4.05.11
A união estável homoafetiva na pauta do STF
RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO
1. Introdução
Mais um polêmico julgamento pelo Supremo Tribunal Federal se avizinha. Está previsto para o dia 4 de maio de 2011 o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 132 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4277, ambas de relatoria do ministro Ayres Britto. Nestas ações se pretende o reconhecimento dos efeitos jurídicos da união entre pessoas do mesmo sexo, comumente denominada de união homoafetiva.
Na ADPF n° 132, o governador do Estado do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, pede seja afastada a interpretação discriminatória do regime jurídico do servidor público fluminense a excluir direitos aos homossexuais, assegurando os benefícios previstos nas normas estaduais aos parceiros de união estável homoafetiva.
Já a ADI n° 4277 foi resultado de acolhimento pela PGR de representação feita pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, embasada em pareceres do professor Luís Roberto Barroso. Na ação, subscrita pela então procuradora-geral da República Débora Duprat, pede-se seja o art. 1723 do Código Civil declarado inconstitucional por não prever como entidade familiar a união estável entre pessoas do mesmo sexo. A ação foi proposta inicialmente em forma de ADPF (ADPF n° 178), mas convertida em ADI por decisão da ministra Ellen Gracie, porque verdadeiramente pretende a declaração de inconstitucionalidade de um dispositivo de lei, não se insurgindo propriamente contra atos do Poder Público.
Em ambas as ações se pretende saber se a união entre pessoas do mesmo sexo pode produzir os mesmos efeitos jurídicos que a união estável. E como consequência, surgiriam os efeitos patrimoniais decorrentes da dissolução da relação, seja por vontade das partes, seja mesmo por falecimento, com repercussão no direito sucessório. O reconhecimento jurídico desta relação, quando ocorrente, resultaria na vinculação dos companheiros aos direitos e deveres próprios de uma relação familiar, e não apenas como uma sociedade de fato.
O ponto central das mencionadas ações é a repercussão patrimonial do reconhecimento jurídico da relação homoafetiva, como o dever de prestar alimentos (mútua assistência), com reflexos previdenciários, e a partilha de bens.
Todavia, outros pontos poderão ser objeto de debate. É inegável que o reconhecimento jurídico também acende o debate sobre questões mais complexas. Se reconhecida a união estável homossexual como entidade familiar, nos termos do art. 1723 do Código Civil, será possível a adoção de uma criança por este casal?
São estas as questões que envolvem o tema e que se pretende enfrentar neste texto.
2. Impedimento do ministro Dias Toffoli
Antes mesmo de iniciar o julgamento, o STF deverá proclamar o impedimento do ministro Dias Toffoli. É que o ministro, ainda quando era advogado-geral da União, foi instado a se manifestar nestes processos, tanto na ADPF n° 132, como na ADI n° 4277, quando opinou pela procedência de ambas as ações, para que fossem reconhecidos os efeitos jurídicos da união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Mesmo quando se trata de processos objetivos, de controle abstrato de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal tem entendido que o ministro que funcionou no processo em outra função, como advogado da União, v.g., fica impedido de decidir, se nomeado para o Tribunal.
A analisar a ADI n° 4167, que impugnava dispositivos da Lei n° 11.738/08, que trata do piso nacional dos professores da rede pública e sua jornada de trabalho, o Supremo Tribunal Federal uma vez mais assentou o impedimento de ministro de sua composição atual que funcionou no mesmo processo como advogado-geral da União. A situação fez com que o Tribunal ficasse composto com apenas dez ministros, causando situação anômala após novo empate – tal como ocorreu no julgamento do RE n° 630.147 e do RE n° e 631102, conhecidos casos de Joaquim Roriz e Jader Barbalho contra a Lei da Ficha Limpa.
A controvérsia surgiu porque, diversamente daqueles primeiros casos da Lei da Ficha Limpa, em que se discutiam processos subjetivos, apesar da repercussão geral, e cujo empate se deu no debate sobre a constitucionalidade de determinada aplicação da lei, no caso da ADI n° 4167 o empate ocorreu no exame da constitucionalidade de uma lei, e não apenas da sua aplicação. E neste caso, por expressa previsão legal, contida no art. 23 da Lei n° 9.868/99, para se proclamar quaisquer dos resultados, seja a constitucionalidade, seja a inconstitucionalidade, é necessária a maioria absoluta. Ou seja, na Ação Direta de Inconstitucionalidade e na Ação Declaratória de Constitucionalidade, a corrente vencedora deverá sempre ser composta da maioria absoluta de seus membros
Diante de mais um impasse na proclamação do resultado de um julgamento empatado, o Supremo Tribunal Federal acabou julgando improcedente a ação, no ponto em que houve o empate, mas afastou o efeito vinculante de sua decisão. O acórdão ainda será redigido e publicado (leia a notícia sobre o julgamento ADI n° 4167).
