Ilanna Praseres e Márcio Teixeira
21.12.11

As restrições aos direitos fundamentais sociais

Título original: As restrições/limites aos direitos fundamentais sociais e o suporte fático amplo e restrito: uma leitura a partir de Robert Alexy e Virgílio Afonso da Silva

ILANNA SOUSA DOS PRASERES

MÁRCIO ALEANDRO CORREIA TEIXEIRA

1. INTRÓITO

Na concepção doutrinária moderna, os direitos sociais possuem conteúdo de cunho prestacional, figurando como “liberdades positivas”, mas também não se lhes nega o caráter de direitos de defesa, sendo considerados como “liberdades negativas”, conceitos que nos fazem rememorar a teoria dos quatro status de Jellinek, em parte superada pela dogmática constitucionalista atual.

Este trabalho, entretanto, ater-se-á, a perspectiva apenas prestacional dos direitos sociais, mas sob o novo patamar conceitual em que deixam de ser simples expedientes funcionais, com o objetivo de compensar situações de desigualdade, e passam a atuar como “núcleos integradores e legitimadores do bem comum, pois será através deles que se poderá garantir a segurança, a liberdade, a sustentação e continuidade da sociedade humana” (BARRETO apud KELBERT, 2011, p. 33).

Partindo daí, verifica-se que conforme entendimento reiterado pelo Supremo Tribunal Federal, não existem direitos absolutos, o que nos permite deduzir que os direitos fundamentais sociais podem ser restringidos. Por isso, Alexy (2011, p. 276) salienta que: “O conceito de restrição a um direito parece familiar e não problemático. Que direitos tenham restrições e que possam ser restringidos parece ser uma ideia natural, quase trivial”.

Portanto, o problema aparenta não estar no conceito de restrição a um direito fundamental, “mas exclusivamente na definição dos possíveis conteúdo e extensão dessas restrições e na distinção entre restrições e outras coisas como regulamentações, configurações e concretizações” (ALEXY, 2011, p. 276).

Trilhando essa linha argumentativa, serão examinadas as restrições relativas aos direitos fundamentais sociais, tomando por base a diferenciação entre regras e princípios, o suporte fático amplo e restrito, bem como a teoria externa e a teoria interna.

Importa ressaltar que não se trata de uma abordagem aprofundada, posto que o tema das restrições e do âmbito da proteção dos direitos fundamentais está embrenhado em um campo que, por si só, é deveras complexo, e requer uma análise cuidadosa.

Assim, tentar-se-á de forma breve, mas coesa, utilizando-se dos ensinamentos compilados por Robert Alexy, em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais, e por Virgílio Afonso da Silva, em sua tese defendida no concurso para o provimento do cargo de professor titular de direito constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, explanar esse tema, para abrir caminho a posteriores discussões a respeito das restrições aos direitos fundamentais sociais, e quiçá, das restrições das restrições.

2. BREVE DISTINÇÃO ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS

A primeira premissa que deve ser explorada diz respeito à clássica diferenciação entre as regras e os princípios. Nessa senda, embora sejam inúmeras as formas de distinguir essas duas espécies de normas, destacar-se-ão somente dois aspectos que são suficientes para atingir a finalidade que se almeja.

Frisa-se que “nos casos das regras, garantem-se direitos (ou impõem-se deveres) definitivos, ao passo que, no caso dos princípios, são garantidos direitos (ou são impostos deveres) prima facie” (SILVA, 2006, p. 27, grifo do autor).

Esse arquétipo também está presente no modelo de regras de Dworkin, pois ele afirma que

A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão (DWORKIN, 2002, p. 39).

Alexy reconhece o modelo exposto por Ronald Dworkin, averba, porém, que é muito simples, fazendo-se necessário um padrão diferenciado (ALEXY, 2011).

Em outras palavras, deve ser observado que quando um direito é garantido por uma norma que possui a estrutura de uma regra, esse direito é definitivo, logo deverá ser totalmente realizado no momento da aplicação da regra ao caso concreto – até aí em nada se tem de diferente em relação a doutrina de Dworkin. Assim, o plus do modelo formulado por Alexy consiste no fato de que esse raciocínio perdura até mesmo quando as regras têm exceções – e quase sempre elas têm –, uma vez que as exceções a uma regra devem ser tomadas como se parte da própria regra excepcionada fossem. (ALEXY, 2011).

