Por Eduardo Mendonça
16.04.16

Impeachment: Juntar os cacos

Dilma Rousseff e Michel Temer, 01.01.2015

Dilma Rousseff e Michel Temer, 01.01.2015

 

Por Eduardo Mendonça

A Câmara dos Deputados decidirá sobre a admissibilidade do processo de impeachment contra a presidente da República. A intensa polarização do país fará com que os lados experimentem uma sensação inicial de vitória ou derrota. Euforia ou abatimento. É normal que seja assim, mas enganoso. Quando uma parcela da sociedade precisa ser separada da outra por um muro, para evitar o confronto físico, é sinal de que todos perdemos. Muito.

Não é necessário aumentar a dramaticidade do problema e sugerir que o país esteja à beira de uma guerra civil. A imensa maioria das pessoas engajadas na disputa não quer agredir seus opositores ou exigir que troquem de país. Ainda assim, parece evidente que o diálogo está, ao menos momentaneamente, interrompido. O momento é de democracia não-deliberativa: fala-se muito, em voz alta e com fartura de adjetivos, mas não se escuta e não se quer escutar.

Não há consenso nem sequer em relação ao critério das decisões que deverão ser tomadas. Um deputado cita fraude orçamentária e o outro responde que o governo tirou milhões de pessoas da pobreza. Um militante fala em estelionato eleitoral e o outro responde que a mídia não seria democrática. Afirmações que podem estar simultaneamente certas ou erradas e que, por isso mesmo, não chegam a conclusão alguma. Todos querem ganhar o jogo, mas ainda não decidiram se o vencedor será o time com o maior número de gols, escanteios, laterais ou faltas violentas. Enquanto isso, em tudo que não diga respeito ao impeachment, o país está politicamente parado. Quando não andando para trás.

A economia está derretendo e só se fala de outra coisa. A dívida pública explodiu, mas verbas e cargos são distribuídos ou prometidos. Governistas e oposicionistas se digladiam pela prerrogativa de conduzir uma máquina pública cada vez mais ingovernável. Mais do que isso, colaboram no acirramento dos ânimos e na consequente erosão das já escassas possibilidades de governança política, o que só aumenta a sensação de que o maior interesse de parte relevante dos protagonistas não é propriamente servir ao país, mas servir-se dele. Seria ruim em qualquer contexto, mas fica pior pela falta de perspectiva para a superação do impasse.

É preciso interromper a trajetória de queda livre. Isso só será possível pela aceitação do resultado de domingo, qualquer que seja ele. Menos retórica e mais autocrítica. No lado dos defensores do atual governo, é preciso abandonar um discurso de golpe que não resiste aos fatos e revela desapreço pelas instituições. Para ficar apenas nas tais pedaladas, basta lembrar que os bilhões de déficit público não se produziram sozinhos ou subitamente. Apareceram agora porque não foram contabilizados antes, às claras como se exige em uma república democrática. Ocultar o real estado das finanças públicas é grave e constitui conduta que pode ser enquadrado, em tese, na previsão do art. 85, VI, da Constituição, que inclui a violação à lei orçamentária como uma das hipóteses de crime de responsabilidade.

Pode-se discutir se a prática foi grave o suficiente para justificar um impeachment, mas essa é a tarefa que a Constituição atribuiu ao Congresso Nacional, pela interação das diferentes forças políticas que o compõem e sob o controle social do povo. Não há ruptura constitucional na possibilidade de que o Poder Legislativo analise condutas alegadamente irregulares do chefe do Poder Executivo e conclua, sob o devido processo legal, pela ocorrência de crime de responsabilidade. E isso apesar de toda a carga política que se coloca como inevitável nessa apreciação. Com o risco de que se esteja julgando o governo pelo conjunto da obra e sem a ilusão de que todos os participantes desse processo sejam movidos por idealismo e virtude.

Pretender que o resultado somente seja legítimo se corresponder ao entendimento da própria constelação de juristas não deixa de ser um cacoete autoritário, ainda quando movido por boas intenções. Em sua época, o presidente Collor foi condenado pelos parlamentares e posteriormente absolvido pelo Supremo Tribunal Federal. As pessoas são livres para ver injustiça onde quiserem, no juízo político inicial ou no juízo jurídico posterior – e até em ambos, pelas diferentes lógicas que os presidem –, mas cada uma das esferas exerceu o seu papel e a Constituição foi respeitada. Vida que seguiu, vida que haverá de seguir se o desfecho for o mesmo em 2016. Torcer pela convulsão social ou ameaçar com a sua provocação – fazer o discurso do medo – não tem nada de democrático.

Por outro lado, caso a derrota alcance as pretensões da oposição, esta terá de aceitar genuinamente as premissas do próprio discurso. Assim como não haveria golpe na autorização de abertura do processo, tampouco haverá se a conclusão for negativa e o impeachment for rejeitado. E isso a despeito dos expedientes políticos que possam ter sido utilizados pelo governo para construir a base de sustentação de tal resultado. De um jeito ou de outro, não há como afastar o risco de que a absolvição ou condenação seja baseada menos no exame detido das imputações do que em preferências ideológicas ou considerações pragmáticas.

O processo de impeachment impõe constrangimentos jurídicos e deveres de fundamentação sobre um processo que remanesce, em essência, político. Não há outra coisa que se possa esperar, realisticamente, de 513 deputados eleitos. A boa política e o direito deveriam ter evitado que chegássemos até aqui. Não foi assim que as coisas se passaram e o país está pagando o preço elevadíssimo dessa incapacidade, mas tem direito ao dia seguinte e já passou da hora de se chegar a ele.

Para tanto, é preciso desfazer o maniqueísmo e reduzir a grandiloquência. Talvez fosse mais emocionante estarmos vivendo o confronto épico entre as forças do bem e do mal – distribuídas ao critério de cada leitor –, mas nosso drama é mais pedestre e constrangedor. Para a sociedade, passada a paixão do momento, nenhuma vitória partidária representará o triunfo dos inatacáveis. Por isso mesmo, nenhuma vitória será mais importante do que a manutenção do compromisso com as instituições, responsáveis por estabilizar, domesticar e canalizar forças políticas fortemente desacreditadas, agora ainda mais do que antes. Estado de direito não é o ambiente normativo em que equívocos e injustiças eventuais são impossíveis. É o arranjo em que os cidadãos se comprometem primeiro com as regras do jogo e depois com os jogadores circunstanciais. Na segunda-feira, que seja esse o nosso time.

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Eduardo Mendonça é professor de Direito Constitucional do UniCEUB. Doutor em Direito Público pela UERJ. Coordenador-Geral do CEBEC – Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais e Conselheiro do IUC – Instituto UniCEUB de Cidadania. Advogado.

Artigo publicado originalmente no site JOTA, edição 16.04.2016.

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil.



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