Gabriel Marques
27.12.11

ADPF: qual a saída do labirinto?

GABRIEL DIAS MARQUES DA CRUZ

1. INTRODUÇÃO[1]

Gostaria de iniciar o presente trabalho contando uma experiência pessoal.

Costumo perguntar aos alunos, em minhas aulas de Direito Constitucional, quantas ações seriam necessárias para que houvesse a análise da compatibilidade de uma lei ou ato normativo perante a Constituição. A resposta que costumo ouvir com maior frequência é a conclusão de que seria necessária, a princípio, apenas uma ação dotada de tal finalidade. Aproveito, então, para explicar o fato de que o modelo brasileiro de controle de constitucionalidade congrega cinco ações no campo do controle concentrado realizado perante o Supremo Tribunal Federal, compreendendo a ação direta de inconstitucionalidade genérica, a ação direta de inconstitucionalidade interventiva, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a ação declaratória de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental, sendo cada uma delas dotada de regras próprias de processo e julgamento, contribuindo para desenhar o labirinto que ilustra o exercício do controle no Brasil.

Diante de tal quadro, optou-se por analisar, neste trabalho, quais as razões que justificariam, especificamente, a existência autônoma de uma dessas ações de controle, sendo, no caso, a arguição de descumprimento de preceito fundamental, cotejada com a ação direta de inconstitucionalidade genérica.

O recorte temático do presente artigo buscará retomar, portanto, a indagação realizada em sala de aula, contextualizando, especificamente, a arguição de descumprimento de preceito fundamental perante a ação direta de inconstitucionalidade genérica. A princípio, será realizada uma breve explanação acerca da criação da arguição de descumprimento no âmbito da Constituição brasileira, sendo, em seguida, examinadas as singularidades da ADPF. Após, no tópico seguinte, será realizada uma crítica dirigida à existência autônoma do instituto, sendo defendida a extinção da arguição associada à incorporação do seu objeto no interior da ação direta de inconstitucionalidade genérica como mecanismo de elevação da efetividade da Jurisdição Constitucional. Por fim, serão expostas as conclusões do trabalho, as quais levam a crer que a resposta usualmente ouvida em sala de aula parece ser, de fato, a mais correta.

2. A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

A previsão contida no atual artigo 102, §1º, da Constituição de 1988 pode ser apontada como uma das mais enigmáticas de todo o Texto Constitucional. Em verdade, a interpretação do texto mencionado nos fornece apenas duas conclusões além da própria denominação da arguição: primeiramente, a competência para seu processamento e julgamento, a qual incumbe ao Supremo Tribunal Federal; em seguida, a previsão da necessidade de lei regulamentadora do instituto. Trata-se, no caso, de norma portadora de baixa densidade normativa, conceito que traduz uma autorização de amplo teor de discricionariedade para o legislador.

Segundo Dimitri Dimoulis[2], haveria uma variação no grau de densidade normativa de uma norma, a qual oscila desde um ponto de densidade zero até outro extremo dotado de densidade cem. Ambos inexistem na prática, por consubstanciarem hipóteses de impossível aplicação. Deve-se discutir, então, o conteúdo das normas que se situam no intervalo entre os aludidos graus de densidade, as quais são válidas em um determinado ordenamento. Percebe-se, portanto, que a noção de densidade normativa pode ser associada à imagem de uma espécie de filtro de porosidade da norma[3], o qual permite a passagem de um número maior ou menor de interpretações de acordo com o grau de precisão nela encontrado.

Em se tratando do caso específico da arguição de descumprimento, constata-se, como mencionado, a ocorrência de baixa densidade normativa[4], conduzindo, como consequência, a um elevado grau de elasticidade no âmbito de concretização a ser desempenhado pelo intérprete. A consequência direta da baixa densidade reside, portanto, na ampliação do grau de especulação acerca do conteúdo do instituto.

3. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO E PRECEITO FUNDAMENTAL

A presente abordagem será limitada a um aspecto que usualmente é citado como sendo especificidade que singularizaria a arguição de descumprimento perante as outras ações de inconstitucionalidade no sistema de controle brasileiro. Trata-se do conceito de preceito fundamental, integrante da sua própria nomenclatura.

3.1. PRECEITO FUNDAMENTAL

A locução preceito fundamental representa a terminologia de maior polêmica envolvendo a arguição de descumprimento, sendo alvo de uma imensa variedade de estudos por parte da doutrina e jurisprudência. Neste trabalho três providências são de grande importância a respeito do tema: (1) distinguir, a princípio, qual seria um conceito de preceito fundamental; (2) desvendar, a seguir, quais seriam as espécies de preceito fundamental; (3) questionar, por fim, a própria utilidade da previsão da categoria.

