Por Luís Roberto Barroso
6.01.15

O STF em 2014

 

Por Luís Roberto Barroso

Há cerca de uma década assino a resenha da revista eletrônica Consultor Jurídico sobre o ano no Supremo Tribunal Federal. No ano passado, pela primeira vez, escrevi-a na condição de ministro da corte. Essa circunstância tem me permitido desempenhar um duplo papel: a) o de um professor, que conserva a observação crítica do tribunal e se preocupa com o seu aperfeiçoamento; e b) a de um membro da corte, com as possibilidades e dificuldades de quem tem o encargo de fazer as coisas acontecerem. É nessa dupla perspectiva que preparo a resenha deste ano, que vai dividida em duas partes.

Na Parte I, que assino sozinho, descrevo, com algum grau de subjetividade, questões que estiveram na pauta institucional ou jurisdicional do tribunal. A pauta institucional diz respeito ao aprimoramento da atuação do Supremo e o esforço de racionalização da gestão de uma carga imensa de processos. Na pauta jurisdicional, separei alguns casos – diversos com julgamento ainda em curso, mas nos quais já votei – para uma breve reflexão teórica ou filosófica. Quando necessário, e à guisa de prestação de contas à comunidade jurídica, explicito as razões de minhas convicções. A Parte II (clique aqui) contém a seleção de dez casos cujo julgamento já se encerrou e que se destacam entre os principais decididos pelo STF em 2014. Esta segunda parte da resenha foi escrita em parceria com Eduardo Mendonça, cuja vida acadêmica brilhante foi vivida próxima a mim e que até agosto passado era o chefe da minha assessoria no Supremo.

Parte I

Racionalização da jurisdição constitucional e diálogos institucionais

Capítulo I

A pauta institucional

Os números estarrecedores

Em 2014, foram distribuídos ao Supremo Tribunal Federal 78.110 processos de todas as categorias. Foram julgados impressionantes 110.603 processos, aí incluídas decisões do Plenário, das turmas e, sobretudo, monocráticas. O STF é, do ponto de vista estatístico, um tribunal de decisões unipessoais de cada ministro. Não há como ser diferente no volume em que trabalha. Os números da repercussão geral encontram-se retratados mais à frente.

Mudanças nas competências do Plenário

Uma das principais alterações havidas no Supremo Tribunal Federal em 2014 foi a aprovação da Emenda Regimental 49, de 28 de maio de 2014, que concretizou a transferência de inúmeras competências do Plenário para as turmas. Entre elas se destacam: a) recebimento de denúncia ou queixa; b) ações penais contra deputados e senadores (à exceção dos presidentes das Casas), ministros de Estado, comandantes das Forças Armadas, membros dos tribunais superiores, membros do Tribunal de Contas da União e chefes de missão diplomática de caráter permanente; c) ações contra o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público; e d) reclamações. Na mesma sessão do Plenário teve concordância geral a proposta de se transferir para a turma o julgamento de todos os mandados de segurança, mandados de injunção e habeas data, bem como das ações envolvendo litígios entre Estados estrangeiros e a União, e também os conflitos federativos. Em novembro de 2014, foi apresentada proposta de Emenda Regimental nesse sentido, ora em tramitação.

Com esse conjunto de providências, consuma-se uma revolução profunda e silenciosa na dinâmica de atuação do Plenário, cujas competências ficarão cingidas às de uma corte constitucional: julgar, essencialmente, as ações diretas e as repercussões gerais. Um subproduto relevante foi a agilização dos processos penais. Somente a 1ª Turma apreciou, ao longo do ano, 35 denúncias, tendo sido julgadas 12 ações penais. São números que ultrapassam a soma de tudo que havia sido julgado em Plenário em anos anteriores.