Talvez seja hora do Tribunal rever este posicionamento quanto ao impedimento de ministro que tenha funcionado como advogado da União nos processos de controle concentrado de constitucionalidade, a evitar que novos empates sejam verificados ou, mesmo quando não haja empate, que não se consiga alcançar no processo abstrato de controle de constitucionalidade a maioria absoluta exigida por lei para a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade de lei. Essa segunda situação é possível de ocorrer se mais de um ministro for declarado impedido, tornando possível que uma decisão tomada por maioria produza efeitos vinculantes – o que torna absolutamente inócua a decisão da Corte Constitucional.
Note-se que o próprio Supremo Tribunal Federal já assentou não serem aplicáveis aos seus ministros as regras ordinárias de impedimento e suspeição, ressalvando-se, porém, a possibilidade de qualquer deles declinar do dever de decidir a questão por motivos de foro íntimo. É o que decidiu o Tribunal na ADI n° 3345, assim ementada:
Os institutos do impedimento e da suspeição restringem-se ao plano dos processos subjetivos (em cujo âmbito discutem-se situações individuais e interesses concretos), não se estendendo nem se aplicando, ordinariamente, ao processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, que se define como típico processo de caráter objetivo destinado a viabilizar o julgamento, não de uma situação concreta, mas da constitucionalidade (ou não), “in abstracto”, de determinado ato normativo editado pelo Poder Público. – Revela-se viável, no entanto, a possibilidade de qualquer Ministro do Supremo Tribunal Federal invocar razões de foro íntimo (CPC, art. 135, parágrafo único) como fundamento legítimo autorizador de seu afastamento e consequente não-participação, inclusive como Relator da causa, no exame e julgamento de processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade. (ADI 3345, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 25/08/2005, DJe-154 20-08-2010)
Ora, mesmo quando se está em debate a constitucionalidade de atos do Tribunal Superior Eleitoral, em cuja composição tomam assento três ministros do Supremo Tribunal Federal, já é pacífico não haver impedimento. A única restrição, no caso, é a exclusão da distribuição, para fins de relatoria, e somente quando possível, dos ministros que tenham participado do julgamento ou da redação da resolução no TSE (art. 77, p.ún. do RISTF). Foi que assentou, uma vez mais, o STF no julgamento da ADPF n° 144, conhecido caso da Ficha Suja, em que se impugnava interpretação do TSE de não barrar candidatos enquanto não houvesse o trânsito em julgado das decisões condenatórias, como exigido em lei. Leia-se a parte da ementa que dispôs sobre a questão:
POSSIBILIDADE DE MINISTROS DO STF, COM ASSENTO NO TSE, PARTICIPAREM DO JULGAMENTO DA ADPF – INOCORRÊNCIA DE INCOMPATIBILIDADE PROCESSUAL, AINDA QUE O PRESIDENTE DO TSE HAJA PRESTADO INFORMAÇÕES NA CAUSA. (ADPF 144, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 06/08/2008, DJe-035 26-02-2010)
Não se ignora, porém, que na ADI n° 55 o STF assentou por unanimidade que os seus ministros que tenham integrado o TSE não estão impedidos de atuar no processo de controle concentrado de constitucionalidade, mas também registrou que “está impedido, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, o Ministro que, na condição de Procurador-Geral da República, haja recusado representação para ajuizar Ação Direta de Inconstitucionalidade” (ADI 55, Relator: Min. OCTÁVIO GALLOTI, RTJ 146/3). Daí decorre o impedimento, pelas mesmas razões, do ministro que tenha atuado como advogado-geral da União.
Entretanto, afigura-se equivocada essa leitura. Primeiro porque o processo, como já afirmado, é de controle objetivo de constitucionalidade de lei ou ato normativo, ou mesmo de atos do poder público, no caso da ADPF. Depois, porque muito mais que o procurador-geral da República, que após a Constituição de 1988 deixou de concentrar as funções de fiscal da lei com a de advogado da União, o advogado-geral da União atua como parte, defendendo os interesses da União Federal. Assim, não é hipótese a ser descartada que como AGU, o ministro não tenha agido com maior liberdade de expressão de sua convicção, porquanto seu dever primeiro não era fiscalizar a correta aplicação da lei, mas defender a União Federal.
