18.02.14
Emparedando a Corte Constitucional
Uma Corte Constitucional não marcha alheia a confrontos. Há tentativas frequentes de emparedá-la, numa linha tênue entre a falta de bom senso e a iniciativa de corrupção. O que distingue um comentário de um achaque? O contato que juízes de outros tribunais têm com a Corte permite liberdades como dizer a um ministro como ele deve votar?
As respostas passam pela dignidade que reveste o Judiciário. Nas palavras de Paulus Zulu, professor da Universidade de KwaZulu-Natal: “É no Judiciário que, como instituição de maior independência, a maioria das democracias deposita suas esperanças”.
Nesse contexto, prosseguindo com as imersões na jurisdição constitucional sul-africana, apresento John Mandlakayise Hlophe ou, simplesmente, o presidente Hlophe (pronuncia-se Xlópe), uma lenda no universo jurídico do país, numa acepção negativa da palavra.
Presidente do Tribunal de Justiça do Cabo Ocidental, John Hlophe se enfiou na sua primeira grande controvérsia em 2004, quando foi acusado de retardar o andamento de um processo que a indústria farmacêutica movia contra a ministra da Saúde, Manto Tshabalala-Msimang, num momento em que o governo sul-africano era acusado de omissão no combate à epidemia de AIDS que chegou a infectar 70.000 bebês por ano. Questionado, comentou: “não é possível estar menos preocupado do que estou”. Foi o début de uma sucessão de desacertos.
Quando à sua vice, Jeanette Traverso, uma senhora branca, começou a questionar sua postura, ele enviou correspondência ao presidente da Corte Constitucional e chefe de Justiça, Pius Langa, dizendo-se vítima de racismo. Posteriormente, o mesmo chefe de Justiça seria alvo de Hlophe, que declarou o seguinte sobre um eventual encontro que teria com Langa: “Eu não vou apertar a mão de um branco!”
Em 2005, Hlophe teria dito que distribuiu ao colega de tribunal, Wilf Thring, um processo (caso da Escola Mikro) por saber que ele “iria fuder o caso”.
Noutro episódio, irritado com o advogado Joshua Greeff, golpeou-lhe verbalmente abaixo da cintura: “Seu pedaço de merda branco!”
John Hlophe não é para principiantes. Há brutalidade com as palavras e destempero emocional de sobra. E não há quem o freie.
Em 2006, contrariando o seu estatuto, recebeu dinheiro por prestar serviços a uma empresa de gestão de ativos. Disse que havia recebido permissão oral do ministro da Justiça. A justificativa não podia ser contraditada. O ministro havia morrido. Apesar da relação com a empresa, Hlophe aceitou a denúncia que ela fez contra um de seus colegas, Siraj Desai, por difamação. Foi só mais um escândalo.
John Hlophe também tem fraquezas materiais. Em 2007, requereu ao Departamento de Justiça que seu carro oficial, um Mercedez Benz com três anos de uso, fosse substituído por um Porsche Cayenne. Quando um jornalista lhe pediu explicações, ele rebateu: “O que você tem a ver com isso?”
Apesar da trajetória, o presidente do Tribunal de Justiça do Cabo Ocidental achou que não tinha alcançado, ainda, seu apogeu. Em 2008, foi a vez de colidir com a Corte Constitucional.
O passo foi muito largo. Ele abordou a ministra Bess Nkabinde-Mmono e o ministro Chris Jaftha, em seus gabinetes, dizendo-lhes que ele seria o próximo presidente da Corte Constitucional e que os ministros deveriam ter isso em mente, passando a julgar determinados casos importantes em favor do presidente da República, Jacob Zuma, que estava sendo acusado de corrupção em vários processos: “Vocês são a nossa última esperança!” – apelou.
Dessa vez, ele se deu mal. Dia 29 de Maio de 2008, o seu telefone tocou. Era o Presidente da Corte, Pius Langa, o mesmo a quem ele havia afirmado, no passado, que não apertaria a mão. Langa queria um número de fax para enviar a denúncia que seria apresentada à Comissão de Serviços Judiciais (CSJ), órgão responsável, dentre outras coisas, por apurar infrações éticas cometidas por juízes. O documento estava assinado por todos os ministros.
O fax chegou às 11h50, dois minutos antes de a mídia divulgá-lo. Denunciava a investida em favor de Zuma. Indagado a respeito, Hlophe respondeu ao seu estilo: “É um lixo total!”
