Por Lenio Luiz Streck
26.10.13

O que é isto, o ativismo judicial, em números?

 

Recentemente foi publicado um importante livro tratando da temática do ativismo, da judicialização e da representação, da lavra de Thamy Pogrebinschi[1]. Ressalte-se, ainda, o excelente prefácio do prestigiado cientista político Rogério Arantes. A inteligente e zelosa autora levanta sete teses que contestam o imaginário jurídico-social de que o Supremo Tribunal Federal estaria judicializando a política. Ou seja, seu objetivo é desmitificar o discurso de que haja crise de representação ou risco de crise institucional em face de um excessivo intervencionismo do Poder Judiciário no País. Vou procurar resumir as sete teses da professora Thamy:

1) Não é verdade que o STF tem uma atuação contramajoritária, isto porque é inexpressivo o número de decisões declarando a inconstitucionalidade, em todo ou em parte, de leis e atos normativos promulgados pelo Congresso Nacional.

2) Ao contrário do que se diz, o STF reforça a vontade majoritária representada no Congresso Nacional, isto porque ele vem confirmando a constitucionalidade das leis e atos normativos em 86,68% das ADIs e ADPFs.

3) Não é verdade que o STF atua de forma ativista; portanto, não é verdadeiro dizer que ele colmata as supostas lacunas deixadas pelo Legislativo, uma vez que, para cada declaração de inconstitucionalidade, havia uma média de 11,75 projetos de lei tratando da mesma matéria específica em tramitação no Congresso, além de uma média de 2,6 leis tratando do mesmo tema discutido pelo pleno da corte.

4) Não há enfraquecimento do poder majoritário do Legislativo, uma vez que, em decorrência da declaração de inconstitucionalidade, o Congresso propõe uma média de 6,85 projetos de lei versando sobre a mesma matéria.

5) Ao contrário do que se afirma, o STF fortalece a atuação do Legislativo, obrigando-o a legislar sobre determinadas matérias. O prazo médio de resposta do Legislativo foi de 16 meses, sendo que em 45,83% dos casos a resposta vem em menos de seis meses.

6) O comportamento do Supremo não se alia a nenhuma coalizão majoritária do Congresso, porque a relação entre ADPFs e ADIs reconhecidas é proporcional.

7) Por último: o STF tem se utilizado de recursos jurídicos para preservar ao máximo a palavra do Legislativo, como a interpretação conforme, a nulidade parcial sem redução de texto e a modulação de efeitos.

Comentando os dados da pesquisa

Aparentemente, a pesquisa de Thamy esvaziaria grande parte do que foi escrito até hoje sobre o comportamento ativista do STF. Vejam que ela chega a falar do “Falso silogismo da judicialização”. Entretanto, nem tudo o que parece, é. Façamos, pois, uma anamnese da bela pesquisa.

Como preliminar, há que dizer que o fato de o STF (ou o PJ lato sensu) declarar ou não declarar um ato normativo inconstitucional — e a pesquisa se fixou apenas nisso — não tem, necessariamente, relação com o ativismo/judicialização da política (ponho a barra porque a autora não distingue esses dois conceitos). O STF (ou outros tribunais) podem declarar a inconstitucionalidade de leis em alto índice e ainda assim, necessariamente, tal atitude não poderá ser epitetada como ativista/judiciopolítica. Se as leis forem inconstitucionais, é bom para a democracia — ou, diria, condição de possibilidade da democracia — que sejam assim declaradas. Ativismo ou judicialização não se capta a partir do código “constitucional-inconstitucional” e tampouco do código “ação deferida-ação indeferida”. Os conceitos de ativismo e judicialização que explicito na sequência vão deixar isso bem claro.

Colocada a preliminar, sigo. Assim, primeiramente, tirante os elogios ao minucioso trabalho de pesquisa, é necessário deixar claro que, quando tratamos de determinados assuntos, antes é necessário colocar na mesa os conceitos operacionais com os quais estamos lidando. Com efeito, a autora dá por “batidas” algumas premissas, que talvez não sejam tão evidentes assim.

Para começar, Thamy diz que “um dos principais alicerces sobre os quais se construiu a tese da judicialização da política no Brasil é o significativo e crescente volume de ações ajuizadas por meio de controle concentrado de constitucionalidade”. Assim, o número de ADIs seria um termômetro do coeficiente de judicialização. Aqui, já de pronto, “incluo-me fora” desses alicerces que construíram a equivocada tese de que a judicialização advém do volume de ações ajuizadas no STF. Esses alicerces são falsos.