Por este motivo, encontro bem menos motivos para o impedimento do ex-advogado-geral da União que tenha oficiado no processo, que dos próprios ministros do STF que funcionaram no TSE, quando em jogo o exame da constitucionalidade de atos daquele Tribunal, ou também do procurador geral da República.
Apesar disto, é provável que o ministro Dias Toffoli fique impedido de participar do julgamento por ter atuado nestes processos (ADPF n° 132 e ADI n° 4277) como advogado- geral da União. Mas talvez seja a hora do Supremo Tribunal Federal rever este seu posicionamento, realinhando-se, e ampliando a afirmação expressada na ADI n° 3345, pela qual os “institutos do impedimento e da suspeição restringem-se ao plano dos processos subjetivos (…), não se estendendo nem se aplicando, ordinariamente, ao processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade”. Se o Tribunal não revir seu posicionamento, só se espera que não haja novo empate – hipótese não muito provável neste caso, mas possível que venha a ocorrer.
3. Do conteúdo informacional das ações
Estas ações de controle concentrado de constitucionalidade estão amplamente aparelhadas de conteúdo informacional. Apesar de não se ter convocado audiência pública, como já se fizera em outras oportunidades (ADPF n° 54, sobre a interrupção da gravidez de feto anencéfalos, e a ADPF n° 101, sobre a importação de pneus), talvez sejam estas as ações mais aparelhadas de informações, dado o grande número de pedidos de habilitação como amicus curiae.
Faça-se a ressalva, porém, que se poderá ter no caso o desequilíbrio informacional. É que as intervenções feitas, considerados os próprios autores, os órgãos públicos ouvidos, e também grande parte dos amici curiae querem a procedência da ação.
A AGU, então representada pelo ministro Dias Toffoli, apresentou manifestação pela procedência de ambas as ações. Também é esta a posição da Procuradoria Geral da República, que inclusive é a autora da ADI n° 4277. Somam-se à estas manifestações as informações prestadas pelos Tribunais de Justiça que, embora não se manifestem sobre o mérito, informam em sua grande maioria a existência de precedentes admitindo os efeitos jurídicos da união homoafetiva. É caso, v.g., dos Tribunais de Justiça do Acre, do Paraná e do Espírito Santo.
Merece destaque a intervenção feita pelo presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, desembargador Armínio José da Rosa, que não apenas se manifestou pela procedência da ação, trazendo ampla fundamentação à sua peça jurídica, mas também afirmou que mesmo administrativamente o Tribunal já reconhecia à tutela jurídica da união homoafetiva, já tendo a Corregedoria daquele Tribunal editado provimento permitindo o registro das relações homoafetivas. Por lealdade, o presidente do TJRS também informou que havia precedentes, minoritários na sua jurisprudência, em sentido contrário à pretensão versada na ADPF.
O presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, desembargador José Carlos Murta Ribeiro, defende as decisões do Tribunal, que foram inclusive utilizadas como pretexto para a instauração, mas sustenta que há decisões nos dois sentidos. Registra, porém, que no âmbito administrativo, o Tribunal cumpre a estrita legalidade, não podendo conceder direitos não contemplados expressamente na lei, e que no Estado do Rio de Janeiro só uma lei a assegurar direitos aos companheiros homossexuais, que prevê apenas direitos previdenciários a servidores estaduais, o que passou a ser observada pelo TJRJ na esfera administrativa.
A presidente do Tribunal de Justiça da Bahia, apesar de afirmar e comprovar a ampla controvérsia judicial a respeito do tema, sustenta o não cabimento da ADPF, e suscita “questão de ordem para que a Corte Suprema avalie o cabimento da ADPF”. Sustenta ainda que o STF não pode exercer o “monopólio de interpretação total anuviando o livre convencimento do juiz de ser cuidadosamente ponderado”. No mérito, pondera que, com a “dimensão geográfica, cultural e ideológica do Brasil, existem variações na predominância e aceitação da união homoafetiva”, tudo a recomendar que a matéria seja debatida, tal como no direito comparado, pela via do processo legislativo, e não pela via do controle de constitucionalidade.
