desta Retrospectiva de 2017, trazemos uma breve reflexão sobre o conteúdo do princípio republicano para, então, analisar como as divergências sobre o seu sentido e alcance marcaram o ano do Supremo Tribunal Federal, especialmente nos casos criminais.

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O PRINCÍPIO REPUBLICANO

Na ordem constitucional brasileira, o princípio republicano, consagrado no art. 1o, caput, não se resume à forma de governo não monárquica, marcada pela eletividade dos cargos políticos (e não pela hereditariedade) e pela temporariedade no exercício do poder (e não pela vitaliciedade). Entre nós, a ideia de República traduz-se em pelo menos três outros conteúdos essenciais: a igualdade entre os cidadãos, a gestão impessoal da coisa pública e a responsabilidade político-jurídica de todos os agentes públicos[3].

Em primeiro lugar, nas Repúblicas, todos os cidadãos são iguais e devem estar sujeitos às mesmas normas. A igualdade veda a hierarquização dos indivíduos e as diferenciações infundadas, mas impõe a neutralização das injustiças históricas, econômicas e sociais. Em seu sentido formal, a igualdade projeta-se em dois âmbitos diversos: a igualdade perante a lei, que impõe que as normas em vigor sejam aplicadas de maneira impessoal e uniforme a todos aqueles que se encontrem sob sua incidência; e a igualdade na lei, que veda ao legislador a instituição de discriminações ou tratamentos diferenciados baseados em fundamento que não seja razoável ou que não vise a um fim legítimo.

A Constituição brasileira de 1988 contempla expressamente a igualdade formal no art. 5º, caput: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. No entanto, ainda não chegamos lá. O Brasil é um país no qual relações pessoais, conexões políticas ou hierarquizações informais ainda permitem, aqui e ali, contornar a lei, pela “pessoalização”, pelo “jeitinho” ou pelo “sabe com quem está falando”. No plano normativo também subsistem resquícios aristocráticos e pouco republicanos. Até a aprovação da Emenda Constitucional nº 35/2001, não era possível instaurar ação penal contra parlamentares, independentemente de qual fosse o crime, sem prévia licença da casa legislativa a que pertencesse. Atualmente, parece ser majoritária a visão de que não se pode decretar-lhes a prisão, salvo em caso de flagrante delito de crime inafiançável, mesmo quando presentes os requisitos da prisão preventiva. Por fim, com intensa gravidade, subsiste o foro privilegiado para diversas autoridades e para parlamentares, que respondem a ações penais perante o STF.

Em segundo lugar, na vertente da gestão impessoal da coisa pública, o princípio republicano está ligado à impessoalidade, à moralidade e à transparência que devem pautar a conduta dos agentes estatais[4]. Para realizá-lo, é fundamental que se afaste qualquer possibilidade de confusão entre as esferas pública e privada, combatendo os vícios históricos do patrimonialismo, do clientelismo e da corrupção. A Constituição de 1988 demonstra nítida aspiração de refundar o Estado brasileiro sobre bases mais republicanas, bloqueando esses traços culturais persistentes. É por isso que o constituinte não se contentou em prever que a Administração Pública obedecerá aos princípios da impessoalidade e da moralidade (art. 37, caput). Para evitar favorecimentos indevidos, incluiu expressamente no texto constitucional a necessidade de aprovação em concurso público para a investidura em cargo ou emprego público (art. 37, II) e a exigência de processo de licitação para a contratação de obras, serviços, compras e alienações (art. 37, XXI). Contudo, como os acontecimentos dos últimos anos evidenciam largamente, ainda subsiste a cultura desonesta de apropriação privada do espaço público para benefício pessoal.

Em terceiro lugar, o princípio republicano abrange a responsabilidade de todos os governantes por seus atos. A accountability exigida em um sistema republicano e democrático de governo deve aplicar-se a todos os agentes públicos, especialmente àqueles detentores de maiores poderes e hierarquia. A república está, assim, diretamente associada à sujeição de todos os agentes estatais, sem exceção, à Constituição e às leis, de modo que deverão responder, inclusive penalmente, pelos atos ilícitos que praticarem, nessa condição ou fora dela. Ninguém, independentemente do cargo que ocupe e da posição institucional que detenha, pode pretender estar imune à responsabilização.