Permito-me lembrar, portanto, que essa é apenas uma das questões que dizem respeito à judicialização. No plano do controle difuso ou do uso de writs constitucionais, a judicialização (ou o ativismo — e essa diferenciação explicitarei na sequencia) é muito mais significativo. Mas muito mais, mesmo. A judicialização do direito à saúde, por exemplo, passa por poucas ações no Supremo Tribunal Federal (controle concentrado), mas por dezenas de milhares de ações nos fóruns e tribunais da República. Portanto, as ADIs são só a ponta pequeníssima do enorme iceberg, podendo induzir ao erro. Um simples mandado de segurança deferido pelo STF em relação ao direito de saúde, por exemplo, determinando que remédios fora da lista do SUS podem ser objeto de determinação judicial já representa — aqui, sim — um contingente de efeitos colaterais no campo da relação ativismo-judicialização (basta acessar ao site do STF para constatar isso). Ou ações como a STA 175-CE.

Mais ainda, o diagnóstico da judicialização não deve ficar restrito à atuação (ou crítica à atuação) do STF. Basta vermos que vários Estados da Federação gastam mais em pagamento de ações judiciais sobre o acesso à saúde e remédios do que nos próprios orçamentos. Em São Paulo, por exemplo, os gastos da Secretaria Estadual de Saúde com medicamentos por conta de condenações judiciais em 2011 chegaram a R$ 515 milhões, quase R$ 90 milhões gastos além do previsto no orçamento do ano destinado a medicamentos. Só em liminares mandando matricular crianças em creches há mais de 7 mil só nos primeiros seis meses de 2013… em São Paulo. Aqui, desde logo cabe a pergunta: essa distribuição de remédios, internações e matrículas é, de fato, judicialização ou é fruto de ativismo? É contingência ou behaviorismo? Lembro, aqui, de Garapon, um antiativista ferrenho, que diz: o ativismo começa quando, entre várias soluções possíveis, a escolhado juiz é dependente do desejode acelerar a mudança social ou, pelo contrário, de a travar.

Em segundo lugar, ao dizer que vai desmitificar a falácia da crise institucional, a autora apenas alude a alguns comentários (por exemplo, de Luís Roberto Barroso), de que estaria havendo esse risco. Não consta que no conjunto das obras jurídicas que criticam o ativismo do Judiciário (incluído o STF) possa ser encontrada essa afirmação de que o Brasil corre(ria) o risco de uma crise institucional. Não vi isso em nenhum livro importante (e a autora não refere em quais isso estaria). Permito-me afirmar que a crítica ao ativismo não vai a esse ponto, ao menos pela literatura mais conhecida no campo jurídico. Há, sim, um risco, por uma razão simples: o fato de se dizer — e eu tenho feito isso amiúde — que o STF é ativista não quer dizer que o Legislativo é fraco. Na verdade, o agigantamento do Judiciário não quer dizer enfraquecimento do Legislativo, como quer fazer parecer a autora. Aliás, o que dizer da relação Poder Executivo-Poder Judiciário? Pensemos apenas no problema das aposentadorias rurais, por exemplo, cujos deferimentos são frutos de decisões, no mais das vezes, solipsistas, para usar um conceito que me é caro… Ou das liminares concedidas diuturnamente em face dos leilões ou mesmo determinando intervenções diretas nos orçamentos do Executivo (nas três esferas da federação). Lembrete: o site do Ministério da Saúde “ensina” como entrar em juízo…contra a própria Viúva. Aqui, o próprio Executivo incentiva práticas ativistas (há estados como o Rio de Janeiro que fornecem até fraldas e xampu). E o que diríamos ou o que diremos se o STF decidir que todos os precatórios devem ser pagos até o ano 2018 (voto do ministro Luiz Fux modulando os efeitos das ADIs 4.357 e 4.425, perquirindo a EC de 2009), intervindo nos orçamentos dos Executivos? Pelo que se vê, o STF está fazendo juízos políticos (a ADI tem pedido de vista do ministro Barroso, na seção de 24 de outubro de 2013), ingressando em seara não sua. Para corroborar o que digo, leia-se os votos divergentes dos ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Teori Zavascki (em parte). Em resumo, poder-se-ia questionar alguns votos apenas dizendo que, em uma democracia, quem administra é o Executivo. Se administra mal, troquemos o(s) Executivo(s). De quatro em quatro anos, tem eleição. No STF, não há eleição. De novo: o que é isto? Ativismo ou judicialização?

