Gisela Gondin
21.12.11

O princípio da presunção de inocência

GISELA GONDIN RAMOS

Historicamente, o princípio surge na Magna Carta Libertatum, de João-Sem-Terra (1215), e se consolida no período revolucionário francês, logo após a queda da Bastilha, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, que fez questão de deixar registrado em seu art. 9º: “Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda de sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela lei” (g.n.). A mesma prescrição consta da Constituição Francesa de 1791.

Tal é a importância da ideia veiculada neste princípio que, quase dois séculos mais tarde, ele continua a ser ressaltado, desta feita na Declaração Universal dos Direitos do Homem votada em 1948 pela Assembléia Geral das Nações Unidas, cujo artigo XI é de uma clareza solar: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa” (g.n.). O mesmo ideal é reproduzido no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela ONU em 1966, cujo artigo 14, item 3, enumera um rol de garantias mínimas a qualquer pessoa acusada de um delito, sobressaindo-se na alínea “g” o direito de não ser obrigado a se confessar culpado[1]. Da mesma forma, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), também nominada de Pacto de São José da Costa Rica, cujo item 2, do art. 8º, celebra a ideia de que “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”[2] (g.n.).

No Brasil, a adequação aos textos universais se deu após o período da ditadura militar na Assembléia Nacional Constituinte que promulgou a Carta de 1988, onde se expressa no inciso LVII do art. 5º, em termos diretos e objetivos: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (g.n.).

Importante aqui fazermos uma pequena digressão acerca da opção feita pelo constituinte brasileiro na redação do dispositivo. Diferentemente do que vem expresso nos textos internacionais, que deram preferência a locuções afirmativas, tais como tem o direito de ser presumida inocente, ou todo o acusado se presume inocente, o Brasil optou pela utilização de um enunciado negativo: ninguém será considerado culpado. Esta circunstância deu ensejo a várias interpretações sinalizando para a possibilidade de restringir o alcance e a aplicação do princípio, sob o argumento de que a Constituição não teria aclamado exatamente a presunção de inocência, mas sim a desconsideração prévia da culpabilidade.

Sem entrar num debate mais aprofundado, em especial referente àquelas correntes que insistentemente, e felizmente sem muito sucesso, tentaram restringir a limites mais estreitos o ideal iluminista da presunção de inocência, e que tiveram grande expressão nas doutrinas positivistas de Enrico Ferri, Vincenzo Manzini e Giuseppe Bettiol, na primeira metade do século XIX[3], parecem-nos mais adequados os entendimentos que caminham no sentido de que a formulação negativa da ideia não se mostra nem de longe suficiente para justificar o seu esvaziamento, muito menos a afeta em sua projeção sobre o ordenamento jurídico. Pode, quando muito, suscitar interpretações divergentes, e a gosto de circunstâncias ocasionais.

Mais relevante se faz, neste aspecto, lembrarmos que

tudo isto está calcado nos ideais iluministas que, como uma espécie de aposta no valor ético do ser humano, primou por não retirar seus direitos fundamentais enquanto tal, uma vez que possa vir a ser considerado inocente”. Esta “aposta” deve-se ao fato de que se os interesses do homem são os mais relevantes aos demais, muito mais gravoso seria retirar direitos de alguém que futuramente for considerado inocente[4].

Ora, pensar diferente disto seria dar mais valor ao processo como instrumento de persecução penal e de realização da pretensão punitiva estatal, admitindo que o interesse do Estado se sobreponha aos direitos fundamentais da pessoa humana. De fato, trata-se de um princípio que não se justifica por razões de técnica jurídica, mas “numa opção política, que resulta da convicção de que essa é a melhor forma de garantir o respeito à dignidade humana, em sede de persecução penal”[5]. Este é o caminho trilhado pela significativa maioria dos doutrinadores na atualidade, dentre os quais o jurista argentino Julio B. J. Maier, doutor em Direito e Ciências Sociais da Universidade Nacional de Córdoba, e pós-graduado em Filosofia Jurídica, do Direito Penal e Direito Processual Penal na Universidade de Munique (Alemanha), ao concluir que as expressões presumir inocente ou não considerar culpado se equivalem, ou seja, significam exatamente o mesmo; ambas, segundo ele

