Por Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno e Júlio Aguiar de Oliveira
15.04.14

Uma teoria do direito sem filosofia?! Crítica às objeções de Trindade e Streck à teoria de Alexy

 

No ensaio “Alexy e os problemas de uma teoria do direito sem filosofia”, publicado na coluna Diário de Classe, no dia 5 de abril, e reproduzida no blog Os Constitucionalistas, André Karam Trindade e Lenio Luiz Streck apresentam objeções a algumas reflexões expostas por Robert Alexy no Congresso Proporcionalidade, Dignidade Humana e Direitos Sociais na Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy, realizado em Chapecó, entre os dias 26 e 28 de março deste ano.

Nosso objetivo, neste texto, é contestar a correção das objeções de Trindade e Streck a Alexy.

Trindade e Streck começam afirmando que se propõem “refletir a respeito do modo como a teoria jurídica de Robert Alexy vem sendo aplicada por aqui.” Mas, como se percebe ao longo da leitura do ensaio, esse não é o único e nem mesmo o principal objetivo dos autores. O objetivo é, na verdade, duplo: além (i) dessa crítica à forma como a teoria de Alexy vem sendo aplicada no Brasil, esboçada no início do ensaio, Trindade e Streck também se dedicam a (ii) criticar a própria teoria de Alexy.

Em relação à (i) forma como a teoria de Alexy vem sendo aplicada no Brasil, nós discordamos de algumas afirmações dos autores, mas concordamos com eles quando afirmam que a aplicação – sobretudo em juízo – de instrumentos centrais da teoria de Alexy, como a máxima da proporcionalidade, muitas vezes não corresponde à teoria aplicada. Esse fenômeno não é novo, e ele não ocorre apenas com Alexy, mas com praticamente toda teoria que possui grande repercussão. O fenômeno da distorção de uma teoria, quando de sua aplicação, merece ser investigado, mas não nos dedicaremos a essa investigação aqui. Queremos nos concentrar, neste ensaio, em uma análise das (ii) críticas de Trindade e Streck ao próprio Alexy.

Em seu ensaio, afirmam os autores:

“O mais impressionante, ao menos a nosso ver, fica por conta do ataque alexyano à hermenêutica, no finalzinho do evento — aqueles que saíram antes perderam esta parte —, após ser questionado pelo professor Rogério Gesta Leal sobre o modo como sua teoria se relaciona com outras — mais especificamente aquelas que se valem dos aportes teóricos de Gadamer e Dworkin —, no que diz respeito ao enfrentamento do problema da racionalidade nas decisões judiciais.

Para ele, a hermenêutica não basta para o Direito. Muito embora reconheça que o círculo hermenêutico é inafastável, Alexy acredita que, tal como teria feito Gadamer em Wahrheit und Methode, a hermenêutica colocaria inúmeros pontos de vista para um problema, sem dar a solução e teorizá-la com o rigor necessário. Rigor, aqui, significa a possibilidade de se estabelecer, analiticamente, uma fórmula lógico-matemática como passo inicial para a fundamentação racional da decisão judicial.”

Após isso, os autores afirmam que “Tal resposta evidencia o déficit filosófico que atravessa a teoria alexyana.”

Começaremos (1) pelas críticas de Trindade e Streck à concepção de Alexy sobre a hermenêutica filosófica, passaremos então à crítica dos autores à (2) visão de Alexy sobre a teoria de Dworkin e, no final, apresentaremos (3) uma conclusão sintética sobre as objeções dos autores a Alexy.

(1) No que diz respeito à concepção de Alexy sobre a hermenêutica filosófica, os autores veem um “déficit filosófico” no fato de Alexy afirmar que o círculo hermenêutico é inafastável, mas que ele não basta para o direito. Há quatro problemas na crítica dos autores à afirmação de Alexy: (a) ela superdimensiona o que Alexy disse, (b) ela ataca uma afirmação de Alexy que é, em nosso entendimento, absolutamente correta, (c) ela interpreta incorretamente o motivo que levou Alexy a dar a resposta que deu à pergunta e, por fim, (d) ela se funda em interpretações incorretas da teoria de Alexy. Vamos explicar cada um desses quatro problemas.

(a) O superdimensionamento pode ser compreendido facilmente. Segundo os próprios Trindade e Streck, Alexy reconhece a importância do círculo hermenêutico no âmbito da interpretação do direito, mas afirma que ele é insuficiente. Ora, essa afirmação não constitui uma rejeição ou sequer uma crítica forte à hermenêutica filosófica. Alexy não afirma a incorreção do círculo hermenêutico, mas sua incompletude. Afirmar a incompletude de algo certamente constitui uma crítica, mas não uma rejeição. Ao contrário do que parecem sugerir Trindade e Streck, não há portanto um Alexy contra Gadamer (ou Heidegger), mas sim um Alexy que vai além de Gadamer (e Heidegger). Há, pois, claramente, um superdimensionamento daquilo que foi afirmado por Alexy.