Ao lado de riquíssimas intervenções, outros tribunais foram tímidos na prestação informacional. É o caso do Tribunal de Justiça do Mato Grosso que se manifestou contrário à pretensão versada na ADPF n° 132, sustentando apenas em precedentes de sua jurisprudência, e também nas decisões administrativas que se limitam à estrita observância das leis estaduais, onde não existe “previsão para as situações que envolvam relações homoafetivas“.
Outros tribunais, instados, não se manifestaram sobre a pretensão, como ocorreu com o TJDFT. Já o Tribunal de Justiça de Rondônia não registra precedente, seja judicial, seja administrativo, em que tal controvérsia tenha sido discutida.
Em contraposição às diversas manifestações de órgãos oficiais em defesa da procedência das ações, e embora reconheça que a reconhecimento jurídico das “relações homoafetivas é devido e urgente”, o presidente José Sarney encaminha manifestação técnica do corpo jurídico do Senado Federal pela improcedência da ação, porquanto pode-se até falar em “entidade homoafetiva”, mas jamais equipará-la a uma entidade familiar, quando muito como sociedade de fato.
Por sua vez, a Câmara dos Deputados, em manifestação firmada pelo então presidente Michel Temer, sustentou que “não há o que esta Presidência informar”, deixando de opinar sobre o mérito da controvérsia.
Em intervenções como amici curiae, várias entidades se manifestaram sobre o mérito da controvérsia, em sua maioria pela procedência da ação. É o caso, v.g., da Associação de Incentivo e à Saúde de São Paulo, da Conectas, da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais.
Mas há também pedidos de intervenção, na qualidade de amicus curiae, para defender a improcedência dos pedidos formulados na ADI n° 4277 e na ADPF n° 132. Merece destaque, neste ponto, a intervenção da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, dada a sua representatividade, defendendo que “a Constituição Federal define o vínculo familiar na união conjugal da mulher e do homem e do homem e da mulher, tanto que tal entidade (a família), assim organizar, dá amparo ao instituto do casamento”.
E também é digna de registro a intervenção da Associação Eduardo Banks, que muito embora não goze da mesma representatividade da CNBB, traz ao lado de argumentos puramente jurídicos, fundamentos no mínimos excêntricos, para defender a improcedência. Sustenta que se presencia um “processo de degenerescência moral no seio de nossa sociedade”, e que não basta reconhecê-lo, mas é preciso aplicar “a força do Judiciário contra a nítida decadência da família, arredando o caos instalado”. E encerra profetizando que, se forem acolhidas as ações, “o Brasil terá entrada no infame grêmio daquelas nações que, como Roma e Sodoma, foram varridos com a poeira dos séculos junto com seus povos que institucionalizaram a torpeza e o despudor – e que se reduziram a ser nada (nihil)”.
Esse o conteúdo informacional depositado nos autos das ações que o Supremo Tribunal Federal julgará em mais uma sessão que pretende ser histórica.
4. Religião e Direito
Ingressando no mérito da questão constitucional, o primeiro tema que deve ser enfrentado é o conflito entre religião e Direito. Não se pode negar a clara influência cristã em nosso Direito, estampada inclusive no preâmbulo da Constituição de 1988, ao se invocar a proteção de Deus para a Assembléia Nacional Constituinte. Mas se defende a República Federativa do Brasil como um estado laico, indiscutivelmente tolerante com a liberdade religiosa, protegendo a liberdade de culto, qualquer que seja, e também a defesa daqueles que não professam fé alguma.
Ao ser questionado sobre a eventual inconstitucionalidade do preâmbulo da Constituição do Estado do Acre, por não constar a expressa invocação de Deus, o STF teve a oportunidade de analisar a natureza jurídica do preâmbulo, assentando não ter força de norma. Na ADI 2.076, o Tribunal decidiu que o preâmbulo não tem força normativa. Assentou o ministro Carlos Velloso, relator, que o “preâmbulo, ressai das lições escritas, não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do constituinte”. E arremata que o preâmbulo:
(…) reflete, simplesmente, um sentimento deísta e religioso, que não se encontra escrito na Constituição, mesmo porque o Estado brasileiro é laico, consagrando a Constituição a liberdade de consciência e de crença (C.F., art. 5°), certo que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (C.F., art. 5°, VIII). A Constituição é de todos, não distinguindo entre deístas, agnósticos ou ateístas. (ADI 2076, Relator: Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 15/08/2002, DJ 08-08-2003 PP-00086)
Foi mais incisivo o ministro Sepúlveda Pertence, no mesmo julgamento, ao assentar que a “locução ‘sob a proteção de Deus’ não é uma norma jurídica, até porque não se teria a pretensão de criar obrigação para a divindade invocada”. E também o ministro Marco Aurélio assentou que o “preâmbulo, o intróito não integra o corpo da própria Constituição”.
