Saul Tourinho Leal
11.03.14

Por que o Zimbábue e a África do Sul tomaram rumos tão diversos

 

“Bem, eu não gosto de pessoas segurando a minha mão. Então, eu afastei a minha mão da dele e fui para a outra ponta do sofá” – bufou Ian Smith, primeiro-ministro da então Rodésia, que exerceu cruelmente o poder entre os anos de 1964 e 1979, impondo a 5 milhões de negros o capricho racista de uma minoria branca.

Smith referia-se à tentativa de reconciliação de Robert Mugabe, o primeiro negro a assumir, democraticamente, o poder no Zimbábue, em 1980. A confidência foi feita à escritora Heidi Holland, publicada em “Dinner with Mugabe: The untold story of a freedom fighter who became a tyrant”, sem tradução no Brasil. Ela simboliza a tempestade de revanchismos que tem sacudido o país desde sempre.

Logo após sua vitória nas urnas, Robert Mugabe propôs uma reconciliação ao ex-presidente Ian Smith, responsável pelos 11 anos nos quais Mugabe esteve na cadeia. A humilhação de ver sua mão estendida acendeu a primeira centelha de ódio que marcaria o governo de Mugabe, eleito em junho de 2013, pela sétima vez, presidente do país, numa eleição marcada por acusações de violência, desrespeito a direitos, pouca transparência e muita, muita fraude.

“Ele foi um bom presidente. Mas, em algum momento, mudou o rumo das coisas. Agora, muitos de nós estão aqui”- disse-me o jovem de 24 anos, Joshua Muchara, enquanto me servia um copo de suco de laranja no Richard’s Bistro, onde trabalha, na Cidade do Cabo, África do Sul.

Joshua passou a folhear, maravilhado, os livros que eu trazia comigo sobre o seu país: “Eu queria muito ler. Mas tenho de trabalhar agora”- falou antes de partir para o balcão da cozinha.

Minutos depois, minha mesa recebeu a inesperada visita de uma garota simpática, com um sorriso largo e um inglês falado numa voz angelical.

“Você quer saber sobre meu país?” – perguntou-me Mary, 23 anos, vestida na farda do Richard’s e usando uma discreta tiara branca sobre o cabelo. Antes que eu respondesse, ela olhou nos meus olhos e continuou: “Uma grande crise econômica nos fez perder tudo. Eu larguei a escola e o sonho de fazer uma faculdade”. A garçonete realmente queria ser ouvida: “Mas eu vou voltar ao Zimbábue para pegar todos os meus documentos. Vou retomar os estudos. Eu quero cursar faculdade de administração de empresas” – disse, enquanto passava um pano sobre a mesa.

Mal eu tinha terminado de tomar nota apareceu Lungile, com seu cabelo curto arrepiado e uma face com a pele macia: “Essa é a minha segunda semana aqui. Eu trabalhava em outro restaurante” – disse, tímida. “De onde você é?”- perguntei. “Zimbábue!”- respondeu, passando a falar sobre como a pronúncia do seu nome muda quando ela está no seu país.

Joshua, Mary e Lungile, jovens negros zimbabuanos que tentam a vida na África do Sul, são frutos de uma jornada que precisa ser contada nesta série, que envolve sentimentos que antecipam o nascimento da jurisdição constitucional.

Desde 1980, o Zimbábue é governado por Robert Mugabe, um herói – líder guerrilheiro alçado ao poder em eleições livres -, que acabou com a supremacia branca e, depois, se transformou num autocrata rancoroso que governa com o dedo enfiado em cicatrizes não curadas.

Ele tem um início de caminhada tão esplendoroso como o de Nelson Mandela. Ambos são líderes africanos negros que desafiaram a prepotência da colonização e do apartheid impostos pela Grã Bretanha. Mesmo com formação intelectual, passaram a travar uma luta contra o império valendo-se de táticas terroristas.

Robert Gabriel Mugabe nasceu dia 21 de fevereiro de 1924, em Kutama, a cerca de 100 km de Harare, capital do Zimbábue. Nelson Rolihlahla Mandela nasceu em Mvezo, em 18 de julho de 1918, na África do Sul. Eles cresceram sem a presença paterna e desenvolveram uma ligação muito forte com suas mães.

Mugabe se casou pela primeira vez com Sally Hayfron, professora em Gana e grande entusiasta da luta por liberdade na África. O segundo casamento de Mandela foi com Winifred Madikizela, a Winnie Mandela, que tinha pendor por grande batalhas. Mugabe passou 11 anos na cadeia, na província de Gwelo e foi impedido de ir ao enterro do filho, Nhamo Mugabe, em 1966. O mesmo aconteceu com Nelson Mandela, isolado por 18 anos em Robben Island sem ter podido comparecer ao funeral do filho, Madiba Thembekile, em 1969.

