12.11.09

O princípio da lealdade federativa como cláusula geral nas relações federativas

POR PATRÍCIA LAMARÃO

I. Na Constituição Federal de 1988 não há um dispositivo expresso que faça referência ao princípio da lealdade federativa. Trata-se de um princípio implícito segundo o qual a União nas suas relações com os Estados e Municípios, e estes entre si, devem adotar condutas de fidelidade para a efetiva manutenção do pacto federativo. Este princípio impõe normas de conduta nas relações institucionais entre os entes federados sem as quais não se poderia manter a unidade da federação. Exerce verdadeira função de cláusula geral que permeia a relação entre os entes federativos e, embora não escrito, funciona como substrato axiológico para outros princípios expressos na Carta Política (como, por exemplo, ao princípio federativo e ao princípio da autonomia – arts. 1º e 18/CF, respectivamente) e, como princípio constitucional, mesmo que implícito, não carece de eficácia normativa aferida através da análise sistêmica do texto constitucional.

Identificado originalmente pelo direito constitucional alemão, o princípio da lealdade federativa foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão como um princípio não escrito consubstanciado no dever recíproco, entre os entes federados, de comportamento leal na observância ao princípio federativo[1].

Vale ainda ressaltar que o princípio da lealdade federativa deve permear o diálogo e as negociações que se fizerem necessárias entre os entes federativos, impedindo que a União busque acordo com apenas alguns Estados, coagindo os demais a aderirem ao entendimento por eles tomado, bem como repelindo práticas em que, no momento de tomada de decisões políticas relevantes o governo federal busque diálogo apenas com os governos estaduais cuja orientação político-partidária lhe seja favorável, excluindo os governos estaduais com orientação opositora.

Dentro desse dever de cooperação, podemos ainda encontrar reflexos do princípio da lealdade federativa na norma expressa no art. 43 da Constituição pátria que permite a União articular ações visando o desenvolvimento e redução das desigualdades regionais, promovendo o diálogo entre as unidades federadas no intuito de integração e do desenvolvimento econômico e social de regiões que se encontram em situação de desigualdade. Há inclusive, na doutrina pátria, insignes defensores da elevação das regiões como entes federativos dotados de autonomia[2].

Podemos assim perceber, através destas observações, que o princípio da lealdade federativa funciona como verdadeira cláusula geral não escrita a reger as relações institucionais entre os entes da federação, impondo-lhes deveres de fidelidade e cooperação mútua em busca da preservação da unidade federativa.

II. Embora não expressamente invocado pela Suprema Corte pátria, podemos identificar a proteção do princípio da lealdade federativa de forma indireta em vários julgados que visam coibir a adoção de condutas entre os entes federados que levariam a desestruturação da unidade federativa, como é o caso da vedação da denominada “guerra fiscal”, ou mesmo na preservação da autonomia municipal, conforme passamos a discorrer.

Na análise da ADI-MC 2377/MG[3], que aqui tomamos como exemplo, o STF apreciou a insurgência do Estado de Minas Gerais contra ato normativo do Estado de São Paulo que editou ato normativo concedendo benefícios fiscais relativos ao ICMS sob o argumento de minimizar as desigualdades geradas anteriormente através de atos de igual natureza efetivados pelos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, que com isso tornaram-se pólos atrativos para empresas deste ramo específico.

Neste julgado, como em outros no mesmo sentido[4], o STF protege como fim maior a unidade da federação, evitando a “guerra fiscal”, e invocando a obediência dos entes federados ao disposto no art. 155, §2º, XII, g, da Constituição. Por esse mandamento constitucional, no que concerne a isenções, incentivos e benefícios fiscais, qualquer ato unilateral de um dos Estados-membros da federação, desprovido do necessário diálogo com os demais entes, deve ser combatido.

Como se operar um consenso senão imbuído pelo sentimento de fidelidade à unidade federativa e cooperação entre os entes que a compõe? É neste sentido a orientação do princípio da lealdade federativa.

Da jurisprudência e da doutrina pátria emerge como, mais do que presente, um verdadeiro fundamento de validade, o dever de lealdade entres os entes federativos. Eis que, para evitar tensão entre as unidades federadas, a Corte acaba por proteger, via reflexa, o princípio da lealdade federativa, pois mesmo que não o invocando expressamente podemos verificar como elemento indissociável do princípio federativo.