Talvez o problema esteja no conceito de ativismo (ou de judicialização) que Thamy utiliza. Para ela, a cultura jurídica brasileira estaria equivocada porque usaria outliers (casos mentirosos) para demonstrar um “excesso de ativismo” ou de judicialização. Segundo ela, seriam poucos casos e que, no cômputo geral, dariam um percentual pífio. Sua conclusão: não é verdade que o STF seja ativista; não é verdade que o STF pratique judicialização. Como referi, isso não é tão simples assim. Nem para o STF e nem para o restante do judiciário de terrae brasilis.

O que se entende por ativismo?

Outro ponto que fragiliza a pesquisa de Thamy é afirmar que, pelo fato de que a maioria das ações de inconstitucionalidade terem sido rejeitadas, isso seria forte demonstração de que o STF “não é ativista” e que “não está judicializando”. Pergunto: desde quando somente um ato positivo de inconstitucionalidade é que demonstra o ativismo de uma Suprema Corte? Mais: nem mesmo se pode afirmar que uma decisão afirmando a inconstitucionalidade de uma lei seja, em si, uma atitude que judicializa a política (ou ativista, uma vez que a autora não distingue os termos). Thamy quereria dizer que, se o STF julga de acordo com o parlamento ou de acordo com o governo, ele deixa de ser epitetado de ativista? Ora, se o parlamento faz uma lei contrária a Constituição e o STF afirma esse equívoco, indeferindo uma ADI ou deferindo uma ADC, ele está, com essa atitude, prestigiando o parlamento? Pode até ser… só que estará desprestigiando a democracia. Afinal, ativismo é só quando julga “contra”? Como assim? Afinal, qual é o conceito de ativismo[2]? Aqui, sou obrigado a fazer um breve corte epistemológico.

Como aponta Francisco José Borges Motta[3], para que possamos concordar ou discordar a respeito de uma concepção complexa, como direito ou democracia, por exemplo, é preciso fazer uma pausa e refletir sobre o que são conceitos políticos e sobre como se dão nossos entendimentos ou divergências a respeito de suas definição e aplicação. Não adianta discutirmos sobre as exigências da “democracia” se eu e você temos em mente noções diferentes desse conceito. Nesse caso, a discussão não seria sobre democracia, mas sobre o uso correto da palavra democracia.

Então, precisamos compartilhar um conceito, de modo que nossas divergências sobre seu conteúdo sejam autênticas. E isso acontece, segundo Dworkin, quando concordamos — em geral, ao menos — a respeito dos critérios de identificação desses conceitos. Por exemplo, nós concordaremos a respeito de quantos livros há sobre uma mesa, ainda que se tenha alguma dúvida a respeito da inclusão de um panfleto — que também está em cima da mesa — nessa conta. Se a nossa discussão for sobre se o panfleto é ou não um livro, nossa divergência será apenas ilusória (continuaremos concordando com o número de coisas que há em cima da mesa). Será apenas quanto aos critérios de identificação[4].

Agora, a coisa muda de figura quando discutimos a respeito de conceitos políticos. Nós divergiremos, por exemplo, com relação à justiça da tributação progressiva, de forma genuína, mesmo que concordemos muito pouco com relação aos critérios que definem a Justiça de uma instituição. Sendo assim, e ainda de acordo com a leitura que Francisco Motta faz do jusfilósofo norte-americano, cabe uma distinção: alguns conceitos — como os conceitos políticos e morais — devem ser concebidos como conceitos interpretativos. Nós os compartilhamos porque dividimos práticas sociais e experiências nas quais eles aparecem. Esses conceitos descrevem valores; contudo, nós discordamos a respeito desses valores e da maneira como eles se expressam. Nós discordamos porque interpretamos as práticas que compartilhamos de uma maneira diferente: temos teorias diferentes a respeito de quais valores melhor justificam aquilo que aceitamos como características centrais ou paradigmáticas daquela prática. Essa estrutura faz com que nossos dissensos conceituais sobre liberdade ou igualdade sejam autênticos. E também fazem com que nossas divergências sejam mais valorativas do que sobre fatos ou sobre uso correto das palavras[5].