Dos membros do Tribunal presentes no julgamento da ADI n° 2076, permanecem integrando o Tribunal apenas os ministros Marco Aurélio, Celso de Mello, Ellen Gracie e Gilmar Mendes. Os demais ministros, em tese, não estão comprometidos com a tese da irrelevância jurídica do preâmbulo da Constituição.
Quando discutia questão que envolvia o livramento condição do apenado, no bojo de um habeas corpus, alheio à discussão sobre o conteúdo normativo do preâmbulo da Constituição da República, o ministro Ayres Britto chegou a invocá-lo na seguinte passagem: “construção do tipo ideal de sociedade que o preâmbulo de nossa Constituição caracteriza como ‘fraterna’” (HC 94163, Relator: Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado em 02/12/2008, DJe-200 23-10-2009). Porém, tal consideração se deu como reforço argumentativo, um obter dictum, e não propriamente como ratio decendi para a concessão daquele habeas corpus.
Ao julgar a ADI n° 3510, contra a Lei n° 11.105/05 (Lei da Biossegurança), que questionava a constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias, novamente o ministro Britto invocou o preâmbulo da Constituição em seu voto, inclusive na ementa do julgamento. Todavia, uma vez mais, o fez em obter dictum, e não propriamente como ratio decendi. Mais que isso, também em jogo naquele debate constitucional conflito em liberdade e convicção religiosa, optando o ministro, e também o Tribunal, pela prevalência da liberdade, a permitir que o casal, especialmente a mulher, opte por métodos de fecundação in vitro, sem a obrigação de “aproveitamento reprodutivo de todos os embriões eventualmente formados e que se revelem geneticamente viáveis” (ADI 3510, Relator: Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 29/05/2008, DJe-096 28-05-2010).
Vê-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal assentou ter a Constituição imunizado o Estado brasileiro das influências religiosas, ao menos no âmbito do exame da constitucionalidade das leis. É dizer, apesar de forte influência religiosa no Parlamento, pode o Estado dispor, no Direito, diversamente do que recomendaria essas mesmas crenças religiosas. A religiosidade e o Direito, portanto, nem sempre andam de mãos dadas.
5. Lacuna da norma, silêncio eloquente, proibição peremptória ou mutação constitucional
Pelo que demonstrado, não se pode admitir como parâmetro de controle de constitucionalidade eventual opção da Assembléia Nacional Constituinte por alguma crença religiosa, posto que, na leitura do próprio Supremo Tribunal Federal, a invocação da proteção de Deus “não integra o corpo da própria Constituição”, como sustentou o ministro Marco Aurélio na ADI n° 2076. Assim, para o exame destes dois processos de controle abstrato de constitucionalidade resta a análise fria e desapaixonada do texto constitucional, para que se possa ao final concluir se, pelos textos normativos vigentes, há ou não o direito ao reconhecimento jurídico da união estável entre pessoas do mesmo sexo.
É indiscutível que a proteção constitucional às liberdades, especialmente aquela assentada no art. 5°, II da Constituição da República, impede peremptoriamente que a união estável entre pessoas do mesmo sexo seja considerado um ato ilícito. É que nenhum dispositivo constitucional, ou mesmo legal, afirma a ilicitude. E no campo do direito privado, ao menos, tudo é permitido, se não for proibido por lei.
Todavia, resta a discussão se a união estável homoafetiva produz efeitos jurídicos, e se à ela pode ser invocada a proteção do Estado.
A Constituição da República de 1988, em seu art. 226, ao tratar da família, e do próprio casamento, nos §§ 1° e 2°, do mesmo artigo, não deixou expressa a necessidade deste enlace civil ser entre pessoas de sexo distinto. Todavia, ao positivar no texto constitucional o instituto da união estável, no mesmo art. 226, em seu § 3°, a Constituição só garantiu a proteção do Estado às uniões estáveis “entre homem e mulher”, assim consideradas como “entidade familiar”. Leia-se o texto do dispositivo constitucional:
Art. 226. Omissis.