Os dois, após conquistarem a liberdade, foram honrados por multidões às ruas. Nas eleições seguintes, livres e com participação negra, elegeram-se presidentes.

Contudo, enquanto Mandela suportou o caminho da reconciliação, Mugabe sucumbiu e abraçou a revanche. Um acreditou e manteve uma Constituição livre. O outro, diante dos complicadores que a política lhe apresentou, preferiu a força.

Dentre vários encontros que Mugabe teve com Nelson Mandela, um é ilustrativo. Na década de 90, eles inauguraram uma ponte na fronteira entre os dois países. Os presidentes caminharam em direção ao meio de seus respectivos lados, cada um carregando uma tesoura para cortar a fita de inauguração. Do lado sul-africano havia estudantes brancos que organizaram um almoço. Mandela agradeceu aos estudantes e, de repente, anunciou uma foto com os dois presidentes.

Ele chamou o presidente do Zimbábue para a foto, referindo-se simplesmente como “Mugabe”, sem seguir o protocolo. No momento em que se preparou, os estudantes correram para Mandela. Dois deles se sentaram em seu colo. Mugabe foi deixado de lado. Ele olhou ofendido enquanto Mandela se divertia diante das câmeras. Sentiu-se ofuscado pelo líder carismático.

Heilli Holand relata ainda que o ciúme que Mugabe tinha de Mandela era semelhante à rivalidade que há entre irmãos. Ele desejou a vida inteira ser tido como alguém especial, uma pessoa diferente de todas as outras. “De repente, quando começa a subir os degraus em direção ao seu castelo, aparece aquele irmão mundano, sábio, mais velho, que estava no topo da sua jornada e que monopolizava todos os holofotes”- anota a escritora. Para Holand, “o fato de Mandela emergir como o rei do mundo era uma decepção muito difícil para um homem fraco como Mugabe suportar tranquilamente”.

O próprio Mandela, em tom de brincadeira, dizia que Mugabe tinha sido a estrela, “até que o sol saiu”. O sol era o próprio Mandela.

Como pode dois líderes africanos chegarem ao século XXI com legados tão diversos?

A resposta explica o porque da juventude negra zimbabuana servir sucos de laranja nos restaurantes da Cidade do Cabo.

Pelas mãos de Nelson Mandela seu país abraçou o perdão. “Peguem suas armas, suas facas, suas ‘pangas’, e joguem ao mar. Eles me deixaram preso 27 anos e eu os perdoei. Se sou capaz de perdoar, vocês também são!”- disse Mandela, em cadeia nacional de televisão em 1990, quando a África do Sul se desmanchava em sangue na luta entre brancos e negros.

Essa chuva de perdão irrigou a Constituição sul-africana, possibilitando que a Corte Constitucional manuseie um instrumento muito generoso para com o povo da África do Sul.

Enquanto isso, o Zimbábue é o retrato do rancor racista. Um ódio inicialmente imposto pela minoria branca sob a liderança de Ian Smith. Depois, gradualmente empregado pela maioria negra sob o comando de Robert Mugabe. Hoje, zimbabuanos migram para a África do Sul em busca de prosperidade. Não o contrário.

Enquanto Mandela optou pelo caminho da reconciliação e encontrou em seus algozes uma boa receptividade, Robert Mugabe viu o líder branco Ian Smith deixar-lhe com a mão estendida e liderar uma oposição que pretendia, antes de tudo, manter a concentração de terras nas mãos dos brancos e perseguir o ideal de supremacia baseada na cor da pele. Diante do quadro, Mugabe preferiu curvar-se ao ódio do qual ele e todos os negros do Zimbábue foram vítimas.

Durante os primeiros anos do seu governo, Robert Mugabe implementou muitas políticas – principalmente educacionais – em atenção à comunidade branca. Havia uma intenção sincera de reconciliação. Ian Smith, seu algoz, circulava livre pelo Zimbábue e maquinava contra o governo.

Em 1985, uma eleição na qual Mugabe sagrou-se primeiro-ministro mostrou que os zimbabuanos brancos votavam fechados em Ian Smith. Dos 20 assentos no Parlamento reservados para eleitores brancos, todos foram preenchidos com membros do partido de Ian (Aliança Conservadora do Zimbábue) ou de seus aliados (“Grupo do Zimbábue Independente” e “Independentes”). Ficou claro que os brancos não votavam em Mugabe. Ele se sentiu rejeitado e prometeu se vingar: “Talvez a reconciliação que nós tentamos com os brancos tenha sido um erro” – confidenciou ao seu então líder espiritual, o padre jesuíta Fidelis Mukonori.

Doía entender a lógica do voto da comunidade branca em Smith, mesmo com todos os seus esforços para não empreender qualquer tipo de retaliação. Ao mostrar ao novo presidente que gostavam de seu antigo líder, “os zimbabuanos brancos se colocaram como um grupo que preferia não apertar a mão de Mugabe, não porque ele não tinha conseguido fazer um bom trabalho, mas porque ele era negro”. Daí em diante as coisas começaram a mudar.