Eis o busílis: judicialização não é o mesmo que ativismo

Assim, insisto, não é o fato — tese primeira de Thamy — de o número de decisões em controle de constitucionalidade que declaram a inconstitucionalidade ser baixo em relação às denegatórias que invalida a tese de o STF judicializar a política ou praticar ativismos. Judicializar a política pode não ser exatamente o mesmo que praticar ativismos. Aliás, não é o mesmo. Tenho falado disso à saciedade, em Verdade e Consenso (Saraiva, 2011) e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica (RT, 2013). Se verificarmos bem, veremos que a judicialização é contingencial[6]. Ela não é um mal em si. Ocorre na maioria das democracias. O problema é o ativismo, que, para mim, é a vulgata da judicialização. Enquanto a judicialização é um problema de (in)competência para prática de determinado ato (políticas públicas, por exemplo), o ativismo é um problema de comportamento, em que o juiz substitui os juízos políticos e morais pelos seus, a partir de sua subjetividade (chamo a isso de decisões solipsistas). Parece que na pesquisa de Thamy ambos são tratados de forma idêntica (ou de forma alternada). Mais ainda, o fato de existirem mais demandas indeferidas que as que foram deferidas se deve também ao enorme contingente de legitimados (é muito fácil ingressar com ações no STF; a lista de legitimados é longa). Grande parcela de ações que tratam de questões constitucionais são fadadas ao fracasso ab ovo, por falta de requisitos formais. Quantas das ações catalogadas na pesquisa de Thamy foram fulminadas ab ovo? Ou que não provaram “relação de pertinência”? Outra coisa: difícil aferir a substancialidade dos processos, se analisadas apenas as ementas, que, por vezes, pouco dizem sobre o mérito.

Afirmar – como faz a autora – que o STF reforça a vontade majoritária do Poder Legislativo pode ser um enunciado que sofre de anemia significativa. Será que 14% de ações consideradas procedentes de uma produção legislativa de 21 anos é efetivamente pouco? Qual é o critério para o “pouco” ou “muito”? Não quero jogar com esses dados. Mas não afirmaria, tabula rasa, ou seja, com essa convicção de Thamy, que tais números representa(ri)am um reforço do legislativo.

Além disso, há casos que não entram na pesquisa da professora. Por exemplo, os mandados de segurança que o próprio parlamento busca junto ao STF… São muitos os casos, pois não? Embora a pesquisa não poderia tratar disso, porque o caso é recente, como entraria na base de dados a ação judicial da oposição para trancar a pauta da apreciação dos vetos, com liminar deferida pelo Min. Luiz Fux? Mas há outras ações anteriores a essa que não foram levadas em conta. Ativismo/judicialização não ocorrem apenas em ADIs e ADPFs (ou ADCs). São milhares de ações constitucionais (que não ADIs) que acirram a judicialização cotidiana. Um olhar nas manchetes do site do STF de 25 de outubro 2013 dá mostra disso: questionada lei de Pernambuco que obriga planos de saúde a informar descredenciamento; liminar suspende cobrança de dívida previdenciária de município capixaba; professores da UFC não terão que devolver verbas recebidas de boa-fé; decisão do TCU sobre teto salarial do legislativo é questionada; união questiona decisão sobre pagamento de diferença de subsidio a juízes federais; ministro declara extinção de crédito previdenciário cobrado do PI. Manchetes de um só dia da vida do STF… Ou seja: quantos desses casos se enquadram na definição de judicialização, de ativismo ou em efetiva jurisdição constitucional, isto é, quantos desses casos não se enquadram nem na judicialização, nem como ativismo?

Também não impressiona a circunstância — referida pela professora — de o STF se valer de sentenças interpretativas (interpretação conforme etc.) e que isso (também) reforçaria o papel da lei e do legislativo. Por isso a minha indagação: e se o STF, via interpretação conforme, fizer exatamente o contrário do que propunha o legislativo? Por exemplo, o parlamento nunca quis falar da regulamentação das uniões homoafetivas. Trata-se de um assunto que o parlamento, ao decidir não regulamentar, na prática o STF “regulamentou”. E o que fez o Judiciário nesse caso (ADPF 132)? Fez interpretação conforme para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, dando procedência da ação, atribuindo, inclusive, efeito vinculante. O STF fez algo inusitado: interpretou a Constituição em conformidade com o Código Civil. Ou seja, nem tudo o que parece, é.

A partir da diferença entre ativismo e judicialização e da relevante circunstância de que o STF não representa o estado da arte dessa fenomenologia deste país de proporções continentais, há uma série de pontos que não foram abordados e que deveriam fazer parte do debate. Não podemos olvidar que os Tribunais e o STF fazem política quando dizem que não fazem; eles fazem ativismo quando dizem que não fazem; e judicializam quando sustentam não fazer.