Para clarear essa dedução, Virgílio Afonso da Silva (2006, p. 26) cita a regra que proíbe a retroação da lei penal, e alude a sua conhecida exceção de que a lei deve retroagir quando beneficiar o réu (art. 5º, XL, CF). A norma (regra) deve, nesse sentido, ser compreendida como realmente é, ou seja, “é proibida a retroação de leis penais, a não ser que sejam mais benéficas para o réu do que a lei anterior; nesses casos, deve haver retroação”.

No que atine aos princípios, não se pode falar em realização sempre total daquilo que a norma exige. Na verdade, em geral essa realização é apenas parcial, porque há uma distinção entre aquilo que é garantido (ou imposto) prima facie e o que é garantido (ou imposto) definitivamente. O longo caminho entre um (o prima facie) e outro (o definitivo) é o que interessa para a verificação deste trabalho (ALEXY, 2011; SILVA, 2006).

O segundo ponto é que os princípios são mandamentos de otimização [2] “que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas”[3] (ALEXY, 2011, p. 90).

As regras, por sua vez, são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Regras contêm determinações no âmbito do que é fática e juridicamente possível. Isso implica que a diferença é qualitativa e não de grau. (ALEXY, 2011, p. 91).

Dessas ponderações, Alexy (2011) conclui que as normas de direitos fundamentais, de início, são ou regras ou princípios. Porém, adquirem um caráter duplo se forem construídas de forma a que ambos os níveis nelas sejam reunidos.

É a partir desses pontos que se passa ao exame do suporte fático dos direitos fundamentais sociais.

3. O SUPORTE FÁTICO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: TRAÇO DISTINTIVO ENTRE OS DIREITOS DE DEFESA E OS DIREITOS PRESTACIONAIS

No direito constitucional brasileiro, o suporte fático “é um conceito quase desconhecido” (SILVA, 2006, p. 28). Sua utilização, no âmbito do direito público, é limitada quase sempre ao direito penal, quando se aduz as verberações concernentes ao “tipo”; bem como ao direito tributário, quando se fala em “fato gerador” e “hipótese de incidência”. No que tange ao direito privado, notadamente no direito civil, o termo é frequentemente utilizado, mormente pelos civilistas influenciados pelo magistério de Pontes de Miranda, que já trazia esse conceito como de elevada importância para as investigações e exposições científicas (SILVA, 2006).

Por conta dessa averiguação, convém expor, mesmo que de forma ligeira, que a norma jurídica tem uma estrutura, e nela, há uma hipótese e uma consequência, que são separa­das por um modal deôntico. Para que se verifique a consequência é necessário o preenchimento da hipótese, que, no mundo concreto só se dará se ocorrer exatamente aquele evento jurídico ou juridicizado. Daí advém a separação do suporte fático em abstrato e concreto, de sorte que o primeiro representa aquilo que vem previsto na hipótese normativa, enquanto o segundo representa o evento ocorrido no mundo concre­to, dos fatos ou ôntico (SIQUEIRA, 2009).

Sob este enfoque, Virgílio Afonso da Silva se restringiu ao exame do suporte fático amplo, e com o fito de compreender o conceito de suporte fático, tendo em vista que a expressão não é tão intuitiva no âmbito dos direitos fundamentais, quanto o é, noutras áreas, destaca que se deve responder a quatro questionamentos: 1) o que é protegido? 2) contra o quê? 3) qual é a conseqüência jurídica que poderá ocorrer? 4) o que é necessário ocorrer para que a conseqüência possa também ocorrer? (SILVA, 2006).

Adentrando a tais questionamentos, pode-se esboçar simplificadamente, o que segue:

Primeira questão: “O que é protegido?” Aqui é o âmbito de proteção do direito fundamental. Tratam-se dos atos, fatos, estados ou posições jurídicas protegidos pelas normas de direitos fundamentais.

Segunda questão: “Contra o quê?” Dá origem a outro elemento: a intervenção estatal. E, por conseguinte, é possível verificar que a consequência jurídica – tem-se, no ponto, a terceira questão “Qual é a conseqüência jurídica que poderá ocorrer?”– somente será ativada se o objeto de proteção descrito na norma for submetido a uma intervenção (em regra) estatal. Daí a necessidade da presença da intervenção estatal na composição do suporte fático do direito fundamental (MOREIRA, 2011, p. 61).