A questão da repercussão geral

No ano de 2014, foram julgadas 60 repercussões gerais. Somente no 2º semestre, após a posse do ministro Ricardo Lewandowski na presidência, foram decididas em Plenário quase 50 repercussões gerais. Trata-se de uma marca notável, sobretudo tendo em vista a média histórica, desde 2008, que era de 27 repercussões gerais julgadas por ano. Em final de 2013, havia 330 repercussões gerais reconhecidas. Mantida a média de 27 por ano, seriam necessários 12 anos para julgá-las! Em 2014, à vista das novas repercussões gerais reconhecidas e das que foram julgadas, esse número continuava pouco acima de 300. Portanto, mesmo mantidos os números de 2014 e paralisada a admissão de novas questões, ainda seriam necessários cerca de cinco anos para julgá-las todas. É bem melhor, mas ainda é um prazo inaceitável. Sobretudo tendo em conta que o reconhecimento de repercussão geral acarreta o sobrestamento dos processos na origem, na casa dos milhares.

Por essa razão, levei ao debate interno no Tribunal e, posteriormente, trouxe ao debate público um conjunto de propostas destinadas a reequacionar a repercussão geral. O tema foi discutido inclusive na ConJur (clique aqui). Não é o caso de voltar a expor analiticamente tais ideias, limitando-me a destacar algumas delas: (i) o STF não deve reconhecer mais repercussões gerais do que seja capaz de julgar por ano; (ii) a seleção deve ser feita ao final de cada semestre, para permitir que, por critério comparativo, se selecionem os temas mais importantes; (iii) após feita a seleção, os processos devem ser redistribuídos de forma equânime pelos ministros (por exemplo, se forem 40 repercussões gerais reconhecidas, iriam quatro para cada ministro), para que o trabalho seja igual e não haja a tentação de atribuir repercussões gerais em demasia aos processos originariamente distribuídos a si); (iv) as repercussões gerais escolhidas até o final de dezembro de 2014 devem começar a ser julgadas um semestre depois, a partir de agosto de 2015, e as reconhecidas até o final de junho de 2015 devem começar a ser julgadas a partir de fevereiro de 2015, na medida do possível com a designação de datas com grande antecedência.

Antecedência da pauta de Plenário

A pauta de julgamentos de Plenário, que se reúne às quartas e quintas-feiras, costuma ser divulgada na noite da quinta-feira anterior ou, mais comumente, na manhã do dia seguinte. Na praxe do tribunal, costumam ser incluídos na pauta dezenas de processos, em torno de 40. Entre a divulgação da pauta de Plenário e as sessões, ainda ocorrem as sessões das turmas, nas terças-feiras. Relembre-se que a competência das turmas foi adensada por novos temas, como recebimento de denúncias, julgamento de ações penais e de mandados de segurança, entre outros. Na prática, portanto, sobra pouquíssimo tempo para os ministros se prepararem para os processos que serão julgados em Plenário. Pouco mesmo, algumas horas para todos. Na prática, o mais comum é que apenas o relator esteja verdadeiramente preparado para discutir a questão. O resultado é intuitivo: a jurisdição constitucional, que deveria ser prestada com reflexão, acaba sendo feita no reflexo.

Minha sugestão é que a pauta de julgamentos do Plenário seja divulgada com pelo menos 30 dias de antecedência. Cada ministro indicaria à presidência, do seu acervo, dez processos que estejam em condições de serem julgados. Com essa massa de processos, a presidência faria a pauta com a antecedência aqui proposta. Isso permitiria que os ministros e suas assessorias estudassem os processos, levantando jurisprudência, doutrina e elementos empíricos, bem como que lessem com calma as peças relevantes e os memoriais. O debate passaria a ser muito mais informado e de muito maior qualidade, e os pedidos de vista, como regra, se tornariam desnecessários. A deliberação ficaria ainda mais consistente com a distribuição prévia dos votos (o que já é feito por vários ministros). Naturalmente, a pauta feita com antecedência não impediria o Presidente de incluir os processos que venha a reputar urgentes ou que envolvam situações emergenciais.