Por exemplo, quando o STF (veja-se que Thamy não analisou os milhares de Recursos Extraordinários, suprassumo do controle difuso!) decide — mesmo que mude depois —, que, no artigo 366 do CPP, a prova considerada urgente fica ao arbítrio do juiz decidir, está não somente fazendo ativismo, com a institucionalização da discricionariedade judicial, ponto importante para aferir o grau de ativismo e da judicialização, como também está “legislando”. Não parece que o legislador, ao estabelecer, nos marcos da democracia — e falo aqui de uma concepção hermenêutica —, que a prova considerada urgente possa ser colhida de forma antecipada, tenha “querido” deixar isso ao bel prazer do juiz… Bom, mas foi isto que o STF disse-que-o-dispositivo-“quer-dizer”[7].

E o que dizer quando o legislador institucionaliza o princípio (sistema) acusatório no Código de Processo Penal, mediante a aprovação de uma alteração significativa do artigo 212, o STJ e o STF negam validade ao dispositivo, sem qualquer arguição da inconstitucionalidade do novel dispositivo?[8] Simplesmente se negam a cumprir o dispositivo. Isso seria o quê na visão da autora? Ativismo, judicialização, decisionismo? O produto do legislador, neste caso, não está conspurcado pelo Poder Judiciário? E veja-se o alcance desse tipo de decisão (por todos, o HC 103.525 – STF). Diariamente, milhares de acusados — veja-se, pois, os efeitos colaterais de uma atitude ativista — têm seus direitos violados por falta do cumprimento de um dispositivo que trata de direitos fundamentais (no TJ-RS ocorrem centenas de casos envolvendo a discussão da validade do artigo 212 todos os meses; somente eu oficio em dezenas de casos mensalmente, buscando, sem sucesso, o cumprimento da produção democrática do legislador). E assim por diante.

Poderia trazer centenas de decisões que, por vezes, aplicam o formalismo jurídico (ou sua vulgata) como se estivéssemos no século XIX (ou no direito de antes de 1988), quando leis antigas são aplicadas à revelia da atual Constituição; e, ao mesmo tempo, não são poucas as decisões prolatadas de acordo com o livre convencimento do juiz. Aliás, a livre apreciação da prova ou o livre convencimento do juiz — e as inúmeras decisões que tratam disso (por exemplo, o recente processo da AP 470 que muito se utilizou da “livre apreciação das prova”) — seriam enquadradas em que conceito? Quando o STF diz que, com base no princípio da verdade real (sic), aplica a livre apreciação da prova, ele está praticando o que? Haveria algo mais representativo do ativismo que a utilização do mito da “verdade real”, pelo qual se decide de qualquer modo? Aliás, pergunto: a livre apreciação é compatível com a democracia? E se o STF (ou o PJ lato sensu) aplica essa livre apreciação ou o livre convencimento, estamos diante do protagonismo judicial… Sim ou não?

Por fim, concordo com Thamy quando diz que os problemas decorrentes do presidencialismo de coalizão se estendem ao Poder Judiciário. Estamos juntos nesse ponto (leia a coluna O Supremo, o contramajoritarismo e o “Pomo de ouro”). Com efeito, parece não haver dúvidas de que o STF vem julgando por argumentos de políticas e não por princípios (o que, por si, já demonstra um elevado grau de ativismo da Suprema Corte). Na verdade, ele atende aos vários segmentos, numa espécie de “presidencialismo de coalizão judicial”. Vejamos: os segmentos a favor das cotas raciais não manifestaram sua vontade política; pelo contrário, foram direto ao Supremo Tribunal reivindicar sua legitimidade. Do mesmo modo, agiu o segmento que pediu a equiparação das uniões estáveis homoafetivas ao casamento, que seguiu na cauda dos que clamavam pela constitucionalidade das atividades de pesquisa com células-tronco embrionárias, dos governadores, no caso das guerras fiscais, dos que pediam a descriminalização do parto antecipado de fetos anencefálicos, e até mesmo os moralistas, que fragilizaram a democracia pela defesa da Lei da Ficha Limpa e os parlamentares, que, pedindo ao Supremo, validaram quase 500 medidas provisórias inconstitucionais por consequência de uma modulação de efeitos. Mas essa concordância não isenta a ilustre professora das críticas feitas anteriormente.

