Por Alonso Freire
17.11.15

Importação de ideias constitucionais

 

Por Alonso Freire

Em 1984, durante a convenção do partido republicano ocorrida na cidade de Dallas, no Estado do Texas, Gregory Lee Johnson, um norte-americano membro da Brigada da Juventude Revolucionária Comunista, pôs fogo em uma bandeira dos Estados Unidos em protesto à política de administração do então Presidente Ronald Reagan. Após ser detido, Johnson foi multado em dois mil dólares, preso, condenado e sentenciado à pena de um ano de detenção por violar uma lei do Estado do Texas que criminalizava a queima da bandeira estadual ou nacional. Tempos depois, declarando que sua atitude era uma expressão “simbólica” protegida pela Primeira Emenda à Constituição norte-americana, Johnson interpôs recurso, em virtude do qual a Corte de Apelações Criminais do Texas reformou a decisão que o condenara. O Estado do Texas conduziu, então, o caso à Suprema Corte norte-americana, que decidiu em favor de Johnson, por 5 votos contra 4.[1] Ao redigir a decisão em nome da maioria, o juiz William Brennan afirmou que inexistiam evidências de que a atitude de Johnson configurava iminente distúrbio da paz pública, como alegara o procurador do Estado do Texas, e que a proteção dada pela legislação texana à bandeira enquanto símbolo nacional merecedor de respeito não era cabível quando sua queima representasse um protesto político.[2]

Anos mais tarde, Paul Barry Hopkinson pôs fogo à bandeira da Nova Zelândia, no Parlamento nacional, em protesto ao apoio dado pela Austrália aos Estados Unidos durante a guerra no Iraque.[3] Seu protesto deu-se em 2003, na ocasião de uma visita ao país feita pelo Primeiro Ministro australiano. Por seu ato, Hopkinson foi preso e condenado a pagar NZD$ 600,00 devido à violação a uma legislação que criminalizava a destruição de símbolos nacionais com o propósito de desonrá-los. Como Johnson, Hopkinson apelou de sua condenação argumentando que a proteção da bandeira nacional tinha um objetivo muito pouco importante em uma sociedade multicultural como a da Nova Zelândia e que a sua queima em sinal de protesto não deveria ser considerada uma forma de desonra. O primeiro argumento não convenceu a juíza Ellen France, que afirmou: “Eu acredito que o objetivo [de proteger a bandeira em um país multicultural como a Nova Zelândia] ainda assim é importante. Em Texas v. Johnson…”, disse ela, “a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que a legislação do Estado do Texas contra a queima da bandeira era inconstitucional, mas considerou que os objetivos do estado de preservar a bandeira como um símbolo de unidade nacional e de evitar violações à paz eram legítimos”. Ela, contudo, decidiu em favor de Hopkinson: “Obviamente, a bandeira é importante. Mas, mesmo nos Estados Unidos, onde a bandeira é um símbolo dominante, a maioria concluiu que sua proteção não autorizava a interferência do direito penal… [C]oncluo [também] que … a proibição imposta à conduta do apelante não é um limite legítimo à sua liberdade de expressão”.

A queima de bandeiras nacionais ou locais, como alegada forma de protesto, já ocorreu em vários países, inclusive no Brasil. Na manhã do dia treze de abril de 2011, Paulo Sérgio Ferreira, um brasileiro de 38 anos, escalou o Mastro da Bandeira Nacional, que fica na Praça dos Três Poderes, próximo ao Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal, em Brasília. Conforme noticiaram vários veículos, ele declarou que estava fazendo um protesto para chamar “atenção para a situação dos negros no País”. Até 1983, era crime “destruir ou ultrajar a bandeira”, com pena de detenção de um a quatro anos (art. 41, Lei nº 6.620/1979, revogada pela Lei nº 7.170/1983). Mas o ato de Paulo Sérgio pode ser considerado crime de dano qualificado – por ter sido cometido contra patrimônio da União (art. 163, parágrafo único, III, CP) –, com pena de detenção de seis meses a três anos, além de multa. Imagino que se esse caso chegasse aos tribunais, muito provavelmente, a decisão em Johnson seria invocada, como já o foi pelo Supremo Tribunal Federal em situação distinta envolvendo a liberdade de expressão.

