4.05.16
O saldo do impeachment é uma democracia deficitária
Por Jane Reis Gonçalves Pereira
Direito e política não coexistem separados por linhas claras. Quando ocorrem crises institucionais, a ambiguidade fica agravada e mais desafiadora. Nesses cenários, as fronteiras imprecisas que separam os dois domínios convertem-se em uma verdadeira zona cinzenta. Isso não quer dizer, todavia, que os juízos políticos sejam espaços vazios preenchíveis por qualquer conteúdo, ou que possam ser empregados de forma descolada dos referenciais de legitimidade democrática.
Nas democracias constitucionais, os resultados das batalhas políticas extraem sua força e solidez do fato de estarem apoiados em estruturas normativas claras e preconcebidas. Esse é o aspecto que permite discernir a política partidária, transitória e de varejo, da política constitucional, que se pretende perene e apoiada em valores comuns. É o ponto que permite identificar se as estruturas jurídicas são apenas aparentes, se são meras embalagens para qualquer conteúdo, ou se efetivamente traduzem um compromisso institucional e ético dos vários setores da sociedade.
O uso enviesado e distorcido das fórmulas e estruturas constitucionais coloca todo o sistema em risco, pois danifica a confiança tanto nos resultados transitórios que vier a produzir, como nos próprios referenciais normativos usados para regrar a luta política. Durante uma crise institucional, uma troca de poder apoiada na aplicação desvirtuada dos instrumentos institucionais deixa os que triunfaram em posição frágil, e, mais grave, compromete a credibilidade do próprio sistema.
No presidencialismo, o espaço reservado para a discussão sobre a qualidade e desempenho dos chefes do Poder Executivo é a disputa eleitoral. O impeachment é um instrumento extremo e excepcional, idealizado para remover governantes que praticaram desvios importantes caracterizados como crimes de responsabilidade. Em uma democracia saudável, é razoável ter a expectativa de que a formulação do juízo político sobre a prática dos crimes de responsabilidade seja pautada por critérios mínimos de integridade, congruência e equidade.
Processos de impeachment colocam a dimensão eleitoral da democracia em conflito com juízos políticos que, usados com propósitos insinceros ou para fins espúrios, enfraquecem os próprios pilares constitucionais em que buscam se apoiar. Quando os protagonistas políticos manipulam as engrenagens democráticas de forma irresponsável, não arriscam apenas suas biografias, mas colocam em xeque a própria solidez das instituições.
Na crise que atravessamos, a prevalência da retórica partidária, o uso de argumentos eleitorais e de fundamentos jurídicos questionáveis, ou puramente formalistas, parecem indicar que o impeachment pode ser o ponto de partida de mais instabilidade. O capital político e institucional queimado pelos vários atores nessa batalha tende a deixar como saldo uma democracia deficitária. Se a credibilidade das ferramentas constitucionais continuar a ser desgastada, como esperar que a Constituição permaneça como referencial comum para arbitrar a luta política?
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Jane Reis Gonçalves Pereira é professora de Direito Constitucional da UERJ. É juíza federal e editora do blog Estado de Direitos.
Foto: Craig Sunter/Flickr.
O diagnóstico está bem feito. Faltou a prescrição sobre o que fazer para superarmos a “crise que atravessamos”. Neste contexto, parece-me que a interpretação jurídica tem pouco ou quase nada a nos oferecer, dada a abertura semântica dos textos — constitucional ou infraconstitucional — que disciplinam o delicado processo do impeachment, e o fato — chocante a um primeiro olhar — de que, assim como a ideologia dominante, também a hermenêutica dominante é a hermenêutica da classe dominante”. De qualquer sorte, merece elogios a ilustrada juíza e professora, quando mais não seja, pela clareza e sinceridade com que revela de que lado ela está sobre o SIM ou NÃO a ser pronunciado pelo Senado da República. Nesse cenário, talvez nos socorra, apesar ou por causa da sua incômoda atualidade, também a advertência de Lassale, a nos dizer que as questões constitucionais não são questões de direito, são questões de poder.