(b) A crítica de Alexy à hermenêutica filosófica ou, mais precisamente, à hermenêutica filosófica como teoria do direito, parece-nos correta. De fato, a ideia do circulo hermenêutico revela-se uma descrição adequada da compreensão em geral, mas parece ser insuficiente como teoria do direito, sobretudo como teoria da aplicação jurídica. Em defesa da hermenêutica filosófica poder-se-ia apontar o fato de ela não se apresentar como método de interpretação jurídica, mas como uma ciência da compreensão. Como não parece razoável criticar uma teoria por algo que ela não se propõe realizar, a crítica de Alexy tem que ser interpretada então como crítica não aos teóricos da hermenêutica filosófica, mas àqueles que veem a hermenêutica filosófica como uma teoria do direito. Essa crítica de Alexy parece-nos correta, mas ainda que ela não fosse, ou seja, ainda que Alexy estivesse errado em sua afirmação, a crítica de Trindade e Streck a Alexy poderia ser rejeitada, como vimos, por outras duas razões. Vamos passar a elas.

(c) Trindade e Streck afirmam que a causa da equivocada compreensão de Alexy é o “déficit filosófico” de sua teoria. A teoria de Alexy seria uma teoria do direito sem filosofia. Essa afirmação beira o absurdo, pois ela sugere, indiretamente, que todo teórico do direito que não é partidário da hermenêutica filosófica enquanto teoria do direito desenvolve uma teoria do direito sem filosofia! Ora, a teoria de Alexy possui uma teoria filosófica de base. Mais ainda, ela possui uma forte teoria filosófica de base, que é a teoria do discurso. A teoria do discurso de Alexy foi construída sob influência de várias matrizes filosóficas, dentre as quais duas podem ser destacadas: Kant e Habermas. Por trás da teoria da argumentação jurídica de Alexy, que é um dos elementos centrais do seu sistema, está a ideia de racionalidade discursiva, em moldes kantianos e habermasianos. É bem verdade que, em certo sentido, a versão habermasiana do princípio do discurso é mais kantiana que a versão alexyana, pois a ideia de universalidade é, em Habermas, mais forte que em Alexy. Não é senão por motivos kantianos que Habermas rejeita a ideia alexyana de ponderação e de princípios como comandos de otimização. Mas isso não interessa aqui. O que interessa aqui é que embora, em nosso entendimento, Alexy possua uma consistente filosofia de base, é possível criticá-la, mas dizer que sua teoria é uma teoria do direito sem filosofia é simplesmente incorreto.

(d) Igualmente problemática são algumas afirmações pontuais de Trindade e Streck sobre a teoria de Alexy. Vamos citar duas delas, que chamam mais atenção.

A primeira afirmação problemática sustenta que Alexy não compreendeu o “giro ontológico-linguístico”, a “dobra da linguagem”. Ora, há de se perguntar como um teórico do discurso, que funda sua teoria discursiva do direito na ideia de uma razão dialógica, teria ignorado a linguagem. O princípio do discurso é, para Alexy, dialógico, e a prova disso é que Alexy desenvolve sua teoria da argumentação jurídica sob forte influência do papel desenvolvido pela linguagem na filosofia do século XX. Portanto, a crítica linguística, nesses termos, não pode ser sustentada.

A segunda afirmação problemática dos autores sustenta, indiretamente, que Alexy critica a hermenêutica filosófica por entender que ela seria irracional. Assim, afirmam os autores:

“A crítica, absolutamente apressada e equivocada, de Alexy à hermenêutica vai no mesmo nível de quem confunde a hermenêutica com qualquer teoria relativista, esquecendo que Gadamer odiava que confundissem a hermenêutica com qualquer apego à irracionalidade.”.

Ora, ao contrário do que sugerem os autores, Alexy não afirmou a irracionalidade do círculo hermenêutico, mas sim, como os próprios autores parecem reconhecer, sua incompletude.

(2) No que diz respeito à concepção de Alexy sobre Dworkin, afirmam Trindade e Streck:

“Em relação à exigência de coerência, nos termos propostos de Dworkin em sua teoria do Direito como integridade, Alexy entende que não existe um critério unívoco para tal finalidade, de maneira que ‘os critérios de coerência poderiam ser ponderados’ (sic). Eis, de novo, o principal problema de Alexy. Para ele, tudo pode ser ponderado!”

Percebe-se portanto que, aqui, a crítica dos autores a Alexy volta ao velho problema da ponderação e dos princípios como comandos de otimização. Os autores sustentam, de forma absolutamente contraditória com as afirmações de Alexy, que princípios, para ele, não são normas:

“Em suma, a coerência não faz sentido para Alexy porque o seu modelo jurídico é composto por princípios jurídicos — mandados de otimização que sequer são deontológicos.”

Ora, Alexy afirma expressamente que princípios são normas, e que princípios, enquanto normas, estão no plano deontológico (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 153; ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito, p. 146). Alexy distingue normas e valores, inspirando-se, para isso, na distinção proposta por Von Wright. Essa distinção entre normas e valores realizada por Alexy pode ser criticada: alguns afirmam que ela aproxima excessivamente normas de valores, enquanto outros, como Sabino, afirmam que ela, ao contrário, os separa excessivamente (cf. SABINO, Hugo S. Valor e Princípio: Crítica à Distinção Sustentada por Alexy em sua Teoria dos Direitos Fundamentais, Caps. 2 e 3). Mas é evidente que dizer que para Alexy princípios não possuem caráter deontológico, ou seja, não são normas, é incorreto e vai contra aquilo que Alexy expressamente afirma.