Evoco os casos acima como provas de um fenômeno talvez global: o uso de precedentes estrangeiros por tribunais nacionais em suas decisões. Eis uma prática cada vez mais comum ao redor do mundo e já constatada em vários países.[4] Para ela, a literatura tem dado várias denominações metafóricas. Nenhuma, porém, a captura perfeitamente. As duas mais utilizadas – empréstimos constitucionais e migração de ideias constitucionais – não são adequadas pelas seguintes razões. Primeiro, emprestar significa confiar alguma coisa a alguém com a obrigatoriedade de restituição. Portanto, um empréstimo pressupõe pelo menos dois agentes, um que empresta e outro que toma emprestado algo. Ocorre que nenhum tribunal está emprestando suas decisões. Além disso, ao utilizar precedentes estrangeiros, o tribunal em questão não consulta aqueles que os “possuem”, nem restitui a eles o que “tomou de empréstimo”. Segundo, migrar significa se deslocar de um local para outro e, geralmente, por atos próprios. Um tribunal, ao usar uma ideia constitucional estrangeira, não a está migrando. Ela “continua na origem”. Ademais, uma ideia constitucional não migra por conta própria.

Embora nem sempre sejam perfeitas, as metáforas têm um papel importante. Assim, se quisermos fazer uso delas, precisamos empregar a analogia de forma mais fiel possível. Por isso, proponho, a partir de agora, “importação de ideias constitucionais” como uma nova metáfora. Explico. Importar nem sempre implica o deslocamento da coisa importada, pelo menos não como utilizamos esse verbo em alguns casos na linguagem ordinária. É natural dizer que uma ideia foi “importada”, mas é estranho afirmar que ela foi “migrada” ou “tomada de empréstimo”. No primeiro caso, não se está dizendo que ela foi deslocada, tampouco que ela deverá ser restituída. Além disso, o termo tem outras duas vantagens. Primeiro, podemos importar algo que não tenha “possuidor” e, por essa razão, diferentemente do empréstimo, a ação não pressupõe, necessariamente, o consentimento de outro agente. Em segundo lugar, embora a migração possa ocorrer por conta própria, isso não se dá na importação, já que algo é necessariamente importado por alguém.

Entretanto, a importação de precedentes estrangeiros representa apenas uma das formas de importação de ideias constitucionais. Esse fenômeno também pode ocorrer por meio da atividade legislativa ordinária, em momentos constituintes etc. O certo é que cada uma das distintas formas de importação de ideias constitucionais tem despertado o interesse de muitos estudiosos. Mas, a seguir, vou me concentrar apenas nas importações feitas pelo Judiciário. Faço ainda uma restrição adicional: não tratarei de decisões resolutivas tomadas por outras cortes, mas de ideias desenvolvidas por elas e voltadas à resolução dos casos que lhes são submetidos. E antes de prosseguir, antecipo que não farei nenhum juízo de valor sobre se as ideias dadas como exemplos adiante são boas ou ruins. Preocupar-me-ei apenas com as justificativas para sua importação.

Começo com as duas ideias constitucionais construídas por tribunais que talvez sejam os exemplos mais bem-sucedidos de importação constitucional: o controle judicial de constitucionalidade e o princípio da proporcionalidade. Essas duas ideias foram importadas para a grande maioria dos países, especialmente para aqueles que adotam constituições providas de extensas declarações de direitos. Algumas vezes, logo ao serem importadas ou com o passar do tempo, tais ideias são remodeladas. Tomem-se os exemplos do controle judicial de constitucionalidade dominante na Europa e a proporcionalidade como aplicação de apenas dois (e não de três) subprincípios adotada em alguns países. Portanto, assim como carros e outros bens, as ideias constitucionais, ao serem importadas, podem sofrer transformações de alguma ordem. Isso se dá em virtude dos distintos sistemas sociais, culturais e jurídicos para os quais elas são importadas.