revelam o mesmo princípio que emerge da exigência de um juízo prévio para infligir uma pena a uma pessoa (…) Se trata, na verdade, de um ponto de partida político que assume – ou deve assumir – a lei processual penal num Estado de Direito, ponto de partida que em um dado momento constitui-se como reação contra uma maneira de perseguir penalmente que, precisamente, partia do extremo contrário[6].

De uma forma ou de outra, o fato é que a própria jurisprudência brasileira se encarregou de estabelecer esta identificação, através da frequente utilização de ambas as proposições como se sinônimas fossem[7]. O Supremo Tribunal Federal, aliás, em se tratando do conteúdo material e alcance do referido princípio, não deixa margem a quaisquer dúvidas, conforme se extrai do julgamento proferido no Habeas Corpus n. 96.095-2/SP, relatado pelo Min. Celso de Mello, de cuja ementa se destaca, verbis:

O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CUPADO FOSSE, AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL.

A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º., LXI e LXV) – não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem.

Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível – por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º., LVII) – presumir-lhe a culpabilidade.

Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado.

O princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico consagra, além de outras relevantes consequências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário.[8]

De modo geral, é possível afirmar que a presunção de inocência, enquanto princípio constitucional geral, é mais um elemento de promoção do necessário equilíbrio entre a liberdade do cidadão (jus libertatis) e a prerrogativa estatal de punir eventuais infratores (jus puniendi), cujo objetivo maior é garantir a manutenção de um Estado de Direito. Por isto a presunção de inocência, enquanto princípio constitucional, não apenas desautoriza a formação prévia de qualquer juízo afirmativo quanto à culpabilidade, como também, e a nosso ver com maior ênfase ainda, veicula a ideia de que todos são inocentes até que se prove que são culpados. Este, aliás, o conteúdo semântico do próprio vocábulo “presunção”, ou seja, suposição que se tem por verdadeira até prova em contrário.

Oportuno que se esclareça, entrementes, que uma presunção jurídica (praesumptione juris) não se confunde com a presunção comum do homem. Esta última baseia-se apenas em aparentes indícios, em suposições e conjecturas pessoais, criando juízos subjetivos antecipados que sequer se sustentam em raciocínios indutivos minimamente lastreados na ideia de probabilidade. As presunções humanas comuns se valem de afetações, crenças, pressentimentos, evidências incompletas e frágeis, desconfianças, etc., para tirar conclusões antecipadas e sem compromisso com a realidade dos fatos, e muito menos com a verdade. A presunção jurídica, por outro lado, conforme leciona CHIOVENDA, é uma convicção fundada sobre a ordem natural das coisas[9]. Ora, a inocência presumida do acusado, desde as suas origens revelou-se como “uma atitude jurídico-política, justificada num ato de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda a sociedade livre”[10].

Destarte, o princípio da presunção de inocência diz que o indivíduo prevalece à coletividade, ideia esta que deve inspirar a política criminal do Estado, e nortear a atividade legislativa e judiciária, como uma das maiores conquistas da sociedade civilizada, à qual muito deve o Estado de Direito, em especial porque repercute diretamente no compromisso de respeito à dignidade humana, e onde a liberdade desponta como direito subjetivo fundamental.

A primeira mensagem que se extrai deste princípio, aliás, é a de que o acusado não é objeto do processo, não é uma coisa, ou algo que possa ser usado para realizar eventuais sanhas acusatórias, e muito menos para satisfazer as massas em seus desejos espetaculares de vingança. Este aspecto é salientado com muita propriedade pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus n, 94.408-6/MG, sob a relatoria do Min. Eros Grau (DJ de27.03.2009), em cuja ementa se fez questão de registrar que

nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua dignidade (art. 1º, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plenamente quando transitado em julgado a condenação de cada qual (g.n.)