§ 3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
A grande discussão gravita em torno da omissão no texto constitucional sobre a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Resta saber se o caso é de mera lacuna normativa, ou de um silêncio eloquente do Constituinte. Em sendo eloquente o silêncio, este se torna apto a legitimar uma interpretação que é sempre perigosa, a contrario sensu, de que não teria essa união o “efeito da proteção do Estado”. E em último plano, se compreendida como não vedada, a proteção do Estado à estas uniões estáveis homoafetivas já decorre do princípio da isonomia, prescindindo de lei que expressamente a preveja, ou ao contrário, somente poderá ser garantida pelo Congresso Nacional, seja mesmo pelo Poder de Reforma da Constituição, seja mediante a edição de lei ordinária.
Não parece restar dúvidas que o silêncio do Constituinte foi eloquente. Ou seja, quando da edição do texto constitucional se fez a opção por não contemplar à união estável homoafetiva a proteção do Estado, deixando de considerá-la como entidade familiar. Entretanto, não se pode admitir a interpretação a contrario sensu de que esta união é vedada pelo ordenamento constitucional. Não há nenhum dispositivo que autorize legitimamente essa leitura.
Somente por isso já tem como juridicamente possível que o Congresso Nacional, investido de sua competência legislativa, disponha sobre o tema. Igualmente seria possível que os Estados garantissem a proteção, no âmbito de suas competências, à estas uniões homoafetivas, como v.g. nos estatutos jurídicos de seus servidores, ou mesmo na prestação de serviços ou programas sociais.
Mas isso apenas não resolve a controvérsia posta nestas ações. É necessário responder ao maior questionamento: a proteção estatal à união estável homoafetiva já decorre do próprio texto constitucional, ou seria necessário norma, constitucional ou infraconstitucional, para assegurar essa proteção? A isonomia proclamada no caput do art. 5° já é suficiente a garantir aos homossexuais o direito de constituir a família merecedora de especial proteção do Estado, tal como aos heterossexuais?
O Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de enfrentar o tema do reconhecimento jurídico da união estável homoafetiva, o fazendo por seus órgãos fracionários. A Sexta Turma do STJ, subdivisão da Terceira Seção, com competência para decidir as questões relativas ao Direito Previdenciário (art. 9°, §3°, II RI STJ), v.g., afirmou que a Lei n° 8.213/91, ao contemplar o companheiro em união estável no rol de segurados da Previdência Social, não excluiu os companheiros de relação homoafetiva.
Da leitura do inteiro teor deste acórdão, formado após decisão unânime, percebe-se que o STJ recusou-se a analisar a constitucionalidade da própria interpretação das normas que dera as instâncias ordinárias, tendo por parâmetro o art. 226, §3° da Constituição da República. O ministro Hélio Quaglia Barbosa, relator, fundamentou o seu voto no art. 201, V da Constituição da República, que segundo ele não exclui do conceito de companheiro, beneficiário de pensão por morte, aqueles decorrentes de relacionamento homoafetivo. Todavia, sustentou que no caso houve lacuna do texto constitucional, podendo ser preenchida pelo intérprete, e asseverou que o próprio INSS, através da Instrução Normativa n° 25 de 07/06/2000, regulou a matéria, prevendo o benefício aos companheiros homossexuais, ainda que em atendimento à determinação judicial, decorrente de uma ação civil pública (REsp 395.904/RS, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, SEXTA TURMA, julgado em 13/12/2005, DJ 06/02/2006, p. 365).
O tema voltaria a ser debatido, sob o aspecto patrimonial da dissolução da união estável homoafetiva, na Segunda Seção, que tem dentre as matérias afetas à sua competência o Direito de Família (art. 9°, §2°, IV do RI STJ). O julgamento foi interrompido com um pedido de vista, mas já foram registrados quatro votos pelo reconhecimento dos efeitos jurídicos da relação dentro do Direito de Família, contra dois votos que afirmam ser constitucionalmente possível o reconhecimento jurídico da união homoafetiva, mas a depender de lei.
Conforme noticiado no site do STJ, a ministra Nancy Andrighi, relatora, sustentou que “as uniões de pessoas de mesmo sexo se baseiam nos mesmos princípios sociais e afetivos das relações heterossexuais”, e que recusar o reconhecimento jurídico representaria ofensa ao princípio da dignidade humana.
Também registra o voto da ministra relatora importante fundamento, segundo o qual “as famílias pós-modernas adotam diversas formas além da tradicional, fundada no casamento e formada pelos genitores e prole, ou da monoparental, inclusive a união entre parceiros de sexo diverso que optam por não ter filhos”. E assenta que todas essas entidades “caracterizadas pela ligação afetiva entre seus componentes, fazem jus ao status de família, como entidade a receber a devida proteção do Estado” (notícia sobre o julgamento na Segunda Seção do STJ, interrompido em 4 x 2).