Quarta questão: “O que é necessário ocorrer para que a conseqüência possa também ocorrer?” Aqui reside o fundamento constitucional, elemento não veiculado na doutrina de Alexy, e que requer maior atenção.

Para Virgílio Afonso da Silva (2006, p. 30-31)

Tanto Alexy quanto Borowski chamam de suporte fático a soma do âmbito de proteção (AP) e da intervenção estatal (IE). A esse suporte fático é contraposta a chamada fundamentação constitucional (FC). Na formulação de Borowski: se (APx e IEx) e não-FCx, então CJx. Nessa formulação, “x” consiste em uma ação, um estado ou uma posição jurídica. Isso significa, segundo Borowski, que: se x é algo protegido pelo âmbito de proteção de algum direito fundamental (APx) e se há uma ação estatal que intervém em x (IEx) e se essa intervenção não é fundamentada (não-FCx), então deverá ocorrer a conseqüência jurídica prevista pela norma de direito fundamental para o caso de x (CJx), que é, em geral, uma exigência de cessação da intervenção estatal.

O problema desse modelo, conforme Virgílio, é que ele define o suporte fático como a junção apenas do âmbito de proteção e da intervenção estatal (APx e IEx). O autor afirma que caso se entenda que suporte fático são os elementos que, quando preenchidos, ensejam a realização do postulado normativo de direito fundamental, “é facilmente perceptível que não basta a ocorrência desses dois elementos para que a consequência jurídica de um direito de liberdade seja acionada” (SILVA, 2006, p. 31).

Nesse viés, argumenta que

É ainda necessário que não haja fundamentação constitucional (não-FC) para a intervenção. Se houver fundamentação constitucional para a intervenção, estar-se-á diante não de uma violação, mas de uma restrição constitucional ao direito fundamental, o que impede a ativação da conseqüência jurídica (declaração de inconstitucionalidade e retorno ao status quo ante). Por isso, parece-me mais correto definir o suporte fático não apenas como a soma do âmbito de proteção e da intervenção estatal, mas incluir nesse conceito a ausência de fundamentação constitucional. (SILVA, 2006, p. 31, grifo do autor).

De certo, a intervenção estatal adqui­re perspectivas diferenciadas, a depender do tipo de direito envolvido. Noutro dizer: tratando-se das liberdades públicas, não deveria haver intervenção estatal; e se for hipótese dos direitos sociais, a intervenção estatal é ne­cessária para sua promoção (ação prestacional) (SIQUEIRA, 2009).

Esse pensar foi traduzido por Virgílio Afonso da Silva nas seguintes fórmulas:

a) Para as liberdades públicas: (x)(APx ^ ¬ FC(IEx) ? OCJx), onde:

[…] se x é algo garantido pelo âmbito de proteção de algum direito fundamental (APx) e se não há fundamentação constitucional para uma ação estatal que intervém em x (não-FC(IEx)), então, deverá ocorrer a consequência jurídica prevista pela norma de direito fundamental para o caso de x (CJx). (SILVA apud MOREIRA, 2011, p. 62).

b) Para os direitos sociais: (x)(DSx ^ ¬ FC(IEx) ? OCJx), em que:

[…] se x é uma ação estatal que fomenta a realização de um direito social (DSx) e a inércia (ou insuficiência) estatal em relação a x (IEx) não é fundamentada constitucionalmente (¬ FC), então, a consequência jurídica deve ser o dever de realizar x (Ox). (SILVA apud MOREIRA, 2011, p. 63).

Desse modo, com amparo em um fundamento constitucional, o Estado pode intervir no âmbito de proteção do direito fundamental. Porém, caso inexistente o fundamento constitucional, deverá ocorrer a consequência jurídica relacionada à liberdade, ou seja, o dever de abstenção do Estado (MOREIRA, 2011).

No que concerne aos direitos sociais, por exigirem uma ação estatal, os questionamentos anteriormente citados, devem ser refeitos.

Na primeira pergunta a proteção ao direito consistirá em realizar esse direito, posto que o âmbito de proteção de um direito social é formado pelas ações do Estado que fomentam a realização do direito. Na segunda, há de se consignar que a intervenção estatal corresponde a não agir ou a agir de forma insuficiente. E, por derradeiro, a fundamentação constitucional deixa de ser vista como uma ação permissiva da intervenção do Estado, de sorte a representar agora uma omissão ou uma ação insuficiente (MOREIRA, 2011).