A Constituição de 1988 consagra, em diversos preceitos, esse conteúdo básico da ideia de República: desde a responsabilização de todos os agentes públicos nas searas cível, pelos atos de improbidade administrativa (art. 37, § 4º), e criminal, pela prática de infrações penais comuns (e.g., arts. 86, 102, I, “b” e “c”), até a responsabilização política por meio do impeachment, para o afastamento do cargo e a inabilitação do Presidente e de diversas autoridades (e.g., arts. 29, §§ 2º e 3o, 50, caput e § 2º, 51, I, 52, I e II, 85 e 86). É verdade que, para a proteção do exercício de determinadas funções de alto relevo, a Carta de 88 previu um regime especial, contendo certas garantias e imunidades. No entanto, por óbvio, o constituinte não pretendeu que tal regime representasse um escudo para acobertar práticas ilícitas, nem fosse causa de impunidade.

Nesse ponto, os esforços do Poder Judiciário para conferir eficácia aos preceitos que estabelecem a responsabilização político-jurídica dos agentes públicos são notórios, mas ainda insuficientes. Não se deve esquecer que esse movimento é recente e tem encontrado obstáculos e resistências por toda parte. Desde a promulgação da Constituição até agosto de 2015, apesar de mais de 500 parlamentares já terem sido investigados perante o STF por crimes contra a Administração Pública, como corrupção, lavagem de dinheiro e desvio de verba pública, apenas 16 haviam sido condenados. E a primeira condenação ocorreu somente em 2010! Enfim, para mudar o patamar ético do país, é preciso conferir efetividade ao princípio republicano em suas três dimensões: igualdade, moralidade e responsabilidade. Não há outro caminho.

O PRINCÍPIO REPUBLICANO NA PAUTA DO STF: O DIREITO PENAL, A LAVA JATO E A POLÍTICA

Em 2017, as discussões sobre o sentido e o alcance do princípio republicano estiveram no pano de fundo dos julgamentos mais relevantes do Supremo Tribunal Federal, e provocaram, em diversas ocasiões, a divisão do Tribunal. Foi com base no princípio republicano que o Supremo Tribunal Federal, em importante virada jurisprudencial, decidiu pela impossibilidade de os Estados instituírem normas que condicionem o recebimento de denúncia ou queixa-crime e a instauração de ação penal em face de governador à prévia autorização da assembleia legislativa (ADI 5540 e ADI 4797). Como destacado pelo primeiro autor desta resenha e redator para acórdão na matéria, verificou-se uma clara mutação constitucional – por força de alterações na realidade social, na percepção do Direito e pelas consequências negativas do entendimento anterior –, que deu novo sentido e alcance à ideia de república entre nós, de modo que não mais se admitem instrumentos processuais que levem, na prática, à irresponsabilidade dos governantes ou que se revelem puros privilégios.

O princípio republicano também foi usado como fundamento para a proposta de revisão da amplitude que se tem conferido ao foro por prerrogativa de função no país, que já angariou a maioria absoluta dos votos no Tribunal, embora o julgamento ainda não tenha sido concluído (AP 937 QO). Nos termos do voto do primeiro autor da presente resenha, as normas constitucionais que instituem o foro por prerrogativa de função devem ser interpretadas restritivamente a fim de se limitarem aos crimes praticados no exercício do cargo e em razão dele, por constituírem exceções aos princípios republicano e da igualdade. Ausente o nexo de causalidade com o ofício, o foro se converteria em um privilégio corporativo, repudiado pela ideia de república. Além disso, na sua abrangência atual, o foro é responsável por impedir, em grande número de casos, a responsabilização criminal de agentes públicos, já que tribunais não foram concebidos nem são aparelhados para conduzir ordinariamente um grande número de casos criminais.