Em outro julgado que, em nossa avaliação, merece análise, o RE 572762/SC[5], podemos vislumbrar indícios da presença, da mesma forma não expressa, do princípio da lealdade federativa, neste caso através da preservação do princípio da autonomia.

A questão debatida neste RE suscita a possibilidade do Estado-membro instituir benefícios fiscais adiando o recolhimento do ICMS, e assim, retardando o repasse da parcela do imposto ao Município conforme determina o art. 158, IV da Constituição Federal. O Estado utilizou-se do inteligente argumento de que não se tratava de desobediência à obrigação do repasse constitucional, pois repasse havia, ocorreria assim mero retardo do recolhimento, o que não feriria a imposição constitucional.

Nas razões da decisão, o Supremo Tribunal entendeu que o incentivo fiscal autorizado unilateralmente pelo Estado ocasionava um repasse a menor do que era devido ao Município. Assim, se o art. 158, IV impõe que 25% da arrecadação do ICMS pelo Estado seja objeto de repasse ao Município, somente seria lícito ao Estado autorizar a postergação do recolhimento do tributo dos 75% que lhes cabe. Ou seja, o Estado não tem disponibilidade sobre a receita do ICMS, mas somente dos seus 75%. Ao autorizar a possibilidade de recolhimento diferido tomando por base a totalidade do produto da arrecadação, o Estado estaria transacionando com uma parte da receita pertencente ao Município, agredindo, dessa forma, a autonomia municipal, posto que o Município deixaria de aplicar o produto da arrecadação em seu benefício.

Também neste caso podemos vislumbrar a defesa da Corte a um dever de fidelidade entre as unidades federadas, especificamente entre Estado e Município, que devem atuar com ética nas suas relações institucionais. Na situação em tela, mesmo observando uma regra expressa constitucionalmente – o art. 158, IV/CF – o Estado agiu de forma desleal em relação ao Município quando autorizou unilateralmente o recolhimento do tributo de forma diferida, colidindo com o interesse concreto do Município, e, em última análise, indo de encontro ao interesse geral do Estado Federal.

Após todas essas considerações, forçoso reconhecer que mesmo não expressamente incorporado no texto constitucional, o princípio da lealdade federativa mostra-se presente como uma cláusula geral a reger as relações institucionais entre os entes da federação, bem como é fundamento axiológico, e ao mesmo tempo decorrente, de outros princípios expressos na Carta maior.

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[1] “No Estado federal alemão, toda a relação constitucional entre seus membros [entre si], é regida pelo princípio constitucional não escrito do dever recíproco da União e dos Estados-membros, de comportamento leal ao princípio federativo” (BVerfGE 12, 205). SCHWABE, Jürgen, comp., Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, organização e introdução: Leonardo Martins, editor responsável: Jan Woischnik, [página da web on line], Montevidéu – Uruguai, Fundação Konrad Adenauer, Programa Estado de Direito para América do Sul, 2005, [citado em 25.06.2009], Formato pdf, Disponível na Internet: http://www.bibliojuridica.org/libros/5/2241/30.pdf, ISBN 9974-7942-1-8.

[2] Neste sentido, vide Paulo Bonavides no Curso de Direito Constitucional, 22ª ed., São Paulo: Malheiros, 2008,, p. 358.

[3] ADI 2377/MG, DJ de 07.11.2003, Tribunal Pleno, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, Ementário 2131:367.

[4] No mesmo sentido, vide: ADI-MC 3936/PR, DJ de 09.11.2007, Tribunal Pleno, Relator Ministro Gilmar Mendes, Ementário 2297:215; ADI 3246/PA, DJ de 01.09.2006, Tribunal Pleno, Relator Ministro Carlos Britto, Ementário 2245:355; ADI 2320/SC, DJ de 16.03.2007, Tribunal Pleno, Relator Ministro Eros Grau, Ementário 2268:129.

[5] RE 572762/SC, DJe de 05.09.2008, Tribunal Pleno, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Ementário 2331:737.



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