Nessa senda, quando uma ação estatal poderia fomentar a efetivação de um direito social, não o faz, e não tem fundamento constitucional, a consequência jurídica é a construção de um direito definitivo para que a ação seja realizada (MOREIRA, 2011).

É, então, importante clarificar o que implica o suporte fático restrito e o suporte fático amplo para a imposição de restrição aos direitos fundamentais sociais prestacionais, uma vez que a escolha por um ou outro tem efeitos na definição de como controlar as restrições aos direitos fundamentais, na fundamentação do conteúdo essencial dos direitos fundamentais e no embate sobre a eficácia das normas constitucionais que garantem sua aplicabilidade (SILVA, 2006).

4. O SUPORTE FÁTICO RESTRITO E O SUPORTE FÁTICO AMPLO E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA OS DIREITOS SOCIAIS A PRESTAÇÕES

Virgílio aponta que o principal predicativo do suporte fático restrito para as normas de direito fundamental é “a não-garantia a algumas ações, estados ou posições jurídicas que poderiam ser, em abstrato, subsumidas no âmbito de proteção dessas normas” (SILVA, 2006, p. 32).

Para os defensores dessa teoria é possível definir o cerne de cada direito fundamental a partir da interpretação constitucional histórica e sistemática, negando-se assim, qualquer possibilidade de colisão entre direitos (MOREIRA, 2011).

Moreira (2011) menciona que a maior crítica quanto a tal compreensão reside no fato de que é impossível uma perfeita atualização do campo de proteção dos direitos fundamentais com a realidade cambiante, de forma que a busca dos direitos fundamentais em precedentes ou nas relações com outros normativos constitucionais representa o risco de se adotar modelos que não se coadunam com a realidade social, que, como se sabe, está sempre em processo de mudança.

Outro ponto que merece destaque, diz respeito à teoria da extensão material de Friedrich Müller, que, segundo Alexy, “se inclui entre as normas do suporte fático restrito”. (ALEXY, 2011, p. 311). Contudo, a sua menção é apenas para explicitar, ao passo do que disciplina Alexy, que ela não pode ser aceita (ALEXY, 2011).

O exemplo dado por Friedrich Müller, concernente ao art. 5, III, 1, da Constituição Alemã, que garante a liberdade artística, é suficiente para se apreender a sua teoria. Segundo Müller, conquanto a referida norma garanta a liberdade artística, ela não garante ações como “pintura em um cruzamento entre ruas movimentadas” ou “improvisações de trombone durante a noite na rua”. O que Müller quer salientar com tal ilustração, é que não se está diante de uma hipótese de colisão de direitos, mas meramente da não-proteção de algumas ações pelas normas que, aparentemente, deveriam abarcá-las (SILVA, 2006, p. 34).

À similitude do que doutrina Müller, alguns casos postos a exame no Supremo Tribunal Federal, também tiveram idêntica solução, pois embora sem qualquer referência expressa ao suporte fático dos direitos fundamentais, os argumentos dos Ministros se lastrearam em excluir, a priori, do âmbito de proteção de determinada norma, alguma ação, estado ou posição jurídica.

Nesse contexto, Virgílio Afonso da Silva traz a lume que o Ministro Celso de Mello declara no HC 70.814 [4], que “a cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas”, e o Ministro Maurício Corrêa vaticina no HC 82.424 [5], que “um direito individual não pode servir de salvaguarda de práticas ilícitas, tal como ocorre, por exemplo, com os delitos contra a honra”. De certo, essas são enfáticas exclusões de condutas que em princípio aparentavam estar protegidas respectivamente pelas normas encartadas nos incisos XII (sigilo de correspondência) e IV (liberdade de expressão), do art. 5º da Constituição Federal (SILVA, 2006, p. 32).

Por isso, o que importa para a teoria do suporte fático restrito é a extensão da validade da própria norma, haja vista que os fatores externos não intervêm seja no seu conteúdo, seja na sua extensão.

De outro lado, a teoria do suporte fático amplo preocupa-se apenas em definir o que é resguardado pela norma prima facie, sem isolar seu conteúdo de forma inicial e exata (MOREIRA, 2011), pois sua demarcação será alcançada quando se estiver diante da norma definitiva.