O exemplo mais conturbado se deu com os desdobramentos da decisão da Primeira Turma de aplicar ao senador Aécio Neves as medidas cautelares de afastamento do mandato e recolhimento noturno (AC 4327). Se em outros momentos o STF já havia decretado medidas dessa natureza e até a prisão de um senador sem provocar grandes reações, desta vez, o quadro político interferiu dramaticamente com a interpretação da Constituição. Fragilizado pela denúncia do Procurador-Geral da República e contando com a articulação do Senador no Congresso, o Palácio do Planalto operou intensamente, em conjunto com o Senado, que em potencial afronta ao Estado de direito ameaçou não cumprir a decisão. Para desalento do país, o Tribunal cedeu. Rapidamente, a Presidência do Supremo incluiu em pauta a ADI 5526, que pleiteava que as medidas cautelares diversas da prisão, quando aplicadas a parlamentares, fossem submetidas à confirmação pela Casa Legislativa correspondente. Uma maioria de 6 ministros deferiu o pedido, afirmando que a decisão que impuser medidas cautelares que, direta ou indiretamente, embaraçarem o pleno e regular exercício do mandato, deverá ser remetida à Casa Legislativa para deliberação.

Os cinco Ministros que ficaram vencidos, inclusive o min. Relator Luiz Edson Fachin, ressaltaram, porém, que o princípio republicano não autorizava essa interpretação, seja porque encerra um privilégio injustificado e não previsto na Constituição, seja porque impõe barreira à responsabilização dos parlamentares. Nos termos do voto do primeiro autor desta retrospectiva, não há fundamento constitucional para a exigência de manifestação da casa respectiva: “[p]elo princípio republicano, parlamentares, como quaisquer pessoas, só têm regime jurídico excepcional onde expressamente previsto na Constituição. Quanto a tudo o mais, estão sujeitos às normas que valem para todas as pessoas”. Como apontou o Ministro Celso de Mello, “por causar virtual esterilização do poder de cautela de que se acha investido o Supremo Tribunal Federal por efeito de expressa determinação fundada no art. 319 do CPP (que prevê medidas cautelares típicas ou nominadas)”, esse entendimento “culminara? por gerar a inefetividade da jurisdição penal do Estado, frustrando, de modo inconcebível, por via de consequência, a própria eficácia do princípio republicano, que tem na responsabilização, inclusive criminal, dos agentes públicos (ai? compreendidos os agentes políticos, como os congressistas) uma de suas projeções político-jurídicas mais expressivas”.

Como seria de se esperar, a decisão do STF na ADI 5526 foi mimetizada pelas Assembleias Legislativas de alguns Estados. Assembleias Legislativas, como as de Mato Grosso, do Rio Grande do Norte e do Rio de Janeiro, valeram-se do entendimento do Supremo para revogar decisões judiciais que impuseram prisão preventiva, afastamento de mandato e demais medidas cautelares diversas da prisão contra seus deputados. No entanto, em julgamento de três ADIs propostas contra esse entendimento (ADI 5823, 5824 e 5825 MC), o Supremo se encaminha para decidir que, à luz do princípio republicano, os dispositivos das constituições estaduais sobre imunidades formais não podem ser interpretados de modo a autorizar que assembleias legislativas revoguem ou sustem medidas cautelares de natureza penal decretadas em desfavor de deputados estaduais.

Em outro caso, de relatoria do primeiro autor, autorizou-se a abertura de inquérito contra o presidente Michel Temer para investigação dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro na edição do Decreto dos Portos (Pet 7123). De novo, o princípio republicano estava no centro do argumento: “A ninguém deve ser indiferente o ônus pessoal e político de uma autoridade pública, notadamente o presidente da República, figurar como investigado em procedimento dessa natureza. Mas este e? o preço imposto pelo princípio republicano, um dos fundamentos da Constituição brasileira, ao estabelecer a igualdade de todos perante a lei e exigir transparência na atuação dos agentes públicos”.

Uma observação final. Apenas no âmbito da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, tramitam mais de 120 colaborações premiadas homologadas, são quase 183 inquéritos instaurados contra mais de 600 investigados, e há, pelo menos, 35 denúncias em face de 95 acusados e 6 ações penais[5]. Com o avanço de grandes casos de investigação criminal, como se viu, o Supremo mostrou-se dividido entre, de um lado, atender a demanda popular por respostas céleres aos graves escândalos de corrupção, e, de outro lado, reduzir as tensões com o meio político, respondendo a questionamentos acerca da legitimidade da condução dos processos de apuração criminal.