3.1.1. CONCEITO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

Deve-se tentar descobrir, a princípio, o que se pode compreender acerca de um preceito. A origem latina do vocábulo revela que preceito deriva de praeceptum, significando regra ou diretriz de conduta. O termo preceito parece guardar familiaridade com o termo dispositivo, significando o substrato utilizado como fonte normativa, isto é, o conjunto de proposições que serão alvo de um processo de interpretação para que delas possam ser extraídas normas jurídicas. Preceituar significa determinar, portanto, valor obrigatório a alguma concepção.

Sendo assim, preceitos corresponderiam à noção de dever-ser, compreensiva de regras e princípios[5]. Preceitos, portanto, após o processo interpretativo, dão origem às normas. Pode-se encontrar com relativa facilidade, na doutrina[6], essa conclusão, sendo, também, frequentemente reconhecido o cunho normativo traduzido pelos preceitos fundamentais. Há, inclusive, diversos questionamentos acerca do modelo interpretativo que deve ser adotado no exercício da interpretação, tema que tem recebido atenção doutrinária no sentido de sugerir a substituição da metáfora da pirâmide pela metáfora da rede quando da compreensão do funcionamento do sistema jurídico[7]. Todavia, em atenção aos fins específicos deste trabalho, não se elabora, em geral, uma definição do sentido em que se emprega a noção de regras e princípios para o fim de seu entendimento como preceitos.

Dizer que um preceito tem por característica ser fundamental conduz à sua ligação com a tradicional noção de Constituição em sentido material, a qual se vincula a um texto dotado de conteúdo efetivamente constitucional[8]. Ocorre o reconhecimento explícito, como consequência, de que existem preceitos na Constituição que não são fundamentais, não sendo, por via de consequência, merecedores da tutela realizada via arguição de descumprimento[9]. A noção de preceito fundamental conduz, em verdade, ao reconhecimento de que existe uma hierarquia material ou axiológica entre normas constitucionais, ou seja, de que há normas de conteúdo dotado de maior relevância quando comparadas a outras normas constitucionais[10].

Na jurisprudência também pode ser encontrado um exemplo da dificuldade na conceituação da abrangência desse conceito, como se percebe nas discussões relativas à ADPF 33[11], mais especificamente no voto do Ministro Gilmar Mendes. Tal dificuldade faz lembrar, inclusive, a advertência formulada por Laurence Tribe e Michael Dorf no sentido de que talvez designar um direito como fundamental represente a questão substantiva central no âmbito do Direito Constitucional moderno[12].

No curso do julgamento da ADPF 33, o Ministro Gilmar Mendes atestou a dificuldade de se definir, a priori, quais são os preceitos fundamentais da Constituição. Em seguida, disse não haver “(…) dúvida de que alguns desses preceitos estão enunciados de forma explícita, no texto constitucional”[13], mencionando, como exemplos os direitos e garantias individuais, os princípios protegidos pela cláusula pétrea do art. 60, § 4º, assim como os princípios sensíveis da Constituição. Em sua opinião, para que se descubra o significado dos preceitos fundamentais é necessário estudar a “(…) ordem constitucional no seu contexto normativo e nas suas relações de interdependência que permite identificar as disposições essenciais para a preservação dos princípios basilares dos preceitos fundamentais em um determinado sistema”[14].

Ricardo Antônio Lucas Camargo[15] acredita que somente poderia ser aceito o argumento de que nem todos os preceitos da Constituição são fundamentais caso houvesse hierarquia entre os dispositivos constitucionais, tese rejeitada pelo próprio Supremo. Entretanto, o autor não especifica que o que não há, segundo o STF, é hierarquia formal entre dispositivos constitucionais para fins de admissibilidade de controle de constitucionalidade de normas originárias, o que foi decidido na ADI 815[16].

Creio que deva ser criticada a visão dos que defendem que todos os preceitos da Constituição são fundamentais, posição contrária ao objeto literal de tutela da ADPF. Há, em verdade, preceitos fundamentais e não fundamentais, mas a dificuldade de diferenciar uns dos outros contribui para que, na prática, reste sem maior precisão a delimitação conceitual. Sendo assim, torna-se necessário tentar descobrir quais seriam as espécies de preceito fundamental.

3.1.2. ESPÉCIES DE PRECEITO FUNDAMENTAL

Percebe-se que a doutrina não vem a esclarecer exatamente o conceito de preceito fundamental, preferindo identificar quais seriam suas espécies. Contudo, nem a Constituição e nem a lei regulamentadora efetuaram uma enumeração expressa do que seria considerado preceito fundamental para fins de admissibilidade da ADPF. Predomina a opinião do acerto do legislador ao não prever o que seria preceito fundamental[17], embora haja opinião em contrário[18]. Trata-se, segundo a opinião prevalecente, de um conceito jurídico indeterminado, a ser precisado pela doutrina e pelo STF[19].