Ele foi temporariamente afastado das suas atividades. Mas contra-atacou numa engenhosa estratégia visando emparedar a Corte Constitucional. Numa queixa contra os próprios ministros na CSJ, acusou-os de violação a direitos pela disponibilização à imprensa da denúncia contra ele. O procedimento teria ferido o princípio da confidencialidade.
Hlophe também afirmou que a vice-presidente da Corte, Kate O’Regan, deixou de informar à Comissão que os ministros Jafta e Nkabinde haviam dito que não estavam preparados para apresentar uma declaração sobre o assunto. Para ele, o período entre 6 de junho – quando os ministros pediram prorrogação do prazo para a apresentação da denúncia -, e o dia 13 de Junho – data estabelecida para a apresentação -, foi utilizado como “uma pressão indevida e inapropriada sobre os ministros para que agissem contra contra suas consciências”.
Ele criticou ainda o fato de o ministro Dikgang Moseneke ter assinado a denúncia. Moseneke foi um ativista que lutou contra o apartheid e cumpriu pena na mesma cadeia onde ficou Nelson Mandela, Robben Island. Ele, além de não ter participado da audiência dos casos sobre Jacob Zuma, estava de licença quando os fatos denunciados ocorreram. “É muito preocupante que ele figure neste show manipulado de solidariedade judicial” – registrou Hlophe.
A briga empurrou a Corte para uma violenta guerra política com saraivadas de todos os lados. “A África do Sul tem uma sociedade altamente politizada. É evidente que a política desempenhou um papel significativo, levantando questões sobre a independência e a imparcialidade dos tribunais” – explica Paulus Zulu, no seu “A Nation in Crisis: An appeal for morality”, sem tradução no Brasil.
O caso foi parar na Comissão de Serviços Judiciais. Em agosto de 2009, o presidente da República, exercendo atribuições constitucionais, nomeou quatro membros para o órgão, em substituição aos indicados por seu antecessor. Todos simpáticos à John Hlophe.
Sem realizar qualquer interrogatório, um subcomitê da Comissão arquivou as queixas. Poderia ser imprudente conversar com os ministros da Corte Constitucional sobre os casos e fazer os comentários que fez, contudo, não estavam convencidos de que o recebimento do caso esclareceria o assunto. Na denúncia contra Hlophe, a decisão foi tomada por 6 x 4. O subcomitê é formado por treze membros, mas três estavam ausentes. Isso ensejou críticas no sentido de que não havia maioria suficiente a determinar o arquivamento da denúncia.
Mas como eu havia dito, John Hlophe não é para principiantes. Ele pretendia levar o caso para a Corte Constitucional. Quatro ministros estavam envolvidos diretamente na queixa. Como o quórum para tomar a decisão era de pelo menos oito, de um total de onze, a estratégia criaria um embaraço sem precedentes, pois não haveria número suficiente de ministros para definir a questão.
Em abril de 2010, a decisão da CSJ que arquivou as denúncias foi anulada. O caso se arrasta até hoje, sem solução.
John Hlophe, posteriormente, voltou ao ofício. Indagado sobre o seu retorno, justificou: “Eu estava cansado de viver do dinheiro dos contribuintes”.
Estamos falando de um legado terrível. A iniciativa desastrada de persuadir ministros da Corte Constitucional a votarem em casos que ainda seriam apreciados, em benefício do presidente da República, Jacob Zuma, que estava sendo acusado de corrupção, foi a gota d’água de uma trajetória marcada pelo erro. Ao tentar emparedar a Corte, Hlophe atirou-se ao precipício, abandonando o juramento que fez no ato de sua posse: respeitar a Constituição da África do Sul.
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Saul Tourinho Leal, doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, foi pesquisador-visitante na Universidade Georgetown no inverno de 2012. Seus estudos sobre Direito e Felicidade foram mencionados pelo ministro Celso de Mello, do STF, que os qualificou como “preciosos” no leading case que reconheceu o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo (ADPF 132). É membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB e autor dos livros Ativismo ou Altivez? O outro lado do STF (Fórum, 2010); Controle de Constitucionalidade Moderno (Impetus: 2010); e Katiba – Vivendo o Sonho do Quênia: O constitucionalismo da esperança na África contemporânea (Impetus: 2013).
O presente artigo faz parte da série Jurisdição Constitucional na África do Sul.
Foto: juiz John Hlophe, por Mail & Guardian