Por Luís Francisco Carvalho Filho
10.05.14

Linchamentos

 

Em 1879, em Itu, multidão enfurecida arranca Nazário da prisão, “arrasta-o pelas ruas e lincha-o sem hesitação e piedade”, conta o historiador Xavier da Veiga no final do século 19. O escravo matara a machadadas um ex-deputado, duas filhas e mais duas pessoas que com ele moravam.

O verbo “linchar”, proveniente da língua inglesa (lei de Lynch, de origem controvertida, mas relacionada a execuções sumárias nos Estados Unidos da América), já fazia parte de nosso vocabulário.

A biografia autorizada de Lula, “O Filho do Brasil”, revela que, nos anos 60, o jovem sindicalista presencia o linchamento de alguém que alvejara um grevista: “Eu achava que o pessoal estava fazendo justiça”.

Esta semana, no Guarujá, balneário paulista com alto índice de criminalidade, um episódio estranho, que mistura boato, redes sociais e suposto ritual de magia negra, culmina com espancamento e morte de mulher inocente.

Uma onda de linchamentos também afeta a Argentina. A presidente Cristina Kirchner chegou a se pronunciar no começo de abril, depois de dez casos em dez dias, pondo a culpa em “políticos mentirosos e sem escrúpulos”.

O Núcleo de Estudos da Violência da USP contabiliza 1.179 ocorrências no Brasil entre 1980 e 2006, com mortes, ferimentos, fugas e intervenções policiais que evitaram o pior.

O sociólogo José de Souza Martins tem ensaios primorosos sobre o tema. Documentou mais de 2 mil casos, e, em entrevista concedida em 2008, estimava que, em 50 anos, cerca de 500 mil brasileiros participaram de tentativas ou barbáries consumadas. Fala em três a quatro linchamentos por semana. Aponta as periferias de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador como cenários principais.

Por que lincham?

Se nos EUA – onde a prática foi extirpada depois de uma história dramática de acontecimentos e de política de Estado desenvolvida para o problema – as questões da supremacia racial e da moral puritana estavam em pauta, no Brasil o linchamento tem caráter essencialmente punitivo. É voltado contra pessoas envolvidas em um delito, mais ou menos grave, seguido de “julgamento” instantâneo, informal e popular.

É importante não confundir linchadores com justiceiros, linchamento (espontâneo) com chacina (premeditada). A falência do Estado e sua incapacidade de promover, com eficácia, a expropriação da vingança privada podem até aparecer como ingredientes em determinadas ocasiões, mas não explicam o fenômeno.

O linchamento é reação súbita, anônima, eufórica, irracional, desorganizada e ritualística de gente que se sente ameaçada. A vontade coletiva se impõe à vontade individual. Sua raiz psicológica lembra, de certa maneira, a do genocídio. A turba identifica um inimigo intrinsecamente mau, conforme o imaginário, e comete atrocidades infinitas.

Martins cita a precariedade da construção do nosso ambiente urbano, de uma “população dividida entre a desmoralização completa e a desesperada necessidade de afirmação de valores mais tradicionais da família e da vizinhança”. As cidades recebem, mas não acolhem.

O caso do Guarujá mostra que a internet potencializa a reação histérica de massas. A repulsa eventual e a punição de um ou outro envolvido não são capazes de conter a epidemia.

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Luís Francisco Carvalho Filho é advogado.

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo, edição 10/5/2014.

Foto: ?ethan via photopin cc



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