As mais diversas espécies de preceitos fundamentais foram discutidas pela doutrina. Há quem defenda serem preceitos fundamentais: as cláusulas pétreas; os princípios sensíveis; os princípios fundamentais; os direitos fundamentais; os preceitos que estruturam a Federação; os preceitos relacionados à participação política e os preceitos relativos à organização dos Poderes[20]. Há, por outro lado, quem acredite ser melhor se abster de proferir definição exaustiva, preferindo “(…) uma concepção mais ampla, que conceda ao instituto da arguição de descumprimento de preceito fundamental um espectro de aplicabilidade abrangente, capaz de assegurar um controle efetivo de constitucionalidade (…)”[21]. Também há os que defendem a análise axiológica do caso concreto como providência necessária para se identificar o preceito fundamental[22].

Pode-se tentar delimitar quais seriam as espécies de preceito fundamental. A primeira consideração que se deve fazer é a de que a definição de preceito fundamental coincide com a antiga noção de normas materialmente constitucionais, em razão de se tratar daquilo que é previsto como mais importante pela Constituição. Tal distinção continua a ter sentido na atualidade, mesmo perante a dificuldade de determinar o que deve ser objeto de tutela constitucional específica[23].

Vale dizer, inclusive, que a noção de normas materialmente constitucionais encontra aplicação tanto no âmbito das Constituições Liberais quanto no âmbito das Constituições Social-Democráticas, pelo fato de que em ambas podem ser diferenciadas normas dotadas de conteúdo efetivamente constitucional quando comparadas a outras previsões normativas incorporadas na Lei Maior, mas que não ostentam o mesmo grau de importância. Ter-se-ia, então, uma primeira conclusão relativa ao tema, aplicável a qualquer espécie de modelo de Constituição:

(1) Preceito Fundamental = Norma Materialmente Constitucional

Em um segundo passo, a delimitação do campo normativo abrangido pela noção de preceito fundamental deve ser iniciada pelas matérias que são excluídas expressamente do âmbito da deliberação majoritária. Trata-se das cláusulas pétreas, cuja supremacia se funda em um argumento lógico: no momento em que o artigo 60, §4º, defende matérias constitucionais insuscetíveis de reforma, a conclusão a que se chega é de que elas possuem uma maior relevância diante de outros dispositivos constitucionais[24]. Elas configuram, portanto, o primeiro conjunto normativo que pode ser entendido como preceito fundamental[25], podendo ser chamadas de cláusulas superconstitucionais, segundo a terminologia empregada por Oscar Vilhena Vieira[26].

Entretanto, além das cláusulas pétreas, outras disposições podem ser compreendidas como preceitos fundamentais. Utilizando como base o texto da Constituição, tem-se que os dois primeiros títulos da Carta de 1988 contêm expressamente a denominação buscada: tratam-se do Título I, englobando os Princípios Fundamentais, e do Título II, englobando os Direitos e Garantias Fundamentais. Logo, tendo por base critério que leva em conta a consagração expressa no texto da Constituição, pode-se obter uma segunda conclusão:

(2) Norma Materialmente Constitucional > Cláusulas Pétreas + Princípios Fundamentais + Direitos e Garantias Fundamentais

Entretanto, a delimitação de preceitos fundamentais pode ir além. Outras regras e princípios da Constituição também poderiam ser preceitos fundamentais, dependendo principalmente da inclinação teórica do intérprete. Nesse sentido, os princípios sensíveis[27] podem ser vistos como fundamentais, em razão do fato de que sua inobservância pelo Constituinte Estadual pode conduzir a uma excepcional situação de tensão federativa. Os princípios gerais da atividade econômica[28] também podem ser vistos como fundamentais, por traçarem regras pertinentes ao funcionamento da circulação de bens e de serviços no País. Pode-se assumir, também, que os preceitos relacionados à organização do Estado e dos Poderes – para os quais a Constituição prevê toda a regulamentação de seus Títulos de número III e IV, são fundamentais, por servirem como garantia do próprio Estado de Direito. E assim sucessivamente, o que torna infindável o ângulo de especulação acerca do conteúdo de um preceito fundamental tido por violado. Chega-se, enfim, a uma terceira conclusão sobre o tema:

(3) Preceito Fundamental = Norma Materialmente Constitucional > Cláusulas Pétreas + Princípios Fundamentais + Direitos Fundamentais + Cláusula de Abertura

Deve-se ressaltar, ainda, que a tentativa de construção de uma noção teórica dos preceitos fundamentais acaba por admitir a inconveniência de uma regulamentação pronta e acabada, a qual poderia deixar de reconhecer a mutabilidade do que se enxerga como fundamental em algum momento histórico específico.

A noção de historicidade tem relação intrínseca com as normas jurídicas, condicionando tanto sua construção conceitual quanto sua permanência no transcurso do tempo. Tal conclusão faz lembrar, inclusive, a construção de Norberto Bobbio ao defender a tese de que os direitos do homem são direitos históricos, que nascem de modo gradual, nem todos de uma vez e nem de uma vez por todas[29]. Não seria diferente com os preceitos fundamentais, que podem guardar compatibilidade com algum momento histórico específico, mas serem completamente inapropriados em época distinta.