Diante disso, a perquirição correta a se fazer é “quais direitos a norma busca proteger prima facie?”. Virgílio Afonso da Silva (2006, p. 34-35, grifo do autor) ressalta que essa indagação deve ser respondida do seguinte modo:

[…] toda ação, estado ou posição jurídica que possua alguma característica que, isoladamente considerada, faça parte do “âmbito temático” de um determinado direito fundamental, deve ser considerada como abrangida por seu âmbito de proteção, independentemente da consideração de outras variáveis. A definição é propositalmente aberta, já que é justamente essa abertura que caracteriza a amplitude da proteção. Também a resposta individualizada à mesma questão – o que é protegido prima facie? – segue o mesmo caráter aberto.

Tomando como exemplo o art. 5º, IV da Constituição Federal, poder-se-ia perguntar “O que é protegido pelo direito à livre manifestação do pensamento?”. A resposta lastreada no pressuposto teórico do suporte fático amplo, é que é protegida “toda e qualquer manifestação de pensamento, não importa o conteúdo (ofensivo ou não), não importa a forma, não importa o local, não importa o dia e o horário” (SILVA, 2006, p. 35).

E, nesse ponto, exsurge o pensamento de que se estaria a defender que os direitos são absolutos. Todavia, tal assertiva não passa de ledo engano, porque, em verdade, o que se está delimitando, nesse primeiro plano, é o âmbito de proteção prima facie, e que, portanto, poderá sofrer restrições futuramente, quando da conclusão daquilo que é protegido definitivamente (SILVA, 2006).

Com razão, Virgílio Afonso da Silva (2006, p. 35) traz a lume que

A definição sustentava que, para toda ação, estado ou posição jurídica x, que seja abarcada pelo âmbito de proteção de um direito fundamental, e que tenha sofrido uma intervenção estatal não fundamentada constitucionalmente, deverá ocorrer a conseqüência jurídica desse direito atingido que, em geral, é a exigência da cessação da intervenção. Ocorre que é perfeitamente possível que haja, ao mesmo tempo, uma intervenção estatal em um direito fundamental e uma fundamentação para essa intervenção. Nesses casos, fala-se em intervenção estatal fundamentada. Quando isso ocorre, não se está diante de uma violação a um direito fundamental, mas diante de uma restrição. Essa formalização ilustra bem, portanto, o caráter não-absoluto dos direitos fundamentais e a centralidade do exame da fundamentação das restrições para a dogmática dos direitos fundamentais e para a decisão final acerca de sua constitucionalidade (restrição permitida) ou inconstitucionalidade (violação).

Nesse passo, adere-se à conclusão expendida por Alinie Moreira de que os direitos fundamentais sociais que reclamam uma prestação do ente estatal para fomentar sua concretização, sujeitam-se a uma intervenção externa, sendo avaliada a devida pertinência constitucional (MOREIRA, 2006).

5. A IMPOSIÇÃO DE RESTRIÇÕES/LIMITES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: TEORIA INTERNA E TEORIA EXTERNA

No prelúdio do seu estudo sobre as restrições a direitos fundamentais, Alexy (2011) suscita o debate acerca da possibilidade ou não de se falar em restrição a direitos fundamentais e, para tanto, traz à baila o escólio do autor alemão Friedrich Klein, que defende a inadmissibilidade de tal hipótese, nos termos da lógica pura, podendo existir, segundo Klein, tão-só definições das disposições de direitos fundamentais, mas jamais restrições.

A teorização de Klein, expressa, de forma resumida, o que se concebe como teoria interna das restrições aos direitos fundamentais, que, aliás, foi definida com propriedade por Sarlet (2009, p. 388), ao afirmar que segundo a teoria interna,

[…] um direito fundamental existe desde sempre com seu conteúdo determinado, afirmando-se mesmo que o direito já ‘nasce’ com os seus limites. Neste sentido, fala-se da existência de ‘limites imanentes’, que consistem em fronteiras implícitas, de natureza apriorística, e que não se deixam confundir com autênticas restrições, pois estas são, em geral, compreendidas (para a teoria externa) como ‘desvantagens’ normativas impostas externamente aos direitos, inadmitidas pela teoria interna, visto que para esta o direito tem o seu alcance definido de antemão, de tal sorte que sua restrição se revela desnecessária e até mesmo impossível do ponto de vista lógico.