Capítulo II

A pauta jurisdicional

A referência a diálogos institucionais, no título desta Parte I da resenha, identifica um tipo particular de atuação, em que a suprema corte e o legislador se ouvem mutuamente em relação a determinado tema. Embora, do ponto de vista formal, o Supremo Tribunal Federal profira a última palavra acerca da interpretação constitucional, é desejável, na medida do possível, que as duas instituições dialoguem, expondo seus argumentos e circunstâncias, de modo a que se produzam decisões que as aproximem, diluindo tensões[1]. Os três primeiros itens abaixo retratam essa forma de atuação.

Financiamento eleitoral por empresas (ADI 4.650, relator ministro Luiz Fux)

Em ação direta de inconstitucionalidade, a Ordem dos Advogados do Brasil questionou, entre outros pontos, a constitucionalidade do financiamento eleitoral por empresas privadas. O voto do relator, já acompanhado por outros ministros, foi no sentido de acolher o pedido para declarar a inconstitucionalidade da participação de empresas doando recursos para as campanhas eleitorais. O ministro Teori Zavascki rejeitava o pedido.

Minha posição, materializada no meu voto, é a seguinte: não considero inconstitucional que empresas participem do financiamento eleitoral. Esta é uma decisão política, uma escolha a ser feita pelo legislador, isto é, pelo Congresso Nacional, que pode permitir ou vedar tal tipo de participação. O que me parece claramente inconstitucional, porque antidemocrático e antirrepublicano, é o modelo atualmente vigente. Isso porque inúmeras grandes empresas fazem doações para diversos candidatos a cargos majoritários que são concorrentes entre si. Intuitivamente, como apoiam candidatos de posições opostas, não se trata de uma opção ideológica nem do exercício de um eventual direito político (para quem admita que empresas possam titularizar tais direitos). A verdade é que ou tais empresas são achacadas para doar ou, ao fazê-lo voluntariamente, estão comprando benesses futuras. Qualquer das duas possibilidades é péssima.

Por outro lado, não há na legislação qualquer restrição a que empresas que doaram para a campanha sejam contratadas, diretamente ou mediante licitação (e que licitações!), pelo governo do candidato eleito. Vale dizer: o modelo permite que se pague o favor privado (doação de dinheiro) com dinheiro público (contratos administrativos). A inconstitucionalidade, portanto, não está na possibilidade de empresas participarem com recursos financeiros do processo político, mas na total ausência de quaisquer limitações minimamente efetivas. Não se trata, consequentemente, de uma questão ideológica ou de opção institucional, mas sim de decência política e moralidade administrativa (CF, artigo 37).

O diálogo institucional: meu voto devolve ao Congresso Nacional a competência para deliberar se empresas privadas podem ou não participar do financiamento eleitoral. Apenas deixa claro que a Constituição impõe limitações em nome do princípio democrático, do princípio republicano e da moralidade administrativa. Ao exercer a sua liberdade de conformação legislativa, o Congresso deverá levar isso em conta.

Desaposentação (RE 661.256, relator ministro Luís Roberto Barroso)

Não é incomum, na iniciativa privada, que um trabalhador se aposente por tempo de contribuição, por volta dos 50 anos de idade. Como consequência, passa a receber proventos do INSS. Este indivíduo, no entanto, porque ainda jovem, volta ao mercado de trabalho, passando a acumular o recebimento de proventos e de salário. Sobre o salário recebido, ele volta a pagar contribuição previdenciária. Alguns anos depois, geralmente ao completar 65 anos, ele deseja renunciar à primeira aposentadoria e obter uma nova, levando em conta o tempo que contribuiu a mais e sua idade presente. O INSS entende que isso não é possível.

Para evidenciar a complexidade do problema, basta registrar que o processo, do qual sou relator, chegou ao STF para julgamento do recurso extraordinário com três decisões divergentes nas instâncias anteriores. De fato, em 1º grau foi acolhida a posição do INSS e negada a possibilidade de desaposentação. A decisão de 2º grau entendeu possível a desaposentação, contanto que o segurado devolvesse os proventos recebidos desde a primeira aposentadoria, de modo a se restabelecer, do ponto de vista atuarial, o status quo anterior ao primeiro vínculo. E, por fim, o STJ decidiu ser possível a desaposentação, independentemente de qualquer restituição de proventos.