A existência de votos divergentes e minoritários no STF não é incomum e tampouco considerada prejudicial à credibilidade do Tribunal. Pelo contrário, os votos vencidos têm sido incorporados à experiência da jurisdição do STF como elementos capazes de elevar o grau de legitimidade das suas decisões. Entretanto, é inevitável reconhecer que, em temas de grande relevância nacional, decisões tomadas por maiorias estreitas, especialmente quando assumem caráter claramente contramajoritário, podem sofrer grande resistência. É também necessário reconhecer que a persistente divisão do Tribunal em questões revestidas de maior apelo político e social têm produzido um quadro de grande instabilidade, insegurança e, até mesmo, de fragilização da sua reputação.

O ano de 2017 mostrou que há uma série de temas de grande relevância nacional, principalmente em matéria penal, que ainda precisam ser pacificadas pelo STF em atenção ao princípio republicano. O julgamento da medida cautelar nas ADCs 43 e 44, afirmando a constitucionalidade da execução provisória da pena após a decisão condenatória de segunda instância, continua a gerar divergências internas. A decisão proferida pelo Plenário do STF e reafirmada no ARE 964246 decidido com repercussão geral tem sido frequentemente desprezada por decisões monocráticas, seja com base na ideia de que a melhor interpretação da Constituição não teria sido prestigiada pela maioria do Tribunal, seja pela sugestão de que um dos votos que formaram a corrente majoritária seria modificado quando do julgamento do mérito dessas ações declaratórias de constitucionalidade. Poucas coisas são mais danosas à reputação de um tribunal do que a inconstância de sua jurisprudência. O problema se torna mais grave se a percepção popular for no sentido de que os precedentes variam em função do réu.

As colaborações premiadas também continuam sendo objeto de profundas controvérsias no âmbito do Tribunal. As quatro sessões destinadas a solucionar os questionamentos sobre os limites da atuação jurisdicional em acordos de colaboração formalizados com o Ministério Público Federal não foram suficientes (Pet 7074 QO). Pelo menos duas decisões monocráticas recentes, dos ministros Ricardo Lewandowski (Pet 7265) e Alexandre de Moraes (sob sigilo), afirmaram que os acordos de colaboração não podem estabelecer sanções mais brandas do que as previstas no Código Penal. Uma delas questiona a própria possibilidade de o acordo de colaboração estabelecer, fora da sentença judicial, qualquer sanção criminal. A definição da flexibilidade de que dispõe o Ministério Público para negociar sanções nos acordos de colaboração premiada será determinante para o futuro do instituto.

Por fim, a Segunda Turma afirmou, em uma série de três decisões tomadas por maioria, que os depoimentos de colaboradores não são suficientes para ensejar a instauração de ação penal, mesmo quando corroborados por elementos probatórios produzidos unilateralmente pelos próprios colaboradores (Inq 3998). É sabido que a própria Lei das organizações criminosas estabelece que os depoimentos dos colaboradores, isoladamente, não podem legitimar uma condenação criminal. A novidade desses precedentes foi afirmar que, se esses depoimentos não bastam para justificar a condenação, também não podem servir para a abertura da ação penal. A definição do standard probatório exigido para o recebimento de denúncias formuladas com base em colaborações premiadas constitui tema de grande relevância para o destino das apurações criminais em curso não apenas no STF como em todo o país.

CONCLUSÃO

A sensação ao final desses 365 dias – que contou com gravações comprometedoras, malas de dinheiro e até um “bunker” com mais de R$ 50 milhões – é que, de certa forma, naturalizamos o absurdo, nos acostumamos com ele, como se cada episódio fosse pura ficção. O flagrante do momento atual, de crise econômica, crise política e crise ética é desolador. Mas é preciso enxergar além da superfície para constatar que, apesar de tudo, o filme dos trinta anos da democracia brasileira é bom, com a conquista de estabilidade institucional, estabilidade monetária e expressiva inclusão social. Em uma geração, fomos capazes de derrotar a ditadura, a hiperinflação e de obter vitórias relevantes sobre a pobreza extrema. Nada é impossível. A corrupção também não é invencível.