Resumidamente, a cláusula de abertura descrita acima, incorporada à tentativa de conceituação dos preceitos fundamentais, acaba por servir a dois propósitos: (1) acomodar distintas inclinações teóricas que vêem uma diversidade de temas presentes na Constituição como preceitos fundamentais, sendo, no particular, essencialmente variável o grau de precisão alcançado a respeito; (2) acomodar, igualmente, a noção de historicidade dos preceitos fundamentais, os quais também podem variar no decorrer do tempo, evitando uma interpretação que impeça o reconhecimento de novas categorias de direitos que mereçam ser alvo de tutela especial.

A cláusula de abertura serve, destarte, como critério de reconhecimento da historicidade dos preceitos fundamentais, permitindo sua constante renovação.

Estas conclusões nos levam ao próximo tópico, em que se discute a utilidade da própria previsão do conceito de preceito fundamental.

3.1.3. UTILIDADE DA NOÇÃO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

Por fim, deve-se examinar a utilidade da previsão normativa. Embora a ideia de preceito fundamental possa, efetivamente, ser conveniente – especialmente por proporcionar um filtro discricionário por meio do qual se pode negar admissibilidade às arguições cujo processo e julgamento não sejam de interesse geral – não vejo, diante da situação normativa estabelecida atualmente, maior utilidade na categoria, conclusão se baseia em duas constatações de cunho pragmático.

Primordialmente, uma vez sendo percebida alguma ofensa a um preceito fundamental, parece ser muito mais atraente ajuizar uma ação direta de inconstitucionalidade genérica do que uma arguição de descumprimento, tendo em vista a menor quantidade de requisitos processuais a serem comprovados para a admissibilidade da primeira ação. Aquele que deseja ver sua irresignação superada pela intervenção do Supremo Tribunal Federal prefere a certeza de se veicular alguma insatisfação via ação direta do que a incerteza de se deixar ao interesse do Supremo concordar com o que se acredita ser preceito fundamental.

O ajuizamento da arguição encontra espaço, então, nos casos de assuntos que não podem ser veiculados via ação direta, tendo nítida função de servir para suprir lacunas constatadas no âmbito das demais ações de controle principal, especialmente nos casos do direito anterior à Constituição. Ademais, o uso da ADPF cumpre, em grande parte dos casos, o papel ingrato de uma espécie de recurso derradeiro, a ser utilizado em último caso como tentativa de vislumbrar uma solução para alguma controvérsia não resolvida em sede de ação direta.

Em segundo lugar, não acredito na elaboração de uma categorização sequer aproximada pelo Supremo a respeito de algum conteúdo acabado da expressão preceito fundamental. Parece ser difícil que o STF venha a deixar de julgar uma ADPF unicamente pelo fato de ela não tutelar preceito fundamental[30], especialmente porque o peso da fundamentação a ser exigida para tanto pode conduzir a consequências indesejáveis para a imagem da Corte. Há, inclusive, uma tendência doutrinária no sentido de se admitir uma interpretação abrangente da noção de preceito fundamental[31], a qual contribui ainda mais para que não se alcance jamais uma determinação mínima daquilo que não representa preceito fundamental. A descoberta daquilo que não seria preceito fundamental possui dificuldade ainda maior no caso do Brasil, por força do grau de detalhismo de nossa Constituição, a qual já veio, inclusive, a ser apelidada de “(…) uma novela do tamanho de um catálogo telefônico”[32].

É mesmo muito difícil encontrar uma norma constitucional de cunho exclusivamente formal que viesse a sustentar a inadmissibilidade de uma arguição de descumprimento. Um curioso exemplo pode ilustrar a situação. Imaginemos que uma lei federal qualquer transfira o Colégio Pedro II da órbita federal para a estadual – conduta que fere regra da Constituição amplamente reconhecida como sendo exemplo de norma apenas formalmente constitucional[33] –, e que o Supremo venha a ser provocado, em sede de ADPF, a se pronunciar sobre o assunto. Será que não se pode sustentar que ocorreria uma ofensa, mesmo de caráter indireto, a algum preceito fundamental que regulamente a federação brasileira ou ao direito à educação de qualidade?

Destarte, o termo preceito fundamental não possui maior utilidade prática no âmbito da prática jurisprudencial brasileira, em virtude de nosso atual estágio de normatividade acerca da ADPF. No fim das contas, todo o conteúdo da Constituição pode ser invocado como sendo base direta ou indireta da violação de algum preceito fundamental, o que faz com que o processamento das arguições de descumprimento não seja pautado por uma delimitação teórica precisa. A conclusão a que se chega, portanto, é a de que o conceito de preceito fundamental não seria por si só justificável para defender a existência de uma ação específica que o utilize como critério diferencial.