No meu voto, procurei construir um caminho do meio entre os dois extremos, por entender ser esta a solução justa e constitucionalmente adequada. O sistema previdenciário é contributivo e solidário. Não é legítimo, portanto, que o segurado contribua mais 15 anos após a primeira aposentadoria, em paridade de condições com os demais trabalhadores, sem ter direito a qualquer novo benefício real. Por outro lado, com a primeira aposentadoria ele ingressou no sistema previdenciário e passou a receber benefícios, isto é, passou a auferir proventos. A solução justa, portanto, é permitir a nova aposentadoria, levando em conta o que ele já sacou do sistema.

A fórmula para fazer isso é a utilização adequada do fator previdenciário. Todo segurado tem o cálculo de sua aposentadoria por tempo de contribuição determinado por esse multiplicador, que leva em conta a sua idade, expectativa de vida, tempo de contribuição e valor médio das contribuições. Pois bem: no cálculo da nova aposentadoria, computa-se o valor e o tempo de contribuição a mais. Mantém-se, porém, a idade e a expectativa de vida do momento em que o indivíduo entrou no sistema, isto é, da primeira aposentadoria. Dessa forma, ele se beneficia das novas contribuições que aportou, mas o novo cálculo levará em conta o que ele já recebeu do sistema. Não se trata de invenção normativa, mas de mera interpretação conforme da legislação vigente: pela lógica do fator, as variáveis idade e expectativa de vida visam a graduar o valor do benefício em função do tempo estimado em que a pessoa irá figurar na condição de beneficiário. Nada mais natural, portanto, que seja considerado o momento em que o segurado passou a tal condição. Desprezar esse dado da realidade é que seria inventivo.

O diálogo institucional: no meu voto, afirmei que a legislação era omissa no tratamento da desaposentação. É desejável a edição de uma lei tratando da matéria, com as escolhas políticas próprias. Por essa razão, propus que minha decisão só passasse a valer seis meses depois do julgamento, para que o Congresso Nacional pudesse dispor sobre a matéria, caso desejasse. Sobrevindo a lei, ela é que deverá prevalecer.

Precatórios (ADIs 4.357 e 4.425, relator ministro Luiz Fux)

O Plenário declarou, antes do meu ingresso no STF, a inconstitucionalidade de diversos dispositivos da Emenda Constitucional 62, de 9 de dezembro de 2009, que instituiu um regime especial de pagamento de precatórios pelos estados, Distrito Federal e municípios. A Emenda previa a quitação dos precatórios vencidos em até 15 anos, prevendo vinculações, leilões, pagamento em ordem crescente de valores e acordos. Quase tudo foi invalidado.

Em questão de ordem, o relator, ministro Luiz Fux, propôs uma necessária modulação dos efeitos temporais da decisão, mantendo parte dos seus dispositivos em vigor por mais cinco anos. De acordo com sua proposta, a consequência do não pagamento nesse prazo deveria ser a intervenção federal, na linha do que determina textualmente a Constituição. O grande problema é que os estados e municípios, que conseguiriam pagar em 15 anos, não têm condições de pagar em cinco, pelo menos não sem o sacrifício de muitas outras obrigações constitucionais. Ademais, a intervenção federal, além de muito drástica, não é capaz de gerar dinheiro. Por essa razão, acompanhei o relator na modulação, mas sugeri algumas fórmulas alternativas.