Não se deve esquecer, portanto, que o acusado é um sujeito, e mais que isto, um sujeito de direitos. Em outros termos, ainda mais claros, embora esquecido com preocupante frequência, é uma pessoa humana titular de direitos naturalmente assentados e constitucionalmente reconhecidos, ou seja: um cidadão.

A segunda mensagem veiculada pelo princípio, diferentemente do que costumam pensar as maiorias de ocasião, é a de que a proteção por ele conferida não se dirige ao criminoso, mas ao inocente. Ele diz que, se for preciso conceder benesses ao criminoso, para fins de evitar que o inocente seja injustiçado, então é isto que deve ser feito. Afinal de contas, ao fim de tudo, atendidas as prescrições legais, observada a serenidade das formas judiciais, e preservados os direitos constitucionais, o criminoso será identificado com a certeza exigida e punido da forma apropriada. E os eventuais inocentes sugados em meio a tudo isto, terão maiores chances de serem preservados.

Há que se considerar ainda outro aspecto, muito peculiar, do princípio da presunção de inocência, assim qualificado em razão dos valores que carrega em si, já explicitados alhures. É que, não obstante se tratar de um princípio, ele vem apresentado pelo dispositivo constitucional numa fórmula deveras objetiva, ou seja, até que haja o trânsito em julgado de uma sentença condenatória, qualquer acusado é presumidamente inocente, e não poderá ser tratado como culpado. Ora, o trânsito em julgado é um fato concreto passível de constatação objetiva, de forma que a presunção de inocência, pelo menos neste aspecto em particular, atua, na prática, como verdadeira regra jurídica, uma vez que não permite um cumprimento gradual, ou a ponderação com os valores que professa.

Enfim, como bem registrado pela pena iluminada de Montesquieu, “quando a inocência dos cidadãos não é assegurada, a liberdade também não o é”[11] (g.n.). O brilho profético destas palavras não pode ser apagado pela ânsia acusatória dos espíritos pouco iluminados. Mas impedir que sejam relegadas ao esquecimento é tarefa nossa.

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GISELA GONDIN RAMOS é advogada, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), onde integra a Comissão de Direito Constitucional, e autora da obra Estatuto da Advocacia: Comentários e Jurisprudência Selecionada (Ed. Forense).  Twitter: @GiselaGondin. Facebook: GiselaGondin.

NOTAS

[1] In Legislação Internacional, organizado por Ricardo Seitenfus, Ed. Manole, 2009.

[2] Verbis. Adotada pela Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos. Aprovada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo n. 27, de 25.09.92, e promulgada pelo Decreto n. 678, de 06.11.92. In: Legislação Internacional, organizado por Ricardo Seitenfus, Ed. Manole, 2009.