Partindo daí, verifica-se que a teoria interna está intimamente relacionada à teoria restrita do suposto de fato, vez que possui fundamento na própria extensão e conteúdo da norma, e não admite a existência de colisões de direitos.

Por sua vez, a teoria externa tem por alicerce uma relação especial de restrição, formada pelo direito e sua restrição. Há, pois, o direito em si, não restringido, e, em seguida, o direito após a ocorrência da restrição, o direito restringido. Essa construção está fulcrada na concepção de que há uma distinção entre posição prima facie e posição definitiva, que correspondem respectivamente ao direito não restringido e ao direito restringido (ALEXY, 2011).

Alexy (2011, p. 277) ressalva que não se pode perder de vista a existência de direitos sem restrições, relação que é criada apenas a partir da exigência, externa ao direito em si:

[…] Embora a teoria externa possa admitir que, em um ordenamento jurídico, os direitos apresentam-se sobretudo ou exclusivamente como direitos restringidos, ela tem que insistir que eles são também concebíveis sem restrições. Por isso, segundo a teoria externa, entre o conceito de direito e o conceito de restrição não existe nenhuma relação necessária. Essa relação é criada somente a partir da exigência, externa ao direito em si, de conciliar os direitos de diversos indivíduos, bem como direitos individuais e interesses coletivos.

Dessa sorte, enquanto na teoria externa se vislumbra o direito e sua restrição – duas coisas numa relação especial. Na teoria interna, a base de sustentação não são duas coisas, mas uma só: o direito com certo conteúdo. Nesta última, substitui-se a ideia de restrição por limite, de forma que questionamentos acerca dos limites dos direitos não se referem a dúvidas sobre quão extensa pode ser a restrição, mas dúvidas a respeito do seu conteúdo (ALEXY, 2011).

6. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS PRESTACIONAIS E AS TEORIAS EXTERNA E INTERNA

Olsen (2011, p. 146) relata que muitos autores, dentre eles Canotilho e Vital Moreira, defendem que não cabe falar de restrições em relação aos direitos prestacionais, mas somente aos direitos de defesa. Nesse caso, haveria mera concretização insuficiente da norma, omissão do poder público que não cumpre, ou cumpre insuficientemente, a obrigação constitucional.

A autora sustenta, porém, que partindo da acepção ampla de restrição, é crível identificar hipóteses de omissão do poder público diante de obrigação constitucional como uma verdadeira restrição lato sensu do direito fundamental, ou seja, a omissão ou insuficiência da ação estatal pode reduzir ou revogar direitos já garantidos.

Para Olsen (2011, p. 147)

Os dois casos podem receber o mesmo tratamento jurídico, na medida em que deverão ser alvos de controle de constitucionalidade. Pode haver hipóteses em que a omissão estatal, no sentido de não realização suficiente de uma obrigação prevista na norma, configura uma afetação desvantajosa ao acesso do titular do direito ao bem jurídico previsto jusfundamentalmente, Assim, estar-se-á diante de uma restrição não expressamente autorizada pela Constituição, a qual merece controle de constitucionalidade.

Esclarecendo que se adere ao magistério explanado por Olsen, chega-se a um ponto de tensão presente na teoria das restrições, a saber: Como definir se uma restrição é ou não legítima?

Para Sarlet (2009, p. 394) a solução perpassa “pela necessidade de se respeitar a proteção constitucional dos diferentes direitos no quadro da unidade da Constituição, buscando harmonizar preceitos que apontam para resultados diferentes”.

Olsen (2011, p. 148) averba que, ainda que carente de disciplina constitucional, a restrição será legítima apenas se “for adequada aos parâmetros de controle material da constitucionalidade, como os valores constitucionais, a proporcionalidade, o núcleo essencial, dentre outros”.

Nessa tessitura, deve-se ter bem fincada a noção, de que todo e qualquer ato que restrinja um direito emanado da Constituição, seja ele fático ou jurídico, deve ser compatível com esse mesmo ordenamento, sob pena de configurar-se não uma restrição à norma e sim, uma violação.

Desse modo, passa-se a um segundo ponto de tensão: Apenas são aceitas as restrições previstas em normas?