No meu voto, observei que o Congresso Nacional, por duas vezes, tentara equacionar o problema: com a Emenda Constitucional 30/2000 e com a EC 62/2009. Nas duas ocasiões, o STF derrubou as soluções propostas, considerando-as inconstitucionais. Ao invalidar a EC 62 sem colocar nada no lugar, o tribunal estaria devolvendo à sociedade uma situação ainda pior do que antes da emenda, quando muitos estados e municípios nada pagavam. Para minimizar este efeito, o relator concedeu uma liminar mandando continuar a aplicar o regime da EC 62 até o final do julgamento. Em razão dessa situação, propus em meu voto a adoção de um modelo de transição, em que a modulação seria acompanhada de uma decisão aditiva. Já que o Tribunal determinou o pagamento em cinco anos em lugar de 15, é preciso apontar de onde virão os recursos. Abaixo as minhas sugestões, que foram acompanhadas pelo ministro Fux, com divergência do ministro Teori Zavascki. O ministro Dias Toffoli pediu vista. Foram elas:

– utilização compulsória da conta de depósitos judiciais tributários para pagamento de precatórios, como já autorizado por lei federal;

– possibilidade de utilização de até 25% dos depósitos judiciais não tributários para pagamento de precatórios, a ser autorizada por lei estadual (como fez o estado do Rio de Janeiro, quitando todos os precatórios em atraso);

– subsistência da possibilidade de celebração de acordos, com uma redução máxima de 25%;

– possibilidade de compensação de precatórios vencidos com dívida ativa já inscrita;

– aumento da vinculação de receitas para pagamento de precatórios em 1% ou proibição de propaganda institucional até a regularização do pagamento.

O diálogo institucional: a solução que propus só deverá viger para o ano seguinte à sua aprovação pelo STF. Isso daria ao Congresso Nacional cerca de um ano para prover sobre a matéria. Se vier a ser aprovado ato normativo editado pelo Legislativo, é ele que deverá prevalecer. Na falta de solução alternativa, porém, seria terrivelmente inconstitucional retornar ao estado anterior de calote estatal generalizado. É isso o que justifica e impõe uma decisão de perfil aditivo, na linha de precedentes anteriores do STF.

Rearrumação de alguns aspectos do Direito Penal

Tenho sustentado, já faz alguns anos, que o Direito Penal no Brasil está desarrumado, tanto do ponto de vista filosófico, quanto normativo e jurisprudencial. De plano, cumpre apontar um paradoxo: temos a terceira ou quarta maior população carcerária do mundo (depende de a conta incluir ou não os que estão em prisão domiciliar), mas, ainda assim, a população em geral tem a percepção de que a impunidade campeia. É que, na verdade, punimos muito, mas punimos mal. O Direito Penal, em um país com as circunstâncias brasileiras, deve ser moderado e sério. Moderado significa sem excesso de tipificações (contornando o risco de criminalização da pobreza) e sem exacerbação desmesurada de penas. Sério significa seguir a máxima de Beccaria de que é a certeza da punição, e não a intensidade da pena, que funciona eficazmente como prevenção geral contra o crime. Coerente com essas premissas, tenho conduzido a minha participação nos processos criminais.

Princípio da insignificância (HCs 123.108, 123.533 e 123.734, relator ministro Luís Roberto Barroso)

O princípio da insignificância, conforme entendimento doutrinário e jurisprudencial, exclui a tipicidade material do fato em casos de menor gravidade da conduta e baixa significação do resultado. A jurisprudência do STF tem aplicado o princípio em casos de furto simples. Porém, tem recusado a sua aplicação caso o acusado seja reincidente ou a hipótese seja de furto qualificado (como, por exemplo, quando praticado mediante concurso de pessoas ou com o rompimento de obstáculo). Eu mesmo vinha acompanhando tal jurisprudência, na linha de que a tolerância, nesses casos, passaria uma mensagem errada.

No entanto, já no apagar das luzes de 2014, selecionei três casos para deslocar da turma para o Plenário, de modo a proporcionar uma nova reflexão coletiva sobre o tema. Eram três habeas corpus requeridos pela Defensoria Pública. O primeiro envolvia o furto de um par de chinelos, avaliado em R$ 16, praticado por réu reincidente. O segundo tratava de tentativa de furto de dois sabonetes líquidos íntimos, no valor de R$ 48, cometido por uma mulher reincidente, com o concurso do marido. E o terceiro versava o furto tentado de 15 bombons caseiros, que custavam R$ 30, perpetrado com escalada e rompimento de obstáculo (salto sobre muro e remoção de telhas).