[3] Para ENRICO FERRI (1856-1929), “a presunção de inocência deveria valer para o argüido de bons antecedentes e não para os outros, porque seria ingênuo considerar como fundamento do processo a presunção de inocência quando fosse flagrado um ladrão habitual ou um homicida já condenado por delicto de sangue” (citado por Breno Melaragno Costa, no artigo Princípio Constitucional da Presunção de Inocência, na obra Os Princípios da Constituição de 1988, Ed. Lúmen Juris, 2ª. Ed., em nota de rodapé 8, p. 413). É de se mencionar, entrementes, que o sociólogo criminal, jurista e político italiano, não obstante tenha militado no partido socialista, acabou filiando-se ao fascismo. GIUSEPPE MARIA BETTIOL (1907-1982), foi membro da Assembléia Constituinte de 1946 na Itália, várias vezes eleito para a Câmara dos Deputados e o Senado entre 1948 e meados dos anos setenta, tendo integrado, também, a Comissão sobre a Constituição de abr/1947 a jan/1948. Embora de ideologia democrata cristã, também sustentava que a presunção de inocência era juridicamente insustentável. Segundo o festejado jurista italiano, “trata-se de uma verdade interina ou provisória já que estatisticamente as condenações são maiores e, por isto mesmo, dever-se-ia ter o tratamento processual de presunção de culpa. Mais tarde, ele teria se colocado a favor do princípio como condição de um Estado livre e democrático, mas só no que concerne ao critério interpretativo das normas e distribuição do ônus da prova dispensando a terminologia da presunção de inocência” (cfe. Giulio Illuminati, in: Presunzione D’Innocenza e uso dela carcerazione preventiva como sanzione atípica, na Revista Italiana de Diritto e Procedam Penale, 31, 1978, p. 934. Apud: Breno Melaragno Costa, cit). Já VINCENZO MANZINI (1872-1957) foi um dos mais ferrenhos críticos do princípio da presunção de inocência que, para ele não passaria de uma mera ficção jurídica. Ele refutou veementemente o aludido princípio qualificando-o, aliás, como “um absurdo, uma extravagância derivada de velhos conceitos nascidos dos princípios da revolução francesa, por aqueles que elevam aos mais exagerados e incoerentes efeitos as garantias individuais” (MANZINI, Vicenzo: Tratado de Derecho Procesal Penal. volume I. Traduccion de Santiago Sentis Melendo y Marino Ayerra Redín. Buenos Aires: Librería El Foro, 1996, p. 255). Manzini, é de se salientar, compartilhava a ideologia fascista, tendo participado, juntamente com Enrico Ferri e Edoardo Massari, da elaboração do Código Penal de 1930, que vigorou na Itália a partir de 1931. Também esteve por trás da elaboração da Constituição Italiana de 1948, cujo art. 27 optou pelo uso da expressão “não é considerado culpado”, em detrimento da formulação positiva – é presumido inocente – constante das normas internacionais da época. (Para conferir mais informações bibliográficas a respeito, consultar o site da Universidade de Navarra, no endereço eletrônico http://www.unav.es/derecho).

[4] Breno Melaragno Costa. Artigo já citado.

[5] Helena Magalhães Bolina, em tese de mestrado, publicada no Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra n. 70 (1994), págs. 433 e ss.

[6] Tradução livre. In: Derecho Procesal Penal. Tomo I. Fundamentos. Buenos Aires, Editores Del Puerto s.r.l., 2002, p. 491-492. Apud: Simone Schreiber, no artigo A Efetividade da Constituição Federal e o Direito Processual Penal. Um estudo crítico da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na aplicação dos princípios constitucionais da inocência e acusatório, publicado na Revista da Justiça Federal – Seção Judiciária do Rio de Janeiro, n. 16, abril/2006, p. 95-127.

[7] Destacam-se a título exemplificativo os seguintes julgados: HC-82.797-7/PR (DJ 02.05.2003), rel. Min. Sepúlveda Pertence; HC-81.964/SP (DJ 28.02.2003), rel. Min. Gilmar Mendes; HC-81.468/SP (DJ 01.08.2003), rel. Min. Carlos Velloso; AG. REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 604.041-7/RS (DJ 31.08.2007), rel. Min. Ricardo Lewandowski.

[8] Julgado em 03.02.2009, publicado no DJ de 13.03.2009.

[9] Citado na ementa do RO-20010387476, julgado pelo TRT da 1ª. Região, e publicada em 18.06.2002. Disponível online pelo site www.trt2.gov.br.

[10] Castanheira Neves. Sumários de Processo Criminal. Apud: Breno Melaragno Costa, no artigo Princípio Constitucional da Presunção de Inocência,  integrante da obra Os Princípios da Constituição de 1988, Ed. Lúmen Juris, 2ª. Ed.

[11] In O Espírito das Leis, Livro XII, I.



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