Pois bem, que as normas podem assumir a característica de regras ou princípios não há qualquer dúvida. Que tais normas só poderão se constituir como restrições aos direitos fundamentais se guardarem estrita compatibilidade com a Constituição, também já é de sabença geral. Contudo, o que também se defende aqui, é que, numa visão mais ampla, as restrições podem ter caráter fático ou jurídico (NOVAIS apud MOREIRA, 2011).

É indubitável que o reconhecimento de restrições não autorizadas pode acarretar problemas. Mas, tomando-se por paradigma o que leciona Canotilho (2002) tem-se que sua admissibilidade é justificável, sobretudo no contexto sistemático da constituição, e tendo em vista que, o que se visa salvaguardar são outros direitos e/ou bens.

Esta aceitação se deve, noutras palavras, porque ante a amplitude e as inúmeras pretensões oriundas das normas constitucionais, seria impossível que o legislador conseguisse prever todas as hipóteses e situações dela decorrentes, de sorte que são plenamente admitidas as restrições não expressas no ordenamento jurídico em vigor.

Importa definir critérios objetivos para que uma restrição implícita seja acolhida sem representar violação aos preceitos constitucionais, o que fora feito, de forma magistral, por Jorge Reis Novais, que apresenta três etapas essenciais destinadas a esse fim:

De forma lapidar, esta fórmula procura sintetizar os elementos essenciais da doutrina das restrições implícitas: admissibilidade, mas a título excepcional, de restrições não expressamente autorizadas aos direitos fundamentais e só no caso de colisão com direitos fundamentais de terceiros ou outros valores de nível constitucional; solução de conflitos com observância da unidade da Constituição e da sua ordem de valores para fins de determinação, no caso concreto, da relação de preferência entre os bens em colisão; finalmente apurada que fosse a possibilidade ou necessidade de o direito fundamental sem reservas vir a ser restringido, controlo da restrição em função da observância do princípio da necessidade ou indispensabilidade e da garantia do conteúdo essencial do direito fundamental para efeitos de delimitação da medida e do alcance admissíveis de cedência do direito fundamental restringido (NOVAIS apud MOREIRA, 2011, p. 80-81).

Assim, adota-se o escólio exposto nas penas do mestre lusitano, Jorge Reis Novais, de que se concebe genericamente por restrição

[…] a acção ou omissão estatal que afecta desvantajosamente o conceito de um direito fundamental, seja porque se eliminam, reduzem ou dificultam as vias de acesso ao bem nele protegido e as possibilidades da sua fruição por parte dos titulares reais ou potenciais do direito fundamental seja porque se enfraquecem os deveres e obrigações, em sentido lato, que da necessidade da sua garantia e promoção resultam para o Estado. (NOVAIS apud MOREIRA, 2011, p. 82).

Calcados nessas premissas, vem à tona que para garantir maior proteção aos direitos fundamentais sociais, é conveniente não se utilizar da ideia de limite imanente, uma vez que implicaria em deixar ao alvedrio a escolha de quais limites se sujeitam tais normas.

Para melhor compreensão, e valendo-se de lógica similar a utilizada por Olsen (2011), é possível exemplificar que, se tratando do direito à segurança pública, se previsto um valor “y” para a implementação das políticas públicas nessa área, destinadas imaginariamente à construção de 10 presídios, à implantação de 50 postos de segurança em algumas comunidades, e ao reaparelhamento de 30 delegacias, aquilo que exceder a tal limite previamente estabelecido, não poderá ser exigido do Estado. Isto porque se concebe que esses custos são ínsitos ao próprio conteúdo normativo do direito à segurança pública.

Dessa forma, se o pedido deduzido em juízo fosse relativo à construção de um dos 50 postos de segurança que estavam abarcados dentro do âmbito normativo do direito à segurança pública, o Judiciário estaria autorizado a reconhecer um direito subjetivo. Ao passo que, se a pretensão alçada referir-se à compra de 10 viaturas policiais, cujos recursos não foram previstos, de sorte a não fazer parte do suposto de fato do direito, não haverá direito subjetivo exigível do Estado.

A interpretação sobre a abrangência da norma ocorreria, assim, num momento anterior à sua aplicação, oportunidade em que seria definido o que está ou não protegido pela norma. Após definido o âmbito normativo, sua aplicação se daria como uma regra, na forma do tudo ou nada, na medida em que, ou os fatos se encaixam com perfeição no molde normativo previamente definido, tendo-se um direito subjetivo exigível, ou não há adequação, de modo que a pretensão posta não será amparada (OLSEN, 2011).