Há pelo menos duas razões para que ideias como as mencionadas sejam importadas. A primeira delas envolve a justificação em abstrato para o seu uso. A segunda, por sua vez, a justificação concreta para transportá-las. A justificação em abstrato geralmente está relacionada às noções de racionalidade e legitimidade. O problema da racionalidade consiste em determinar se é possível ou não fazer um uso racional e controlado da ideia constitucional. Por outro lado, a legitimidade envolve a difícil questão sobre se os tribunais que criam e fazem uso dessas ideias estão autorizados a aplicá-las. Essas duas dimensões do problema – legitimidade e racionalidade – permeiam até hoje a discussão em torno da adoção do controle judicial de constitucionalidade e do princípio da proporcionalidade ao redor do mundo, mesmo nos países em que tais ideias surgiram. Há inúmeras obras propondo justificativas abstratas para ambas as ideias. Nelas, geralmente os autores apresentam vantagens que elas trazem para os sistemas jurídicos, respondendo, muito comumente, a objeções à sua adoção.

Por outro lado, a justificação em concreto diz respeito à necessidade da utilização da ideia constitucional no sistema jurídico de destino. Hoje, parece inquestionável a necessidade do uso da proporcionalidade por cortes constitucionais frente às reconhecidas colisões de direitos fundamentais e diante da necessidade de se estabelecer restrições a esses direitos. Embora seja uma ideia mais antiga, a adoção do controle judicial de constitucionalidade dependerá de vários fatores e, geralmente, tem sido feita por meio do legislador constituinte. Essa justificação em concreto deve levar em conta a realidade do país para o qual a ideia está sendo importada, já que nem sempre a justificação do uso concreto no sistema original justifica, por si só, a necessidade de sua importação para outros.

No Brasil, a importação dessas duas ideias constitucionais não encontrou grandes bolsões de resistência. É possível acrescentar à lista outros exemplos, como a interpretação conforme a constituição, o mínimo existencial, a proibição de retrocesso social etc. Há uma nova ideia, todavia, que tem suscitado grande controvérsia ultimamente.

Como amplamente divulgado, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 347) no Supremo Tribunal Federal pedindo que se reconheça a violação de direitos fundamentais da população carcerária e, diante disso, imponha a adoção de providências para sanar lesões a preceitos fundamentais previstos na Constituição Federal, decorrentes de atos e omissões dos poderes públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal no tratamento da questão prisional no País.

Esse quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, causado pela inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação de uma pluralidade de autoridades podem alterar a situação inconstitucional é chamado, pela Corte Constitucional da Colômbia, de “Estado de Coisas Inconstitucional” (ECI).[5] O Supremo Tribunal Federal ainda não decidiu o mérito, mas logo após o deferimento parcial da cautelar, a questão passou a gerar uma saudável discussão e já suscitou críticas entusiasmadas.

Tal como se sucedeu com o princípio da proporcionalidade, o reconhecimento do ECI como objeto de controle judicial de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal é claro exemplo de importação de ideia constitucional. Não é meu propósito dizer aqui se o ECI é uma ideia constitucional cuja importação é apropriada para o nosso sistema constitucional. Não há espaço para isso. Quero apenas afirmar que para considerarmos sua importação apropriada devemos responder pelo menos às seguintes questões: o seu reconhecimento se dá por critérios racionais? O judiciário tem legitimidade para reconhecer o ECI e para tomar medidas estruturais e próprias visando pôr fim a ele? Há realmente necessidade de utilização dessa ideia em nosso sistema jurídico? Já não existem outros meios por aqui? Essas são algumas perguntas que precisam ser respondidas, independentemente de se a ideia foi invocada pela Corte ou se foi oferecida a ela pelas partes, como se sucedeu na ADPF 347.