Em 2000, as urnas derrotaram Robert Mugabe, num referendo que visava a aprovação de uma nova constituição para implementar uma reforma agrária racista. Mugabe implementou a política mesmo assim, escapando dos limites constitucionais que lhes eram impostos.

A Fast Track Land Reform Programme tirava as terras das mãos dos brancos e a entregava aos negros. De fato, o Zimbábue convivia com uma imensa concentração de terra nas mãos dos brancos que não abriam espaço para qualquer negociação. Para Mukonori, “você tem que entender a arrogância dos brancos rodesianos, a lógica da supremacia branca. Eles queriam um partido que garantisse a manutenção das terras em suas mãos, a base do seu estilo de vida. Mas eles não podiam enxergar que os negros também queriam isso” – confidenciou à escritora Heilli Holand.

Contudo, o que Mugabe fez foi algo pra lá de radical. Ele pôs fim a todas as fazendas responsáveis pela produção de alimentos. A tecnologia, expertise, logística e liderança dos brancos na agricultura começou a fazer falta. A destruição da indústria da agricultura acabou com um setor que fornecia metade das divisas do Zimbábue. O resultado foi o colapso da economia, a expansão da fome coletiva, surtos de hiper-inflação e um índice de desemprego que chegou a bater a casa dos 94%.

14 anos depois da implementação da Fast Track Land Reform Programme, algumas províncias começam a exibir bons frutos. A obra Zimbabwe’s Land Reform: Miths + Realities, não traduzida no Brasil, coordenada pelo professor Ian Scoones, mostra que as políticas de redistribuição de terra na província de Masvingo abriu caminho para a inserção de grupos marginalizados, para o fim dos latifúndios, para o surgimento de uma nova comunidade rural e fortaleceu o senso de pertencimento nos zimbabuanos. A pesquisa fala do papel fundamental desempenhado pelo governo e mostra que a indústria agrícola, em Masvingo, dá sinais de retomada da produção. Agora, de modo sustentável e mais igualitário.

Robert Mugabe não é um estúpido. Não estamos falando de um ditador africano que pega em armas, luta por dinheiro ou come pessoas (alguns ditadores africanos, como Idi Amim, de Uganda, foram acusados de canibalismo). Mugabe é um intelectual que coleciona diplomas universitários. São sete ao todo, sendo que, dois deles conquistados na cadeia: pedagogia, educação, inglês, artes, administração, economia, direito, além do mestrado em direito.

O que deu errado, então?

Nelson Mandela sustentou seu compromisso com a reconciliação. Governou por 4 anos e entrou para a eternidade em dezembro de 2013, quando o mundo celebrou seu legado diante do encerramento de sua jornada entre nós. Robert Mugabe retribuiu na mesma moeda o que o governo racista de Ian Smith fizera. Ele completou 90 anos ocupando, desde 1980, o comando de um país isolado internacionalmente.

Esses dois líderes africanos começaram juntos suas jornadas por uma África melhor. Num dado momento, diante da bifurcação que o destino lhes apresentou, fizeram opções diferentes. Mandela seguiu o caminho da reconciliação na África do Sul. Mugabe não persistiu tanto quanto devia e se rendeu à revanche no Zimbábue.

O racismo de Robert Mugabe não expulsou somente fazendeiros brancos. Joshua, Mary, Lungile e todos os outros jovens negros zimbabuanos estão na África do Sul trabalhando por não terem encontrado no seu país uma oportunidade de felicidade. Ao final do expediente, eles embarcam rumo as townships [favelas sul-africanas] esgarçando ainda mais o que resta dos laços que foram cortados pelo revanchismo político sustentado por líderes que não souberam perdoar.

Revanche X Reconciliação. Essa polaridade constitui uma das explicações para o fato de a África do Sul e o Zimbábue terem tomado rumos tão diferentes quanto às suas trajetórias constitucionais e, hoje, exibirem ao mundo legados tão diversos.

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Saul Tourinho Leal, doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, foi pesquisador-visitante na Universidade Georgetown no inverno de 2012. Seus estudos sobre Direito e Felicidade foram mencionados pelo ministro Celso de Mello, do STF, que os qualificou como “preciosos” no leading case que reconheceu o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo (ADPF 132). É membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB e autor dos livros Ativismo ou Altivez? O outro lado do STF (Fórum, 2010); Controle de Constitucionalidade Moderno (Impetus: 2010); e Katiba – Vivendo o Sonho do Quênia: O constitucionalismo da esperança na África contemporânea (Impetus: 2013).

O presente artigo faz parte da série Jurisdição Constitucional na África do Sul.

Foto: Reuters.



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