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Admitindo-se a existência de restrições externas às normas, e que estas podem ser constituídas mesmo sem autorização expressa, impõe abrigar a tese da teoria externa, posto permitir o exercício de um juízo de ponderação.

Essa é a conclusão a que chegam tanto Alexy, quanto Virgílio Afonso da Silva, haja vista que concebem a norma, e a partir dela, apenas quando se busca a sua efetivação, é que defendem que seja verificada a possibilidade de atingir a sua finalidade, tendo-se uma relação daquilo que é garantido prima facie com o direito definitivo, que poderá ou não ter sido restringido.

Virgílio Afonso da Silva é ainda mais incisivo ao dizer que deve ser rejeitado o conceito uno de “direitos com seus limites imanentes”, porque não se pode excluir do âmbito de proteção dos direitos fundamentais, de antemão, por mais ínfimo que seja, qualquer elemento que justificaria sua proteção. Ele conclui, ainda, que esta característica gera um grande número de colisões, o que desemboca na premissa de que todo direito fundamental é restringível.

O que diferencia as teorias de Alexy e de Virgílio, é que, para este último, um direito só poderá sofrer restrição quando existir fundamento constitucional, impondo-se um ônus argumentativo ao legislador, juiz e/ou administrador.

Desse modo, tem-se que os direitos fundamentais sociais podem sofrer restrições ao seu conteúdo. Todavia, ao lhe ser negada efetivação, deve-se estar amparado em um fundamento constitucional, que justifica essa incursão no âmbito de proteção da norma.

Acolhe-se, então, a teoria do suporte fático amplo que está intimamente entrelaçado ao substrato conceitual da teoria externa, posto que seria quase impraticável buscar a efetividade dos direitos fundamentais sociais através de demandas judiciais, caso adotada a teoria dos limites imanentes, hipótese em que o mérito da causa sequer seria apreciado, por impossibilidade jurídica do pedido, na grande maioria dos casos.

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ILANNA SOUSA DOS PRASERES é bacharel em Direito, assessora de Juiz de 1º grau e integrante do Núcleo de Estudos do Estado, Segurança Pública e Sociedade – NEESS.

MÁRCIO ALEANDRO CORREIA TEIXEIRA, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), é professor de Ciência Política e Estado no Curso de Direito da UFMA e Ciência Política e Sociologia Jurídica do Curso de Direito do UNICEUMA e Coordenador do Núcleo de Estudos do Estado, Segurança Pública e Sociedade – NEESS.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 70814. Relator: Min. Celso de Mello, Primeira Turma, julgado em 01/03/1994, DJ 24-06-1994 PP-16649 EMENT VOL-01750-02 PP-00317 RTJ VOL-0176- PP-01136. Disponível em: <http://stf.jus.br>. Acesso em: 22 jul. 2011a.

______. ______. Habeas Corpus 82424. Relator: Min. Moreira Alves, Relator p/ Acórdão: Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524. Disponível em: <http://stf.jus.br>. Acesso em: 22 jul. 2011b.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

KELBERT, Fabiana Okchestein. Reserva do possível e a efetividade dos direitos sociais no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.

MOREIRA, Alinie da Matta. As restrições em torno da reserva do possível: uma análise crítica. Belo Horizonte: Fórum, 2011.

OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2011.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Direitos fundamentais e suporte fático: notas a Virgílio Afonso da Silva. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, n. 6, p. 67-80, jun./dez. 2009

NOTAS

[1] Parte deste artigo foi extraído do trabalho monográfico da autora Ilanna Sousa dos Praseres, intitulada “O Direito fundamental social à segurança pública: entre o Poder Judiciário e a reserva do possível”.

[2] Para Alexy, mandamento, nesta acepção, é compreendido num sentido amplo, incluindo também as permissões e as proibições. (ALEXY, 2011, p. 90).

[3] Alexy (2011, p. 90) averba que: “O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes”.

[4] Habeas Corpus 70814. Relator: Min. Celso de Mello, Primeira Turma, julgado em 01/03/1994, DJ 24-06-1994 PP-16649 EMENT VOL-01750-02 PP-00317 RTJ VOL-0176- PP-01136.

[5] Habeas Corpus 82424. Relator: Min. Moreira Alves, Relator p/ Acórdão:  Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524.



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