19.11.09
O papel do relator no processo legislativo
POR FERNANDA LOHN
Para que a função típica do Legislativo se cumpra, Canotilho ensina que o processo legislativo seja designado pela “sucessão de atos (ou de fases, consoante a posição doutrinal respeitante à natureza de procedimento) necessários para produzir um ato legislativo. A lei é o ato final do procedimento. (…) Deste modo, o procedimento legislativo é um complexo de atos, qualitativa e funcionalmente heterogêneos e autônomos, praticados por stujeitos diversos e dirigidos à produção de uma lei do Parlamento. Noutros termos: (…) o modo ou iter segundo o qual se opera a exteriorização do Poder Legislativo"[i] Dentre esses atos encontramos a designação do relator para analisar determinada matéria apresentada.
Mostesquieu, o primeiro a erigir obra relevante a respeito do estudo das leis, já observava a existência de “leis sobre as quais o legislador meditou tão pouco, que são contrárias ao fim que se propôs”[ii] O presente estudo visa captar a importância dessa reflexão no papel do relator.
Com o pós-guerra iniciou-se uma enorme necessidade de cuidado na elaboração das Constituições e a tentativa de inclusão de todas as matérias possíveis para suas garantias. Apesar disso, nossa Constituição, símbolo de modernidade pela generalidade tratada, regulou pouco sobre processo legislativo, deixando a cargo dos Regimentos Internos das Casas Legislativas a função de regular os atos do procedimento a ser utilizado.
Como o processo legislativo ocorre dentro da casa política, encontramos críticas pois, para alguns, como Eugene Pierre, o Regimento Interno “na realidade, é um instrumento terrível nas mãos dos partidos; tem, às vezes, mais influência do que a própria Constituição sobre o andamento dos assuntos públicos”[iii] O que só constata uma realidade, mas não a modifica.
O Estado Democrático de Direito declarado em nossa Constituição torna o processo legislativo uma exigência, não podendo ser considerada válida qualquer espécie normativa sancionada sem, necessariamente, ter percorrido todos os passos previstos pela Carta Magna. Encontramos no art. 59 da Constituição a previsão de elaboração de emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. Ainda, no art. 166, ressaltamos a existência das Leis Financeiras que, a despeito de não estarem no rol previsto pelo art. 59, também tratam do processo legislativo contido texto no constitucional. Ressaltando que não foram inseridos no texto os pormenores da elaboração legislativa e, nem sobre prazos.
Se nos ativermos “ao procedimento legislativo comum, o entendimento geral da doutrina é o de que se distinguem três momentos sucessivos: relatório, comissão e Plenário.” Porém, “a relatoria não pode ser considerada, nem formal nem substancialmente, como uma realidade separada da respectiva comissão.”[iv]
Para que o processo legislativo cumpra sua função final deve-se ter claro em todas as fases instrumentais que “para elaborar uma boa lei, entretanto, não basta contar com a melhor informação suscetível de ser arrebanhada. É mister dominar a técnica jurídica e seu vocabulário a fim de alcançar a clareza e a precisão indispensáveis para que a regra possa conduzir ao objetivo colimado. Do contrário, todo o trabalho de coleta de dados será desperdiçado pela imperfeição da técnica que resulta em ambigüidade, obscuridade e lacunas.”[v] Para elaborar uma boa lei o relator deve elaborar um bom parecer, reunindo informações relevantes e justificativas plausíveis para o convencimento de seus pares.
Considerando que, diante do volume de trabalho legislativo, com atividades intensas nas Comissões Permanentes, Temporárias, de Inquérito e no Plenário, além de reuniões e do atendimento aos seus eleitores, muitos parlamentares, para concluírem seus votos, baseiam-se somente nos relatórios e pareceres apresentados, sem terem estudado profundamente a matéria, uma vez que também têm as suas para relatar. Aqui, diante dessa realidade prática, não podemos deixar de enaltecer ainda mais a relevância do parecer apresentado pelo relator designado através de suas assessorias.