É esse, ao que parece, o fundamento mais forte. As famílias de hoje são diversas das famílias de ontem. O conceito de família em vigor atualmente já não coincide com o conceito estabelecido outrora.
Em assim sendo, parece que o caso exige uma “interpretação constitucional evolutiva”, de que trata Luís Roberto Barroso, quando se atribui “novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal”, o que é necessário sempre “em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7ª ed. rev. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 151).
Não é a primeira vez que se tenta submeter o tema do reconhecimento jurídico da união estável homoafetiva à jurisdição constitucional. Na ADI n° 3300, proposta pela Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo, que também requereu o ingresso como amicus curie na ADPF 132 e na ADI 4277, impugnava-se o conteúdo da Lei n° 9.278/96, que regulamentava exatamente o art. 226, §3° da Constituição da República. Mas a mencionada norma foi derrogada pelo Código Civil de 2002. Em razão disso, o ministro Celso de Mello, relator, extinguiu o processo sem o exame de seu mérito. Todavia, tal como fez na ADPF n° 45, onde também proferiu decisão de extinção do processo sem exame de mérito, o ministro Celso de Mello manifestou-se em obter dictum sobre o seu mérito.
E nesta decisão, que mandou ao arquivo os autos da ADI n° 3300, o ministro Celso de Mello de alguma forma antecipou o seu posicionamento sobre o tema:
(…) cumpre registrar, quanto à tese sustentada pelas entidades autoras, que o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqüências no plano do Direito e na esfera das relações sociais.
E mais adiante registra o que pode da sustentação à tese da interpretação constitucional evolutiva, ou a denominada mutação constitucional, quando menciona que “Essa visão do tema, que tem a virtude de superar, neste início de terceiro milênio, incompreensíveis resistências sociais e institucionais fundadas em fórmulas preconceituosas inadmissíveis”.
Assim, penso que é possível compreender que em 1988, quando promulgado o texto constitucional, a percepção da entidade família era bastante diversa do conceito que hoje vigora no Brasil. Certamente em razão disso, não se preocupou o constituinte com a união estável entre pessoas do mesmo sexo, a união homoafetiva. Muito embora seja a Constituição de 1988 a mais rica da história constitucional brasileira a contemplar direitos e garantias, deixou de fazê-lo expressamente em relação à união entre pessoas do mesmo sexo. Todavia, é possível observar que o texto constitucional concebeu maior pluralidade às entidades familiares, antes restritas ao casamento entre pessoas de sexo oposto, fundado na influência religiosa da positivação do nosso Direito.
Se, por um lado, o Constituinte contemplou expressamente a união estável heterossexual no rol de entidade familiar, por outro não proibiu ou restringiu o reconhecimento a outros modelos de entidades familiares. A ausência de expressa vedação no texto constitucional, associada ao exame de outros dispositivos constitucionais, como a outorga das liberdades, à proteção à intimidade e à vida privada, incluindo a orientação afetivo-sexual, e especialmente a dignidade humana (versada sob o nomen juris de dignidade da pessoa humana), permite concluir a possibilidade de uma interpretação evolutiva contemplar outras espécies de entidade familiar não previstas no texto constitucional.
É certo que o texto constitucional não admite, por qualquer que seja o motivo, a intolerância. Mas, além do combate à intolerância, é necessário outorgar à união homoafetiva outros direitos, como os efeitos patrimoniais da relação, na divisão dos bens segundo as regras de Direito de Família, cujo esforço comum é presumido jure et jure, e não apenas como simples sociedade de fato, a exigir rateio dos bens proporcionais ao efetivo esforço. Também decorre do reconhecimento, como já afirmado, o dever da mútua assistência, a se estender, inclusive, após a dissolução, ou pós-morte.
Ao se negar estes direitos, ainda que não transpareça facilmente, estaria o próprio Estado sendo intolerante. E pior, construindo ambiente propício à intolerância e aos conflitos sociais. Não raro se lê notícia de conflitos entre os parentes consaguíneos de um homossexual falecido e o seu companheiro. O não reconhecimento pelo Direito da união estável havida, ou a sua tutela apenas enquanto sociedade de fato, longe de apaziguar conflitos, os instiga. A intolerância, que muito se combate, passa a ser incentivada, não apenas pela incerteza do Direito, mas especialmente se o Direito negar a proteção daquela relação enquanto um fato jurídico do Direito de Família.