Na verdade, mesmo nessa matéria – combate à corrupção –, apesar de as instituições nem sempre corresponderem, o país já mudou. A sociedade já não aceita passivamente o inaceitável. As empresas privadas estão mudando as suas práticas e o setor de compliance virou um novo mercado de trabalho. A política, é certo, parece incapaz de se libertar dos velhos hábitos. Porém, mais cedo ou mais tarde, também cederá. Uma semente foi plantada; o trem já saiu da estação: há muitas metáforas para identificar o novo tempo que vem vindo. Há uma velha ordem que resiste. Ela é composta dos que não querem ser punidos e dos que não querem se tornar honestos nem daqui para frente. E, embora tenham aliados em toda parte, eles já não conseguem sair à luz do dia, andar na rua, voar em avião de carreira. Em breve estarão na margem da história.

Uma palavra final. Os problemas não estão apenas no setor público. Para nos tornarmos uma verdadeira República, será preciso, também, mudar atitudes privadas e revolucionar o modo como nos relacionamos com a coisa pública, superando o patrimonialismo, a dependência paternalista e a cultura da desigualdade. Tem de ser um processo amplo de transformação coletiva, tendo em conta que muitas portas que precisam ser abertas somente se abrem por dentro. A gente na vida ensina sendo. E é preciso ensinar as novas gerações que vale a pena ser honesto. Este é um fim em si mesmo. A virtude é a sua própria recompensa. Sem punitivismo, sem vingadores mascarados, respeitando a Constituição e os direitos fundamentais. Mas sem achar, todavia, que ricos têm imunidade para cometer crimes; que garantismo significa que ninguém jamais será punido, não importa o que tenha feito; ou que devido processo legal é o que não termina nunca.

Há, em toda parte, uma imensa demanda por integridade, idealismo e patriotismo. Esta é a energia que muda paradigmas e empurra a história. Nesse país que a sociedade brasileira está procurando refundar, o Supremo Tribunal Federal tem um papel importante a cumprir. Mas não é ele o protagonista da história. A revolução profunda e pacífica que estamos tentando fazer depende de consciência social, disposição para mudar a partir de si próprio, mobilização popular, urnas e vontade política. Ah, sim, e de educação, como um projeto verdadeiramente prioritário, e não como um slogan.

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Luís Roberto Barroso é ministro do Supremo Tribunal Federal. Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor Visitante do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB.

Aline Osorio é professora de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Mestre em Direito Público pela UERJ. Mestranda em Direito pela Harvard Law School.

Artigo publicado originalmente na revista ConJur, edição 8.1.2018.

Foto: Nelson Jr./SCO/STF.

Leia também a Parte II da retrospectiva (clique aqui).

Notas:

[1] Luís Roberto Barroso, “Uma trapaça da sorte’. Folha de São Paulo, 21jan2017. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2017/01/1851895-uma-trapaca-da-sorte.shtml?loggedpaywall.

[2] Em ambas as denúncias, a Câmara dos Deputados negou autorização para instauração de ação penal, ficando o processo suspenso até o final do mandato do Presidente da República, nos termos do art. 86 da Constituição. Segundo o jornal Estado de São Paulo, a negociação política para barrar as duas denúncias teve um custo de R$ 32,1 bilhões. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,custo-de-denuncias-contra-temer-alcanca-r-32-1-bi,70002059125.

[3] V. Adriano Pilatti, O Princípio Repúblicano na Constituição de 1988. In Manoel Messias Peixinho, Isabela Franco Guerra, Firly Nascimento Filho (org.), Os Princípios na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

[4] Cf. Enrique Ricardo Lewandowski. Reflexões em torno do Princípio Republicano. In: Carlos Mário da Silva Velloso; Roberto Rosas; Antonio Carlos Rodrigues do Amaral. (Org.). Princípios Constitucionais Fundamentais: estudos em homenagem ao Professor Ives Gandra da Silva Martins. São Paulo: Lex, 2005. p. 375 e sgs.

[5] Dados divulgados pelo Ministério Público Federal, atualizados até 17.09.2017, e pelo Ministro Fachin, em balanço dos processos relacionados à operação de 14.12.2017. Disponíveis em: <http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-jato/atuacao-no-stj-e-no-stf/resultados-stf/a-lava-jato-em-numeros-stf> e < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=364868> .



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