4. CRÍTICAS E UMA NOVA PROPOSTA

Tendo em vista toda a exposição anterior, torna-se necessário construir, a partir do presente tópico, outra visão a respeito do tema. Parto da premissa de que o grande obstáculo que tem inviabilizado a contribuição da ADPF para o aperfeiçoamento do controle de constitucionalidade brasileiro reside justamente nas insuficiências da normatividade que rege a arguição de descumprimento. A visão que defendo se pauta, portanto, na necessidade de melhorar o arsenal normativo a ser manejado pelo STF nos processos de controle por via principal. Essa postura não será alcançada apenas por meio de sugestões interpretativas ou por meio do emprego de técnicas de decisão pelo STF. Ela demanda, para sua plena efetividade, uma mudança na compreensão do próprio perfil do controle por via de ação praticado no País.

A tese que defendo pode ser sintetizada na ideia de que a melhor providência a ser tomada para aperfeiçoar o controle de constitucionalidade brasileiro reside em uma mudança normativa que contemple a extinção da arguição de descumprimento de preceito fundamental do panorama de controle vigente, com a correspondente incorporação das matérias passíveis de aferição em seu objeto no bojo da ação direta de inconstitucionalidade genérica.

A solução proposta encara esse problema e evidencia o quanto o sistema de controle precisa ser repensado. De nada adianta propor soluções inventivas para a arguição de descumprimento e esquecer sua inserção em um rol múltiplo de ações que acabam por ter, em alguns casos, seus objetos superpostos. Delimitar o campo de ação de cada instituto tem a virtude de facilitar o seu uso processual, o que gera uma mais fácil compreensão da finalidade de cada elemento que compõe o sistema.

Essa ausência de esclarecimento normativo acerca do objeto discutível em sede de ação direta de inconstitucionalidade genérica e em sede de arguição de descumprimento apenas tem contribuído para uma interminável confusão acerca do cabimento de cada ação. Posso mencionar ao menos dois exemplos concretos que são aptos para a confirmação da tese e que servem para demonstrar o grau de incerteza reinante na matéria: (1) o fato de o Supremo Tribunal Federal ter chegado, no julgamento da ADPF 72, a admitir uma ação como se fosse outra, fazendo uso da regra processual da fungibilidade de ações com o objetivo de evitar o prejuízo para o impetrante[34]; (2) o recurso à eventualidade em sede de petição inicial, que parte da convicção da possibilidade de rejeição do STF diante da ausência de algum pressuposto processual julgado de indispensável observância[35]. Seria preferível, pois, a existência de apenas uma ação que servisse para desencadear os processos de controle de constitucionalidade, o que conduziria a um enriquecimento da tutela jurisdicional promovida pelo Supremo.

O Tribunal tem proferido diversos juízos de inadmissibilidade no campo do controle principal – notadamente, ressalte-se, em se tratando da arguição de descumprimento – em virtude do elevado número de requisitos processuais a serem respeitados para que um processo tenha sua regularidade formal obedecida. Ora, o rompimento com esse grau de imprecisão auxiliaria no aumento considerável da quantidade de casos que teriam o mérito conhecido pela Corte, o que geraria um maior grau de defesa da Constituição diante das leis e atos normativos que a ferem.

Ademais, defender o aperfeiçoamento normativo que contemple a existência de apenas uma ação destinada à realização do controle por via principal acaba por superar a inconveniência das estatísticas mais recentes envolvendo o emprego das ações no País. Na prática, a ação direta de inconstitucionalidade é responsável pela maior parte do total de processos de controle principal deflagrados no Supremo, o que revela uma incongruência evidente diante das outras modalidades de ação que permanecem existindo.

5. CONCLUSÕES E A MORTE COMO PERSPECTIVA

Pode-se dizer que a tese defendida como resultado desta pesquisa é, no mínimo, curiosa. Isto ocorre pelo fato de ser pouco ortodoxo imaginar que algum pesquisador venha a finalizar a sua pesquisa defendendo justamente a extinção de seu próprio objeto de estudo.

Entretanto, preciso ressaltar, mais uma vez, que não defendo a morte pura e simples da arguição de descumprimento, em virtude de nela conseguir vislumbrar riquezas e potencialidades que podem auxiliar ao aperfeiçoamento do conjunto dos instrumentos de controle existentes no Brasil. Em verdade, acredito que a eliminação de um instituto pode ser conjugada ao aproveitamento do melhor que nele existia. A morte vem a ser caracterizada normalmente como a mais indesejável das perspectivas, estando conjugada à intensa dor e ao sentimento de eterna saudade. Trata-se, todavia, de perspectiva inevitável da vida, representando o ponto final de uma trajetória. Tenho a convicção, entretanto, de que, no caso da arguição de descumprimento, a morte se apresentaria como medida proveitosa, destinando um legado mais do que conveniente para o necessário aperfeiçoamento do exercício da Jurisdição Constitucional brasileira.

Talvez seja essa a saída do labirinto.

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GABRIEL DIAS MARQUES DA CRUZ é mestre e doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo – USP. Professor de Direito Constitucional e Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (UFBa), da Faculdade Baiana de Direito e da Faculdade Ruy Barbosa. É autor do livro “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: lineamentos básicos e revisão crítica no direito constitucional brasileiro”. Contato: gabriel_dmc@yahoo.com.br.