Os números e “o elefante que se esconde atrás de uma formiga”

Como dito, o trabalho de Thamy é absolutamente relevante. Mas demonstra apenas pequena parcela do problema. Na verdade, ela não desmitifica os discursos sobre o ativismo e a judicialização. Apenas demonstra, por números de ações em controle concentrado, que, olhando os resultados dos julgamentos do STF, ele mais julga a favor do parlamento e do executivo do que contra, como se isso fosse uma simples contraposição de códigos (defere-não defere, como já referi anteriormente). Entretanto, esses números escondem os demais julgamentos do STF, por exemplo, as demais ações em sede de controle difuso e os Recursos Extraordinários. Há, pois, um elefante escondido atrás de uma formiga.

Mais do que isso, os números coletados colocam uma cortina de fumaça sobre o imenso contingente de julgamentos ativistas dos Tribunais da República, que vão desde o simples descumprimento de direitos fundamentais (ativismo às avessas, pois não?) até decisões descontroladas fornecendo xampu para crescer cabelo e decisões proibindo a caça com base no princípio da dignidade da pessoa humana. Por que, por exemplo, o STF é chamado a julgar milhares de Habeas Corpus todos os anos? Não seria porque a Constituição não está sendo cumprida nos demais Tribunais? Ou seja, o que é isto – o ativismo? O que é isto – a judicialização? O que é isto – a crise da representação?

Numa palavra: a pesquisa de Thamy é muito importante. Thamy está de parabéns! Tenho indicado o livro em todos os lugares que vou. Esse assunto deve ser debatido. À saciedade. E pela sociedade (e espero que pela sociedade aberta dos intérpretes da Constituição; por isso, a importância do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), ao qual tenho a honra de pertencer!).

Trata-se de um assunto em aberto. Muitos ácaros incrustados em milhares de autos de ações constitucionais, recursos extraordinários, agravos, agravinhos, embargos de declaração e infringentes (sim, nisso também pode haver ativismo, pois não?) ainda haverão de nos incomodar e nos causar alergias, até que tenhamos uma visão mais clara sobre a real dimensão do ativismo e da judicialização, que, efetivamente, não são coisas idênticas. Como estou folheando autos de processos neste momento (dois Habeas Corpus da 5ª Câmara Criminal do TJRS buscando o cumprimento do artigo 212 do CPP), já sinto os ácaros da sexta-feira, que costumam querer mudar de ares nos finais de semana, migrando para os romances que costumo ler nos intervalos dos textos da ConJur.

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Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.

Artigo publicado originalmente na revista Consultor Jurídico, edição 26/10/2013.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

Foto: Entardecer brasiliense visto do STF, por Gervásio Baptista/SCO/STF (17/09/2009).

Notas:

[1] Cf. POGREBINSCHI, Thamy. Judicialização ou Representação? Política, direito e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, Konrad Adenauer e Ed. Campus, 2012.

[2] Lembro aqui do aguilhão semântico de Ronald Dworkin (O Império do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 55-56).

[3] MOTTA, Francisco José Borges. Justiça aos Ouriços: um ensaio sobre Justice for Hedgehogs, de Ronald Dworkin (texto inédito).

[4] Dworkin dá outro exemplo: se divergimos a respeito de se um amigo nosso, que está perdendo cabelo, é ou não careca, apesar de concordarmos a respeito de quanto cabelo ele ainda tem, nossa divergência é falsa ou meramente verbal. Para o autor, os conceitos de livro ou de careca são conceitos criteriais: as pessoas em geral convergem a respeito dos critérios corretos para a sua aplicação e divergem, apenas, sobre algumas aplicações que consideram marginais. (DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2011, p. 158-159).

[5] O que não é o mesmo que dizer que conceitos interpretativos não podem ser definidos. A filosofia moral e política é, em grande medida, um esforço de definição destes conceitos. A questão é: já que qualquer definição de um conceito moral é uma peça de interpretação moral, qualquer definição será, invariavelmente, controversa. Idem, ibidem, p. 170.

[6] Sobre a diferença entre ativismo e judicialização, ver: VALLE, Vanice Regina Lírio do (org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de Análise Jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009; e TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

[7] Este e outros exemplos podem ser encontrados em meu: O que é isto – decido conforme minha consciência? 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

[8] Lembro, aqui, das seis hipóteses em que o Poder Judiciário pode deixar de aplicar uma lei, delineadas em meu Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. São Paulo: RT, 2013.



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