12.11.14
Ben Bradlee na encruzilhada do jornalismo e da Justiça
Com a morte do lendário jornalista Ben Bradlee, pipocaram obituários e pensatas na imprensa tentando, como de costume, posicionar e interpretar o legado do mítico editor do The Washington Post, morto aos 93 anos no último dia 21 de outubro.
Bradlee é mais conhecido pela atuação crítica ao dirigir a cobertura do caso Watergate, que repercutiu na renúncia do presidente Richard Nixon em 1974 e projetou ainda mais a influência do modelo de jornalismo norte-americano, consolidando seus valores em todo o ocidente. Entre eles, a ideia de que mesmo não integrando a estrutura do Estado, a imprensa opera como um poder fiscal autônomo chegando, às vezes, a atuar à margem das instituições.
E neste sentido é a atuação de Ben Bradlee em outro evento-chave do jornalismo que ressalta com maior nitidez a questão ainda mais grave sobre quando – e formalmente “como” – cabe à imprensa, em sua função elementar de informar, a condição extrema de contradizer as leis e mesmo confrontar-se com o próprio Estado.
Em junho de 1971, antes de Watergate portanto, Bradlee e Katherine Graham, publisher e proprietária do Post, decidiram publicar uma série de documentos secretos que detalhavam os bastidores e as ações prévias do governo americano antes e durante a guerra com o Vietnã. A série de arquivos entrou para a história como “Pentagon Papers”, os Papéis do Pentágono.
O documento de mais de sete mil páginas compunha um estudo preparado pelo Departamento de Defesa e foi tornado público por um analista militar, Daniel Ellsberg, que se apropriou de forma clandestina dos 47 volumes que formavam o arquivo. Os “Pentagon Papers” revelavam a estratégia deliberada do governo americano de expandir as ações militares na região, à margem da legalidade e do respaldo do Parlamento. As revelações atingiam os antecessores John Kennedy e Lyndon Johnson e, de forma menos direta, o próprio presidente Nixon.
O diário The New York Times foi o primeiro veículo a ter contato com o material. Em fevereiro de 1971, Ellsberg e o repórter do Times Neil Sheehan começaram a avaliar a possibilidade de publicação do conteúdo dos arquivos. No mês seguinte, o analista entregou 43 dos 47 volumes originais ao repórter. Dada a dimensão do escândalo, a direção do jornal decidiu recorrer à consultoria jurídica externa para decidir sobre se publicava ou não o conteúdo dos documentos.
O assessoramento coube à banca novaiorquina Lord Day, fundada em 1845 e especializada em consultoria legal em casos de crimes de colarinho branco. A firma operou até fechar as portas em 1994, frente à deserção de sócios e o colapso financeiro. Em 1971, os advogados da Lord Day foram taxativos e recomendaram que o jornal não publicasse os arquivos, sob pena de ver a publicação tragada por um pesadelo judicial.
Foi então a vez de ouvir o advogado da casa, James Goodale, que dirigiu o departamento jurídico do jornal por anos e posteriormente assumiu a vice-presidência do grupo. Goodale esforçou-se para convencer o publisher do Times, Arthur Ochs Sulzberger, de que a Primeira Emenda da Constituição americana, que versa sobre a liberdade de expressão, podia servir de escudo para evitar uma condenação pela Justiça.
O jornal começou assim a publicar parte do material, provocando uma reação em cadeia. Além do furacão político que tomou o país, começaram a ocorrer protestos e agitação nas ruas contra o governo. Antevendo o imbróglio jurídico que surgiria, o senador democrata Mike Gravel decidiu dar baixa das 4.100 páginas do conjunto de documentos junto ao subcomitê que dirigia, com o fim de atrair o debate para o Parlamento.
Como a 6° Seção do Artigo 1° da Constituição americana garante que temas discutidos no Congresso não podem ser previamente objeto de análise pela Justiça, foi o jeito encontrado de manter os documentos na esfera pública, contornando uma eventual censura com respaldo judicial.
Não foi o caso, evidentemente, para o The New York Times. O procurador-geral dos EUA à época, John Mitchell, conseguiu uma liminar junto a um tribunal federal suspendendo a publicação do conjunto de documentos. A este revés se sucedeu uma decisão inesperada da Suprema Corte, caçando a permanência dos documentos no Senado Federal, sob a guarda de Gravel.
O argumento da altíssima corte foi o de não poder estender ao senador Mike Gravel a garantia constitucional prevista na 6° seção do Artigo 1°, uma vez que o caso já estava em discussão em uma instância judicial.
O Times reverteria a decisão junto à Suprema Corte em um julgamento histórico que virou modelo para discussões posteriores sobre liberdade de imprensa. Mas, antes disso, coube ao The Washington Post tomar para si a responsabilidade de publicar, ou melhor dizendo, coube a Ben Bradlee a decisão de tornar público o conjunto de documentos a despeito de a Justiça, àquela altura, ainda não ter se pronunciado em definitivo e o The New York Times seguir impedido.
Assim que o diário de Washington começou a publicar os documentos ainda em junho de 1971, o procurador-geral adjunto William Rehnquist – que seria nomeado para a Suprema Corte por Ronald Reagan em 1986, e onde se destacou até falecer, em 2005, como um dos maiores expoentes conservadores da história do tribunal – tentou conseguir uma liminar contra o Post, nos moldes daquela que proibiu o The New York Times de seguir com suas matérias sobre o tema. Porém, Rehnquist teve o pedido rejeitado por um juiz federal de primeira instância.
Os processos dos dois jornais foram julgados em conjunto pela Suprema Corte ainda em 1971, quando o tribunal consentiu com a publicação, por maioria de seis votos a três. Antes da decisão, quinze outros periódicos americanos haviam recebido cópias dos documentos e, repetindo o The Washington Post no ato de “desobediência civil”, procederam com a publicação do conteúdo dos Papéis do Pentágono.
Assim como Watergate, o episódio da coragem solidária do The Washington Post tornou-se paradigma romântico para o jornalismo investigativo, tanto para seus méritos quanto para seus vícios.
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Rafael Baliardo é jornalista.
Artigo publicado originalmente no JOTA, edição de 28/10/2014.
Foto: Mike Lien/The New York Times.