NOTAS

[1] O presente trabalho foi elaborado a convite do blog Os Constitucionalistas, sendo que agradeço, desde logo, pela gentileza. Corresponde em essência, feitas algumas adaptações, a um capítulo extraído da obra “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: lineamentos básicos e revisão crítica no direito constitucional brasileiro”, por mim publicada pela Editora Malheiros no ano de 2011.

[2] Dimitri Dimoulis. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: problemas de concretização e limitação. Revista dos Tribunais, pp. 12-14.

[3] Dimitri Dimoulis. Manual de introdução ao estudo do direito, p. 79.

[4] Neste sentido, cf. Elival da Silva Ramos. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: delineamento do instituto. In: André Ramos Tavares; Walter Claudius Rothenburg. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, pp. 109 e 110: “Antes de mais nada, é preciso criticar o Legislador Constituinte por haver criado um instrumento de tutela da supremacia dos preceitos fundamentais da Carta Magna, sem precedenteem nosso Direito positivo, por meio de norma com baixíssima densidade denotativa (…) Todavia, a baixa densidade do significado de base da norma constitucional não pode chegar ao ponto de comprometer sua funcionalidade”.

[5] Cf. André Ramos Tavares. Arguição de descumprimento de preceito fundamental, p. 117; Luiz Henrique Cavalcanti Mélega. Arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF – Art. 102, §1º, da C.F. Repertório IOB de Jurisprudência, p. 140. Contudo, o autor acredita que os preceitos fundamentais estão mais próximos da noção de regra (p. 141). Pode-se encontrar, na jurisprudência, manifestação similar por parte do Ministro Carlos Brito vinculando a noção de preceito à de regra: “Preceito é regra, ou seja, há norma que veicula princípio, há norma que veicula regra (…) Eu restrinjo o âmbito material da ADPF à defesa de preceitos que a Constituição designa por fundamentais, não princípios.” (Cf. ADPF 33, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 27.10.2006, pp. 48 e 51.)

[6] O estudo da teoria da interpretação demanda abordagem própria e não será alvo de exame particularizado neste trabalho. Basta, para os fins desta pesquisa, compreender o processo interpretativo como o mecanismo de atribuição de significado a dispositivos, definindo o sentido e alcance das construções normativas dele derivadas. Para um maior aprofundamento acerca do tema, cf. Eros Roberto Grau. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, p. 181; Aulis Aarnio. Las reglas en serio. In: La Normatividad del Derecho, p. 19, distinguindo a formulação da norma (FN) e a própria norma (N); Jerzy Wróblewski. Constitución y teoria general de la interpretación jurídica, p. 18, concebendo a interpretação constitucional como caso especial de interpretação legal; Peter Häberle. Hermenêutica Constitucional, pp. 12-18, concebendo maior abertura do rol de intérpretes da Constituição em uma sociedade pluralista; Virgílio Afonso da Silva. Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico. In: Interpretação Constitucional. Virgílio Afonso da Silva (org.), pp. 116-118, discutindo uma contraposição entre os métodos clássicos de interpretação preconizados por Savigny e os métodos modernos defendidos pela Nova Hermenêutica Constitucional.

[7] Cf., a respeito, Mario G. Losano. Derecho Turbulento. In: DOXA – Cuadernos de Filosofía del Derecho, pp. 162-163, analisando a convivência entre o modelo piramidal, concebido por Hans Kelsen com influência de Adolf Merkl, e a metáfora da rede no âmbito de uma sociedade globalizada; François Ost. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de Juez. In: DOXA – Cuadernos de Filosofia Del Derecho, pp. 169-172, tentando compreender a atuação dos Juízes com base em um modelo fundamentado nas noções de lei e pirâmide (Júpiter), prevalência da decisão (Hércules) e, por fim, prevalência do movimento e comunicação (Hermes).

[8] André Ramos Tavares. Fronteiras da Hermenêutica Constitucional, p. 97; Carlos Antônio de Almeida Melo. Alguns apontamentos sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Revista de Informação Legislativa, p. 115; no sentido de tentar descobrir um núcleo fundamental relativo aos direitos econômicos, sociais e culturais, cf. Jayme Benvenuto Lima Júnior. Os direitos humanos econômicos, sociais e culturais, p. 104.

[9] Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Aspectos do direito constitucional contemporâneo, p. 234.

[10] Cf. Gustavo Binenbojm. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira, p. 210; Dirley da Cunha Júnior. Controle de Constitucionalidade, p. 33, nota de rodapé n. 44: “Sem embargo, é possível reconhecer a existência de uma hierarquia axiológica em face da ordenação de valores constitucionais. Nesse particular, os princípios constitucionais, por serem normas dotadas de intensa carga axiológica, são hierarquicamente superiores às regras constitucionais.”

[11] ADPF 33, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 27.10.2006.

[12] Cf. Laurence Tribe; Michael Dorf. On reading the Constitution, p. 73: “(…) whether to designate a right as fundamental poses perhaps the central substantive question of modern constitutional law”.

