27.04.14
O problema das biografias autorizadas
As chamadas biografias autorizadas não raro são escritas por encomenda, mediante pagamento. Personalidades que se acham importantes contratam com algum escriba a elaboração de sua biografia, que é submetida à sua apreciação, de sorte que, se for por ele aprovada, será publicada, se não, não o será. São sempre panegíricas, e é para ser elogiado que o biografado contrata a biografia.
A esse propósito, lavra a discussão, entre nós, tendo em vista o disposto no art. 20 do Código Civil, de 2002, com base no qual Roberto Carlos foi a juízo para proibir a divulgação de sua biografia sem sua autorização. A questão da constitucionalidade do dispositivo pende de decisão do Supremo Tribunal Federal. Este texto quer ser uma contribuição ao debate.
Aquele artigo declara, em essência, que, salvo autorização, a divulgação de escrito, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas a seu requerimento, sem prejuízo da indenização que couber. Aí está dito: “Salvo autorização, a divulgação de escrito… de uma pessoa…”.
A primeira questão interpretativa que se apresenta é esta: escrito de uma pessoa, como está dito no artigo, ou escrito sobre uma pessoa, como um grupo formado por Caetano Veloso, Chico Buarque, Gil e o próprio Roberto Carlos querem ou quiseram. De fato, o art. 20 não proíbe a divulgação ou publicação de escrito sobre uma pessoa, que é o que define uma biografia. Por outro lado, a imagem de uma pessoa pode ser imagem-figura e imagem-atributo.
Divulgar escrito entra neste segundo tipo. É claro que o escrito de uma pessoa só pode ser divulgado ou publicado com sua autorização, porque aí está envolvido o direito econômico e moral do autor, razão por que se fala em indenização.
De toda forma, o dispositivo deve ser interpretado tendo em vista regras da Constituição de 1988, sobretudo o disposto no art. 5º, IX, segundo o qual “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou de licença”. E ainda há o art. 220, segundo o qual a manifestação do pensamento, a criação e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição.
A biografia é uma atividade intelectual, inequivocamente, é manifestação do pensamento, é criação e até informação, além de sua dimensão histórica. Logo, é uma atividade livre que não pode sofrer censura nem restrição nem precisa de licença para ser publicada.
Demais, o invocado direito à privacidade para exigir-se a autorização não ocorre no caso, primeiro tendo em vista aquela liberdade garantida nos dispositivos constitucionais, segundo a pessoa notória, que se torna de interesse público pela fama ou significação intelectual, artística ou política e não poderá alegar ofensa a seu direito à imagem se a divulgação estiver ligada à ciência, às letras, à moral, à arte e à política.
As biografias autorizadas caem no rol do panegírico, do louvor, ou porque o biógrafo ganhou para elaborá-la ao gosto do biografado, ou porque o biógrafo admira tanto o biografado que seu objetivo é mesmo destacar suas qualidades.
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José Afonso da Silva, 88, constitucionalista, é professor aposentado de direito da USP.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo, edição 27/4/2014.
Foto: noodlepie.
Dr. José Afonso, cumprimento-lhe e logo destaco que o senhor é a maior autoridade em Direito Constitucional deste país.
Mas peço vênia e ouso discordar. Entendo que a norma do artigo 5º, IX, por se referir a direito individual, e como aprendemos em seus livros que tais direitos são limitações ao poder estatal, dirige-se ao Estado. O Estado não pode censurar ou impor a necessidade de licença. Em que pese a teoria da eficácia horizontal dos direitos individuais, ainda em discussão, vejo que não há como aplicar o citado dispositivo aos casos privados. Ainda que pudesse ser aplicado, a censura a que se refere o dispositivo é prévia, o que não ocorreu no caso específico de Roberto Carlos, por exemplo. A censura posterior é prevista no próprio artigo 20 do Código Civil. Lembremos do Conar e suas censuras posteriores.
Sou favorável à tese dos advogados de Roberto Carlos. A uma, pois o artigo 20 fala em “exposição da imagem” e o caso pode ser aqui encaixado, tanto mais se esta exposição é utilizada para “fins comerciais”. A duas, pois representa invasão de privacidade, que é inviolável, nos termos do artigo 21 do CC. Isto porque invasão de privacidade não é só divulgar fotos de pessoas sem roupas ou em momentos íntimos, mas também é a divulgação de fatos da vida pessoal de alguém.
Ora, os fatos da minha vida são meus, e eu tenho total direito de mantê-los em segredo ou divulgá-los parcialmente ou através de meios menos expressos, como nas músicas do artista em comento. Se é a minha vida, eu decido o que dela expor, ninguém podendo fazê-lo sem minha autorização. Roberto Carlos teve uma perna decepada, perdeu esposas, entre outras tragédias pessoais. São assuntos muito graves pra serem tratados abertamente e de qualquer maneira.