É indiscutível, todavia, que se o STF acolher a ação, uma vez mais estará atuando como legislador positivo, no denominado ativismo judicial que muitos combatem. É fato notório que o Congresso Nacional jamais legislou sobre o tema, mesmo após a Constituição da República promulgada em 1988, por encontrarem os projetos de lei ali propostos forte resistência da bancada religiosa.
Mas, enfim, pelos mesmos fundamentos acima postos, também se poderia reconhecer não apenas a união estável homoafetiva, mas o próprio casamento entre pessoas do mesmo sexo. Entretanto, esta matéria não foi objeto de impugnação nas mencionadas ações, e neste caso o STF não poderia agir ex officio. Não seria o caso de se invocar a causa petendi aberta, quando se tem que o Tribunal não se limita aos fundamentos expostos nas ações de controle concentrado, mas apenas ao pedido. É que o pedido não contempla eventual declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da lei civil a restringir o casamento à pessoas de sexo oposto, e menos ainda se impugna na ADPF atos registrais que se recusam a abrir proclamas para casais homossexuais. O tema fica guardado para oportunidade futura, se algum dos legitimados provocar a jurisdição constitucional, ou mesmo em eventual exame de caso concreto subjetivo.
Voltando à união estável homoafetiva, tem-se que o ponto mais controvertido, e delicado, talvez seja a possibilidade destes companheiros homoafetivos adotarem, ambos conjuntamente, crianças. É que, neste caso, não está em discussão apenas os direitos dos próprios companheiros, e a eventual tutela pelo Estado, mas também o direito de terceiro – a criança adotanda. Essa questão, ao meu ver, foge um pouco do debate puramente jurídico. Mesmo para o exame da constitucionalidade da adoção por companheiros homoafetivos, seria necessário examinar se há carência de casais heterossexuais para que se permita a adoção por casais homossexuais. É que na adoção, o que se busca preservar é o interesse do menor, e não eventuais direitos dos pais adotivos.
6. Conclusão
Em primeiro lugar, e como questão preliminar, tem-se que o STF deveria analisar criticamente a sua jurisprudência, segundo a qual fica impedido de atuar, ad hoc, como membro da Corte Constitucional, o ministro que tenha oficiado no processo como advogado geral da União, antes de ser nomeado para a relevante função de guardião da Constituição. Se assim o fizer, poderá o STF assentar a ausência de impedimento na participação do ministro Dias Toffoli no julgamento da ADPF n° 132 e da ADI n° 4277, não obstante tenha oficiado em ambas como advogado geral da União.
Superada a questão posta, sobre o eventual impedimento do ministro Dias Toffoli, e considerados os fundamentos acima aduzidos, tem-se que ambas as ações devem ser julgadas procedentes, para que sejam reconhecidos os efeitos jurídicos da união estável homoafetiva, a exigir especial proteção do Estado.
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RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO é advogado, Conselheiro Seccional da OAB/MA, Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA, e fundador do site Os Constitucionalistas (www.osconstitucionalistas.com.br). Siga o autor no Twitter @rodlago e no Facebook.
Obrigado pelo excelente texto. Os textos dos noticiários poderiam conter informações técnicas como essas, pelo menos de modo resumido, para que a população soubesse mais sobre o funcionamento da Lei brasileira, o que exatamente está a ser julgado, e quais tipos de argumentos são cabíveis.
[…] favoráveis dos “amici curiae” e pelos votos dos minsitros –, como demonstra este artigo, os quais Reinaldo Azevedo não conhece (o mais provável) ou faz questão de não […]
[…] favoráveis dos “amici curiae” e pelos votos dos minsitros –, como demonstra este artigo, os quais Reinaldo Azevedo não conhece (o mais provável) ou faz questão de não […]
Engraçado que no julgamento sobre a constitucionalidade da Lei da Ficha limpa a constituição era “um santuário sagrado”. Neste caso da união homoafetiva a constituição tornou-se marionete pagã.
Mais engraçado ainda é que quando o STF se revela um poder constituinte permanente “para o bem” todo mundo acha lindo. Mas quando não é “para o bem”…
foi uma decisão muinto boa!!esta na hora do brasil mudar acabar com os preconceitos contra os homosexuais.
Obrigada por compartilhar excelente estudo.
Fico perplexa a refletir uma frase:
“nem tudo o que é legal é moral”…