[13] ADPF 33, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 27.10.2006, p. 11.

[14] ADPF 33, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 27.10.2006, p. 15.

[15] Ricardo Antônio Lucas Camargo. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – Instrumento de Tutela do Condicionamento Constitucional – Leis Financeiras e Plano Plurianual. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, p. 267.

[16] ADI 815, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 10.05.96. A noção de normas constitucionais inconstitucionais ganhou força na doutrina brasileira após a difusão no País do estudo de Bachof acerca do tema, oriundo de conferência pronunciada em 1951 na Universidade de Heidelberg, em sede do qual se defende a existência de diversas categorias das aludidas normas (cf. Otto Bachof. Normas constitucionais inconstitucionais, pp. 48-70). Para uma intensa crítica doutrinária da referida ADI, cf. Paulo Bonavides. A Constituição aberta, capítulo 26 – O art. 45 da Constituição Federal e a inconstitucionalidade de normas constitucionais. No mesmo sentido da inexistência de hierarquia entre dispositivos constitucionais em Portugal, cf. Cristina M.M. Queiroz. Direitos fundamentais, pp. 42-43, ressalvando o disposto no art. 288, alíneas d e e da Constituição lusitana, os quais ostentariam proteção supra-constitucional.

[17] Walter Claudius Rothenburg. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. In: Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. André Ramos Tavares; Walter Claudius Rothenburg (organizadores), p. 212; Alexandre Reis Siqueira Freire. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Origem e Perspectivas. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, p. 213; Américo Bedê Freire Júnior. O controle judicial de políticas públicas, p. 117, nota de rodapé n. º 20; Ana Luiza Sabbag Decaro. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, p. 538; Octavio Campos Fischer. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no Direito Tributário. Tributos e Direitos Fundamentais, p. 288; Francisco Wildo Lacerda Dantas. Jurisdição Constitucional: Ação e Processo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Revista dos Tribunais, p. 128, remetendo expressamente à doutrina a regulamentação do que se deve entender por preceito fundamental; Zeno Veloso. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade, p. 295.

[18] Gilberto Schäfer. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Revista da AJURIS, p. 201: “O instituto, tal como definido, peca porque deixou de fixar o que se entende por preceito fundamental.”

[19] No sentido de ser missão do STF esclarecer o significado do termo preceito fundamental, cf. Ana Paula Duarte Damasceno. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no Controle de Constitucionalidade. Revista da ESMAPE, pp. 110-111; José Néri da Silveira. Aspectos da Definição e Objeto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Revista Brasileira de Direito Constitucional, p. 183; Isabele Marques Sahb Nóbrega. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no sistema de Jurisdição Constitucional Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Olinda, p. 84; Humberto Peña de Moraes. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Revista da EMERJ, pp. 137 e 148; Caroline Corrêa de Almeida. A Cláusula de Subsidiariedade na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, p. 63.

[20] Alison Pinton Paladini. Controle da constitucionalidade: aspectos materiais da arguição de descumprimento de preceito fundamental. Direito & Justiça. Revista da Faculdade de Direito da PUCRS, pp. 22-23.

[21] Helder Martinez Dal Col. O significado da expressão “preceito fundamental” no âmbito da arguição de descumprimento de preceito fundamental prevista no art. 102, §1º, da CF. Revista de Direito Constitucional e Internacional, p. 183.

[22] Cássius Guimarães Chai. Descumprimento de Preceito Fundamental, p. 117: “Preceito fundamental é toda norma construída validamente ante a concorrência de todos os interesses individuais, difusos e coletivos, em um processo discursivo democraticamente instituído. É mais do que princípio fundamental e garantia constitucional. É a soma de ambos com os direitos humanos (…) Certamente que seu conteúdo se dá apenas no caso concreto”. Em sentido similar, cf. Wandimara Pereira dos Santos Saes. A extensão e o conteúdo de preceito fundamental na arguição de descumprimento. Revista de Direito Constitucional e Internacional, p. 325.

[23] Em sentido contrário, cf. Gilberto Bercovici. A Constituição de 1988 e a Teoria da Constituição. In: Constituição Federal: 15 Anos. André Ramos Tavares, Olavo A. V. Alves Ferreira e Pedro Lenza (organizadores), pp. 17-18.

[24] Neste mesmo sentido, cf. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello. A theoria das constituições rígidas, p. 30: “(…) a Constituição, quando veda que se altere determinado preceito, é porque o considera basico, consolidando o seu verdadeiro e proprio espirito”.

[25] No sentido de verificar a maior importância do art. 60, § 4º, da CF, cf. José Souto Maior Borges. Pró-Dogmática: por uma hierarquização dos princípios constitucionais. Revista Trimestral de Direito Público, pp. 145-146.