Nos dois primeiros casos houve condenação a penas privativas de liberdade, de um ano ou um pouco mais. Não há dúvida de que tais condutas são reprováveis. Trata-se, porém, de réus de baixíssima periculosidade. Se enviados para o sistema penitenciário, por alguns meses que seja, de lá sairão muito mais perigosos. Para começar, no dia da chegada terão que escolher a qual facção pertencerão. A partir daí, passarão a dever favores, quando não a própria vida. E, ao sair, terão de pagá-los, pois esta é a lei do crime. A escolha entre punir e não punir – e, sobretudo, em qual intensidade punir – é uma escolha relevante e trágica. Hoje estou convencido de que mandar essas pessoas para o sistema penitenciário degradado e degradante que temos é uma solução pior.

Quando o número de reincidências ou o modo de execução não recomendarem a aplicação do princípio da insignificância, ainda assim deve-se optar por penas alternativas e, no limite, por prisão em regime aberto domiciliar. Como a legislação prevê, em casos de reincidência, o regime inicial no mínimo semiaberto – isto é, a ida para o sistema penitenciário –, propus uma interpretação conforme a Constituição dos dispositivos do Código Penal. A tese é que violaria a máxima da proporcionalidade, tanto para o indivíduo como para a sociedade, sua inexorável transformação de “pé de chinelo” em perigoso delinquente. Em um país como o Brasil, em seu ingente esforço em busca de desenvolvimento e de um estágio civilizatório mais elevado, tais decisões não são juridicamente simples nem moralmente baratas.

Prescrição da pretensão executória

O STF tem uma jurisprudência consolidada no sentido de que o recurso inadmissível não impede o trânsito em julgado, que se opera no momento em que a decisão se tornou irrecorrível. Assim, por exemplo, quando o recurso especial e o recurso extraordinário têm o seu seguimento negado pelo Tribunal de origem, se a denegação vier a ser mantida pelo STJ e pelo STF, o trânsito em julgado conta-se do acórdão estadual ou federal impugnado. Esse entendimento se aplica, pacificamente, no cômputo da chamada prescrição punitiva, que é a que se mede entre a data do fato e o trânsito em julgado da decisão. Como consequência, não obstam a coisa julgada os recursos especial e extraordinário indeferidos na origem por inadmissibilidade.

A matéria ganha em complexidade, porém, quando se trate de prescrição da pretensão executória, que é aquela que se mede entre o momento do trânsito em julgado e a efetiva execução da decisão. De acordo com o artigo 112, I do Código Penal, a prescrição da pretensão executória começa a correr do dia em que a sentença condenatória transita em julgado para a acusação. Este dispositivo vigeu por muitas décadas, período ao longo do qual a jurisprudência pacífica do STF era no sentido de que o recurso especial e o extraordinário não tinham efeito suspensivo. Por assim ser, não impediam que o Ministério Público instaurasse a execução da decisão condenatória.

No entanto, no julgamento do HC 84.078, em 5 de fevereiro de 2009, o Plenário modificou a sua interpretação do sentido e alcance do artigo 5º, LVII da Constituição Federal, que cuida da presunção de inocência ou de não culpabilidade. A partir de então, passou-se a entender não ser possível a execução da decisão condenatória na pendência dos recursos especial e extraordinário. Não está em questão, nesse comentário, o acerto ou desacerto dessa nova orientação. O que importa enfatizar é que a nova inteligência do STF na matéria impede o início da execução do acórdão condenatório, caso tenha sido interposto recurso especial ou extraordinário.