Devemos seguir os ensinamentos de Márcia Azevedo, que indica detalhadamente os momentos procedimentais, e compreender que a relatoria é um instante muito importante onde os cidadãos podem, através da opinião pública e a sociedade em geral levantar suas bandeiras e executar a democracia in loco, apresentando suas sugestões ao relator, seja pessoalmente, por meio de assessoria ou com o envio de correspondência. [vi]
Destarte, fica a cargo dos parlamentares eleitos pelo voto popular não só a iniciativa da proposição das leis, mas também sua apreciação e posterior entrega de relatório e parecer a ser votado por seus pares, dentro de determinada comissão ou em plenário. Esse poderá ser aceito em sua totalidade, parcialmente ou totalmente rejeitado, cabendo a elaboração de texto substitutivo. Cabe ressaltar que os parlamentares nem sempre possuem formação acadêmica ou técnico-jurídica, além do número de atribuições e compromissos e projetos para relatar, fazendo-se necessária a ajuda de assessores, nem sempre técnicos, para o estudo de juridicidade e consonância com o ordenamento positivado. Contam ainda com o auxílio da Assessoria Legislativa da Casa para elaboração de pareceres, geralmente apartidários, muitas vezes vencidos nos “argumentos técnicos criteriosamente levantados sofrerem injunções políticas de tal ordem que acabam por desnaturar sua colaboração, impedindo inclusive a mera apreciação de seus apontamentos, sem qualquer caráter vinculante, pelos demais Deputados da Comissão envolvida e da Casa como um todo”[vii], ainda, um “corpo técnico” formado nas lideranças dos partidos que auxilia tanto na redação e análise técnica da instrução das matérias analisadas quanto na concordância com os desejos do grupo que representa. Não podemos, portanto, deixar de lembrar que esse processo legislativo ocorre dentro de uma Casa política e que a democracia é exercida no momento do voto do eleitor nas urnas, e não no da feitura dos relatórios. É importante, ainda, citar a possibilidade de realização de audiências públicas que trazem a sociedade para o debate público e munem o relator com maiores informações sobre o assunto, tornando-o mais conhecedor da matéria e dos anseios do grupo social envolvido.
Mesmo com todo o atual aparato de ajudas, o processo legislativo brasileiro ainda carece de maior consciência de cidadania por parte dos parlamentares investidos na função-chave que é servir de etapa preparatória para o posterior debate em plenário, consoante a legislação já existente e frente aos princípios instituídos em nossa Carta Magna e na sua elaboração, em estudos mais aprofundados por parte de sua assessoria e da própria doutrina, identificando melhor o importante papel do relator das matérias dentro de suas respectivas Casas Legislativas, seja dentro do Congresso Nacional, nas Assembléias Legislativas e até mesmo nas Câmaras de Vereadores, pois mais tarde serão leis aplicáveis.
Vale, por fim, ressaltar que a conformação dos princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito exige a submissão de todos à lei, razão pela qual sua elaboração deve obedecer com fidelidade os procedimentos dispostos no texto constitucional, cujo desvio das regras postas implicará a inconstitucionalidade formal da lei ou ato que se visava elaborar. O controle do processo legislativo, por via judicial, dar-se-á em momentos distintos: ou em sua confecção, enquanto tramita nas Casas Legislativas, ou, quando já pronto e finalizado. No primeiro caso, o controle visará obstar sua tramitação, via mandado de segurança (controle incidental), e assim impedir que chegue a integrar o ordenamento jurídico; no segundo caso, uma vez que já integra o ordenamento, exigirá provimento judicial que o declare formalmente inadequado em face da Constituição, via concentrada, in abstracto, ou difusa, in concreto.
_____
[i] CANOTILHO,J. J. Gomes. Apub MOARES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 34
[ii] MONTESQUIEU: Del espiritu de lãs leyes, Madri: Tecnos, 1985, livro XXIX, cap. V, p. 394 Apub ANTONIO, Angel Luis Alonso de, As Relatorias no Procedimento Legislativo. Tradução de Mirian de Souza Silva/ Revisão da tradução Anderson Fortes). Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 2(4):115-1, jul/dez.,1995. p.120
[iii] ANTONIO, Angel Luis Alonso de, As Relatorias no Procedimento Legislativo. Tradução de Mirian de Souza Silva/ Revisão da tradução Anderson Fortes). Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 2(4):115-1, jul/dez.,1995. p. 124.
[iv] ANTONIO, Angel Luis Alonso de, op. cit. p. 127.
[v] GOLÇALVES FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 136.
[vi] AZEVEDO, Márcia Maria Corrêa de. Prática do Processo Legislativo – Jogo parlamentar. São Paulo: Atlas, 2001.
[vii] ANTONIO, Angel Luis Alonso de, op. cit. p. 119.