É digno de nota que, além de ser necessário justificar a importação de ideias constitucionais, é preciso também verificar qual o impacto delas em nossa identidade constitucional. É que, “[s]eja qual for a justificativa para a incorporação de abordagens e ideias estrangeiras em decisões constitucionais de uma nação, importará saber se elas são susceptíveis de ameaçar materialmente a sua identidade constitucional”.[6] Isso é importante, pois, embora seja inegável que a importação de ideias constitucionais tenha alguns pontos muito positivos, não se pode negar a possibilidade de haver riscos,[7] inclusive o de elas atuarem, eventualmente, de forma parasitária nos sistemas de destino.

Em resumo, ao importarmos ideias jurídicas – constitucionais ou não –, devemos agir com cautela. Isso inclui considerar que as boas ideias nem sempre vêm de sistemas que consideramos melhores que o nosso. Essa última observação me faz lembrar o seguinte: por muito tempo, as mulheres mulçulmanas tiveram mais direitos assegurados pela legislação islâmica do que as mulheres não mulçulmanas sob sistemas jurídicos de inúmeros países do Ocidente. Basta considerarmos o direito de propriedade, tão enfatizado pelo liberalismo ocidental. Como se sabe, o commom law negou por muito tempo às mulheres casadas quaisquer direitos de propriedade, direito este que a lei islâmica sempre lhes concedeu. Como Noah Feldman nos lembra, “quando os britânicos aplicavam suas leis aos muçulmanos, no lugar da sharia, como fizeram em certas colônias, o resultado era que as mulheres muçulmanas casadas perdiam o direito à propriedade”.[8]

Gostaria de fazer uma última ressalva aparentemente óbvia: uma ideia constitucional pode não ser bem-sucedida na origem, mas pode ser no destino. Há muitos exemplos de êxito ao redor do mundo. Quanto ao ECI, penso que ainda não estamos em posição de avaliar. Sigo atentando à virtuosa consideração de que o tempo tem valor hermenêutico.

__________

Alonso Freire. Professor Assistente da UFMA e professor e pesquisador da UNICEUMA. Assessor de ministro do STF. Mestre em Direito Constitucional pela UFMG e doutorando em Direito Público pela UERJ.

Artigo publicado originalmente no site JOTA, edição 17.11.2015.

Notas:

[1] Texas v. Johnson, 491 U.S. 397 (1989).

[2] Foi neste caso que a Suprema Corte norte-americana se manifestou diretamente pela primeira vez sobre se a Primeira Emenda protege a irreverência à bandeira norte-americana como forma “simbólica” de expressão. A Corte havia julgado outros casos que envolviam a utilização da bandeira norte-americana como forma de expressão. Em todos eles, porém, ela não se posicionou claramente sobre a questão. Meses após a decisão em Johnson, e como forma de reação política, o Congresso norte-americano, pretendendo revogar a decisão tomada pela Suprema Corte em Johnson, aprovou o Flag Protection Act, legislação posteriormente declarada inconstitucional pela Corte, no casoUnited States v. Eichman, no qual ela invocou os mesmos argumentos já oferecidos em Johnson.

[3] Sobre o caso, Cf. BUSCHBACHER, Sigrid Brigitte. Protection of Public Symbols in New Zealand and the United States of America: Flag Burning versus Freedom of Expression. The New Zealand Postgraduate Law e-Journal, n. 2, 2005, p. 1-36.

[4] Cf. FREIRE, Alonso. O Supremo Tribunal Federal e a Migração de Ideias Constitucionais: Considerações sobre a Análise Comparativa na Interpretação dos Direitos Fundamentais. In: Clèmerson Merlin Clève; Alexandre Freire. (Org.). Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[5] Cf. CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. (Estado de Coisas Inconstitucional. Disponível em: http://jota.info/jotamundo-estado-de-coisas-inconstitucional).

[6] JACOBSOHN, Gary Jeffrey. Constitutional Identity. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2010, p. 181.

[7] Cf. FREIRE, Alonso. O Supremo Tribunal Federal e a Migração de Ideias Constitucionais, Op. Cit.

[8]Why Shariah? http://www.nytimes.com/2008/03/16/magazine/16Shariah-t.html?ei=5070&em=&en=5c1b8de536ce606f&ex=1205812800&pagewanted=all&_r=0



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