[26] Cf. Oscar Vilhena Vieira. A Constituição e sua reserva de justiça, p. 20, nota de rodapé n. º 9: “(…) um conjunto de princípios normativos fundamentais que – reconhecidos explícita ou implicitamente pela Constituição – se encontram em posição hierarquicamente superior em relação aos demais preceitos da Constituição (…)”

[27] Artigo 34, VII, da CF/88.

[28] Artigos170 a 181 da CF/88.

[29] Norberto Bobbio. A era dos direitos, p. 5.

[30] No mesmo sentido, cf. Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, p. 165.

[31] Gilmar Ferreira Mendes. Arguição de descumprimento de preceito fundamental: identificação do parâmetro de controle para os fins do art. 103, §1º, da Constituição Federal. Repertório IOB de Jurisprudência, p. 144; Fábio César dos Santos Oliveira. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, p. 110.

[32] Cf. Giovanni Sartori. Engenharia constitucional, p. 211.

[33] Artigo 242, §2º. “O Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal”. Utilizando tal exemplo como norma formalmente constitucional, cf. Dirley da Cunha Júnior. Controle de Constitucionalidade, p. 252, nota de rodapé n. 500. Comparando a norma contida no artigo 242, §2º da Constituição com a norma prevista no artigo 5º, II, cf. Virgílio Afonso da Silva. Interpretação Constitucional e Sincretismo Metodológico. In: Interpretação Constitucional. Virgílio Afonso da Silva (org.), pp. 123-124. Paula Maragno menciona outro caso de regra que não traria preceito fundamental, a qual seria a prevista no art. 208, § 3º, da Constituição, a qual estabelece a necessidade de o Poder Público fazer a chamada nas salas de aula (cf. Paula Maragno. Arguição de descumprimento de preceito fundamental, p. 97).

[34] Questão de Ordem em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 72, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 02.12.2005, p. 5: “(…) Assim sendo, demonstrada a impossibilidade de se conhecer da presente ação como ADPF, pela existência de outro meio eficaz, sendo evidente o perfeito encaixe de seus elementos ao molde de pressupostos da ação direta de inconstitucionalidade e, ainda, demonstrando-se patente a relevância e a seriedade da situação trazida aos autos, referente a conflito surgido entre dois Estados da federação, resolvo a presente questão de ordem propondo o aproveitamento do feito como ação direta de inconstitucionalidade, a ela aplicando, desde logo, o rito do art. 12 da Lei n. 9.868/99”. Houve publicação da decisão no Informativo 390 do STF.

[35] Cf., por exemplo, petição inicial da ADPF 54, p. 23, Item IV. 3. Pedido alternativo: “Por fim, alternativamente e por eventualidade, a CNTS requer que, caso V. Exa. Entenda pelo descabimento da ADPF na hipótese, seja a presente recebida como ação direta de inconstitucionalidade (…)”; petição inicial da ADPF 132, pp. 2 e 35, mais especificamente item 56.



3 Comentários

  1. inocêncio mártires coelho disse:

    Faz muito bem o STF em fugir de qualquer conceituação precisa do que seja preceito fundamental decorrente da Constituição. É que, advertia o Juiz CARDOZO,”as palavras começam por libertar o pensamento e terminam escravizando-o”. Além do mais, por que não “resgatarmos” WITTGENSTEIN e, nessa boa companhia, admitirmos que “o sentido de uma palavra é o seu uso na linguagem”?

  2. Prezado Professor Inocêncio Mártires Coelho,

    Primeiramente, agradeço pela leitura do texto e postagem do comentário. Creio que, de fato, o STF jamais definirá, de modo taxativo, quais seriam os preceitos fundamentais da Constituição, o que assegura o exercício de certa maleabilidade decisória importante para o funcionamento do próprio Tribunal. O ponto fulcral da minha tese é mostrar que um conceito como o de preceito fundamental não deve servir para justificar a existência de uma ação autônoma, e que o teria por objeto peculiar. Penso ser mais útil lembrar, com algumas adaptações, do princípio da Navalha de Ockham, já que maior simplicidade certamente traria um controle mais completo.

    Atenciosamente,

    Gabriel Marques

  3. Ricardo Antonio Lucas Camargo disse:

    Agradeço a referência ao meu texto, e deixo, de plano, esclarecido que considero, realmente, inexistente hierarquia entre os preceitos constitucionais, de tal sorte que não se tratou de omissão de minha parte a tese albergada na Ação Direta de Inconstitucionalidade 815, mas, pelo contrário, o que ocorreu foi a inferência de que, inexistente hierarquia formal entre os dispositivos constitucionais originários, descaberia falar em preceitos constitucionais fundamentais e não fundamentais. A arguição de descumprimento de preceito fundamental cabe quando não é possível o manuseio da ação direta de inconstitucionalidade para corrigir possível infringência (citei como exemplo o plano plurianual no meu artigo, em relação ao qual o STF não admite a ação direta, embora possa vir a ser, eventualmente, infringente da Constituição). E o preceito, a meu sentir, será fundamental porque decorrente da Constituição. Tal é a minha interpretação. Apenas para o fim de situarmos o ponto de divergência.