A consequência inexorável de tal orientação é a insubsistência da regra do artigo 112, I do Código Penal. Com efeito, o texto constitucional, na interpretação dada pelo STF, derroga o referido dispositivo. Do contrário, o prazo de prescrição começaria a correr sem que o Ministério Público pudesse instaurar a execução. Vale dizer: tratar-se-ia de uma hipótese de prescrição sem inércia em agir, o que constitui uma anomalia jurídica. Entendimento diverso transformaria a advocacia criminal em um exercício de procrastinação e protelação, passando a ser dever do profissional da defesa impedir, por manobras sucessivas, o trânsito em julgado. Ninguém desejaria para a advocacia um destino assim indigno. Que fique bem claro: o problema está no sistema, e não no advogado que dele se beneficia em favor do seu cliente. No caso específico que motiva este comentário, a parte interpôs oito recursos, sendo que cinco apenas no Superior Tribunal de Justiça. Em outro processo julgado recentemente pelo Plenário, a parte havia interposto 25 recursos. A prescrição somente não se consumou pela atuação determinada e decisiva do ministro Dias Toffoli, que decretou o trânsito em julgado para evitá-la.

O garantismo é uma boa filosofia para lidar com o Direito Penal. Ele significa respeitar o devido processo legal (contraditório, ampla defesa, duplo grau de jurisdição) e assegurar os direitos fundamentais do acusado. Significa não querer salvar o mundo com tipificações abundantes e penas exacerbadas, nem tampouco fazer juízos morais desqualificadores das pessoas, em lugar de julgar fatos objetivos. Garantismo, porém, não significa tratar o Direito Penal sem seriedade mínima, nem tampouco abdicar dos deveres de proteção atribuídos ao Estado. A proteção dos direitos humanos, em qualquer sociedade civilizada, exige um grau moderado, legítimo e proporcional de repressão estatal, para que o bem seja mais atraente do que o mal.

Execução na Ação Penal 470

Em redistribuição por sorteio, tornei-me relator, em junho, da Ação Penal 470, em fase de execução. A seguir, a narrativa de alguns dos seus principais momentos.

A lei vale para todos

Presos em regime semiaberto têm direito a trabalho externo, se preenchidos os requisitos legais, independentemente de cumprir um sexto da pena. Essa era a jurisprudência pacífica dos tribunais do país, que fiz valer em uma das minhas primeiras intervenções no processo, dando provimento a agravo regimental de alguns sentenciados. O Plenário confirmou minha decisão por unanimidade. Na sequência, neguei prisão domiciliar a dois dos condenados que, de acordo com perícia oficial, não eram portadores de doença grave. Ao menos, não mais grave do que a de inúmeros outros internos do sistema. Por fim, na forma da lei e seguindo a jurisprudência tradicional, deferi progressão de regime aos presos que cumpriram um sexto da pena. Naturalmente, a lei não pode ser interpretada e aplicada de maneira diferente aos réus que a sociedade detesta. Cuidei, porém, de procurar moralizar a prisão domiciliar, resguardando esse instituto que é uma alternativa humanitária às condições degradadas do sistema penitenciário. Uma das regras que estabeleci é que a prisão domiciliar, por ser modalidade de pena privativa de liberdade, é incompatível com a pretensão de efetuar viagens habituais, manifestada por parte dos sentenciados.

Para a progressão de regime é preciso restituir o dinheiro desviado

No caso de crime de peculato, em que o valor desviado tenha sido fixado na sentença condenatória, a progressão de regime só é possível mediante restituição do valor desviado. Esta foi a primeira vez que o Plenário do STF enfrentou o tema, tendo o meu voto prevalecido por 8 a 1. O Tribunal considerou constitucional o parágrafo 4º do artigo 33 do Código Penal, em cuja dicção se prevê que, nos casos de crimes contra a Administração Pública, a progressão de regime fica condicionada à devolução do produto do ilícito. A alegação de impossibilidade econômico-financeira não impede a incidência do dispositivo. O que se permitiu foi a possibilidade de celebração de acordo com a União Federal, para fins de pagamento parcelado. Intuitivamente, o descumprimento do acordo acarreta a regressão de regime.