Para os autores, “princípios tornaram-se verdadeiros álibis teóricos na medida em que passaram a ser empregados como enunciados performativos que se encontram à disposição dos intérpretes para que, ao final, decidam de acordo com sua vontade”. Além disso, na visão deles, “Alexy desconhece que decisão jurídica não é escolha”. Os autores provavelmente extraem essa conclusão do fato de princípios serem, para Alexy, ponderáveis, e ponderação – de acordo com a compreensão dos autores – implicaria decisionismo. Aqui a razão do equívoco dos autores é provavelmente a confusão entre a teoria de Alexy e a aplicação, por parte de alguns tribunais no Brasil, da ideia de ponderação. O fato de alguns tribunais ponderarem sem critério, o que pode implicar decisionismo, não significa que Alexy o faça. Para Alexy a ponderação se desenvolve dentro de um processo racional de argumentação. Não há decisionismo: princípios não são normas que o intérprete escolhe de forma arbitrária. Ao contrário, princípios são ponderados de forma racional, através da máxima da proporcionalidade, que pressupõe a argumentação jurídica. A ponderação seria arbitraria se ela não estivesse conectada a argumentos racionais que a apoiam (cf. ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito, p. 152-159, 364-367). Os autores confundem portanto a teoria de Alexy com exemplos de sua aplicação distorcida no Brasil, aplicação esta que, como eles próprios parecem reconhecer, não é fiel à teoria de Alexy.

(3) Em síntese, a crítica de Trindade e Streck a Alexy supõe posições teóricas que Alexy não adota e supõe, ainda, uma visão muita estreita sobre o que é a filosofia. A crítica dos autores constitui, na verdade, uma atribuição já conhecida de rótulos e clichês a Alexy: ele seria um “neopositivsta”, que não fez a “dobra linguística” e que estaria preso à “filosofia da consciência”. Como vimos acima, nada disso sobrevive a uma análise teórica mais acurada.

Na verdade, não há nada de novo nessa crítica dos autores a Alexy. Por trás dela está a velha crítica da irracionalidade da ponderação, que já foi respondida pelo próprio Alexy. Os autores podem achar a ponderação irracional, mas precisariam, nesse caso, expor os argumentos a favor dessa tese e, para o bem da discussão, considerar a resposta já apresentada por Alexy à crítica da irracionalidade, e então refutá-la (essa resposta de Alexy pode ser encontrada em seu livro Teoria Discursiva do Direito, recém lançado no Brasil).

A resposta de Alexy à crítica da irracionalidade da ponderação não é porém a única parte da obra alexyana que Trindade e Streck ignoram. Eles tampouco se ocupam do debate atual que ocorre no âmbito da teoria discursiva do direito de Alexy, sobre o papel dos princípios formais no processo de aplicação do direito, debate que eles se limitam a mencionar. Esse tema foi abordado por Alexy em sua última visita ao Brasil antes da visita a Chapecó, que, ao contrário do que afirmam os autores, não ocorreu em outubro de 2013, mas sim em fevereiro de 2014. Em 12 de fevereiro de 2014, na conferência de encerramento proferida no Congresso Brasil-Alemanha de Teoria do Direito e Direito Constitucional: Conceito e Aplicação do Direito em Robert Alexy, em Belo Horizonte, Alexy apresentou uma reformulação inédita de sua teoria. Essa reformulação será publicada no Brasil, pela editora Forense, em maio deste ano (antes mesmo de sua publicação na Alemanha), no livro Princípios Formais e Outros Aspectos da Teoria Discursiva do Direito.

A teoria de Alexy pode e deve ser criticada. Quem conhece Alexy sabe de sua abertura para a crítica e disposição constante para a discussão. No entanto, a afirmação de que a teoria do direito de Alexy é uma teoria do direito sem filosofia não alcança o nível de uma crítica minimamente razoável. Somente quem acredita que a filosofia se resume à hermenêutica filosófica e que a filosofia do direito contemporânea se resume a Dworkin pode criticar a teoria de Alexy por ela ser uma teoria sem filosofia. Mas para quem não possui uma concepção tão estreita sobre o que é filosofia e, mais especificamente, sobre o que é a filosofia do direito, a referida crítica é completamente sem sentido, e exatamente por isso precisa ser rejeitada.

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Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno é professor da UFMG e da PUC Minas

Júlio Aguiar de Oliveira é professor da UFOP e da PUC Minas.

Foto: Simon & His Camera.



2 Comentários

  1. Paulo Reis disse:

    E agora Streck?

  2. […] de Alexy daquilo que eles consideraram “incorreções” (sic) nas objeções formuladas (clique aqui). A principal delas, talvez, tenha origem no provocativo título da coluna de André e Lenio que […]