É imperativo o pagamento de multa para a progressão de regime

Ao decidir diversos pedidos de progressão de regime, condicionei o deferimento ao pagamento da pena de multa fixada na condenação. O condenado tem o dever jurídico — e não a faculdade — de pagar integralmente o valor da multa. É o que decorre do artigo 50 do Código Penal, que estabelece que a multa deve ser paga dentro de dez dias depois do trânsito em julgado da decisão condenatória. Admitir-se a progressão sem pagamento seria tratar discriminatoriamente os condenados que quitaram a multa. Além disso, a passagem para o regime aberto exige do sentenciado “autodisciplina e senso de responsabilidade”, o que pressupõe o cumprimento das decisões judiciais que se lhe aplicam. A exceção admissível ao dever de pagar a multa é a impossibilidade econômica absoluta de fazê-lo. Tal impossibilidade deve ser demonstrada de maneira inequívoca, sujeitando-se o sentenciado que prestar declaração falsa à regressão de regime e a processo-crime.

Dez julgamentos significativos

Após esse conjunto de reflexões sobre o futuro institucional do STF e as principais discussões em andamento na corte, será proveitoso lançar os olhos sobre alguns dos principais julgamentos concluídos em 2014. A seleção confirma o papel proeminente exercido pelo tribunal nos principais debates nacionais, da composição dos órgãos representativos à universalização do direito penal, passando pela efetivação do teto remuneratório dos agentes públicos e pela realização concreta da liberdade de expressão. A retrospectiva do Supremo, uma vez mais, é a retrospectiva de parte significativa do debate público no Brasil. Clique aqui para ler os dez principais julgamentos do STF em 2014.

As ideias e o seu tempo

Instituições tradicionais, como a Igreja Católica, as Forças Armadas e, no caso, o Supremo Tribunal Federal são relativamente lentas na promoção de mudanças estruturais ou filosóficas. É da natureza das instituições não ficarem ao sabor dos ventos, dos modismos ou das circunstâncias do varejo político. Por isso mesmo, não parece uma boa ideia alterar a idade de aposentadoria dos ministros para impedir que um presidente já eleito exerça competências constitucionais que lhe tocam. Não deve haver tabus no debate público, mas não se mudam instituições consolidadas para combater governos.

Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal, como as instituições em geral, deve saber se autotransformar para não perder o passo da história. Não é incomum, aqui e ali, alguém se orgulhar dos números exibidos pelo tribunal a cada final de ano: 110 mil processos julgados! Dez mil processos por ministro! A verdade é que não há motivo para orgulho. São números constrangedores. Basta dividir o número de processos pelo número de ministros e, depois, pelo número de dias do ano. No fundo, são cenas de terceiro mundismo explícito. A voracidade em julgar e a ênfase na quantidade, e não na qualidade, ainda são sintomas de um ciclo inconcluso de amadurecimento. Uma corte constitucional deve decidir com parcimônia, qualidade e visibilidade. Nessa, como em outras matérias na vida, menos é mais.

O debate no próprio tribunal, na comunidade jurídica e em segmentos expressivos da sociedade sinaliza que a mudança está madura. Em algum momento do futuro próximo, o STF não deverá admitir mais recursos extraordinários do que possa julgar a cada ano e as pautas serão marcadas com razoável antecedência, tudo de modo a propiciar reflexão, pesquisa e debate informado. Um mundo de razão e de argumentos, e não de números e estatísticas. Logo ali, na esquina do tempo, assim será. Na frase célebre de Victor Hugo, “nada é mais poderoso do que uma ideia cujo tempo chegou”.

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Luís Roberto Barroso é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Artigo publicado originalmente na revista Consultor Jurídico, edição 31/12/2014.

Foto: Dorivan Marinho/SCO/STF.

Nota:

[1] Na literatura nacional, v. sobre o tema Rodrigo Brandão, Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição?, 2011, especialmente p. 273 e s.



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