7.06.18

O protagonismo do Judiciário como causa de perda de legitimidade

 

Por Néviton Guedes

Nos dias que correm, já não representa qualquer novidade afirmar que a internet e as chamadas redes sociais instauraram um mundo mais complexo e paradoxal, resultante da indiscutível constatação de que o excesso de informação gera desinformação, da mesma forma que a multiplicação de valores os torna indistintos e sem importância. Os próprios meios e instrumentos de comunicação, que jamais foram tão numerosos e tão disponíveis, agora conformam um universo de pessoas e grupos que, na verdade, não se comunicam, mas apenas martelam pontos de vista preconcebidos, que, além de produzirem autoafirmação, acabam por multiplicar e perpetuar os desacordos.

Numa realidade social de sujeitos cada vez mais desorientados e perplexos, era de se esperar do direito e das instituições que o representam a capacidade de oferecer, com eficiência, um mínimo de estabilização de expectativas individuais e coletivas, de modo a permitir que as pessoas consigam estar no mundo e orientar suas vidas e comportamentos segundo alguma normatividade, prévia e racionalmente, disposta.

De fato, nas democracias modernas, entre as poucas convenções aceitas em geral pelos estudiosos do Direito Público, como se sabe, está a conclusão de que a função central do Poder Judiciário é a de pacificação dos conflitos sociais a partir da aplicação do direito aos casos controvertidos. A sociedade espera legitimamente que, através de uma decisão judicial, os conflitos encontrem um fim. É exatamente por isso que a ordem jurídica empresta às sentenças judiciais a eficácia preclusiva da coisa julgada.

Obviamente, a função de pacificação, alertam Martin Morlok e Lothar Michael, só poderá ser bem concretizada pelo Poder Judiciário, a longo prazo, se suas decisões forem aceitas pelos jurisdicionados como legítimas, quando e se eles sujeitarem suas disputas a um processo judicial (cito): “A jurisdição vive, portanto, como todo poder público exercido num Estado democrático de direito, da aceitação do povo (Akzeptanz des Volkes) como seu destinatário e simultaneamente seu soberano”.[1]

A aceitação do povo, bem entendida, não obstante implique a exigência de legitimidade das decisões judiciais, obviamente, não significa a figura de magistrados volúveis, que se inclinam com frequência para atender os humores de maiorias circunstanciais. A legitimidade das decisões judiciais e a aceitação que daí alcançam, em perspectiva mais alongada e de forma estrutural, só pode decorrer, numa democracia, da indiscutível submissão e conformidade dessas decisões ao Direito e à Constituição. De fato, quando revela eficiência e funcionalidade no desempenho de suas atribuições, o Judiciário certamente contribui para o incremento da função precípua do direito, consistente na estabilização das expectativas humanas, como instrumento de orientação de sentido de suas condutas futuras.

Em conclusão que entendo importante acentuar, retomando o que escrevi no artigo com o qual inaugurei a coluna Constituição e Poder, em 2012, o Judiciário, por tudo o que se disse, não pode, sem colocar em causa a sua funcionalidade, submeter-se ao desejo de abandonar o direito e desconsiderar as escolhas feitas pelo legislador, para garantir-se no exercício travestido de funções próprias da política e da moral. Para o nosso próprio infortúnio, contudo, temos que concordar com o célebre conservador norte-americano, magistrado e antigo professor de Yale, Robert H. Bork, ao afirmar que contemporaneamente tanto o Poder Judiciário como as faculdades de direito vêm lutando e sofrendo com a tentação da política[2].

No Direito, o momento da tentação da política, segundo Bork, é o momento da escolha, quando o operador do direito percebe que o seu ponto de vista de justiça, ou de moral, pessoalmente imperativo, não foi total ou suficientemente abrigado pela lei, ou em algum dispositivo da Constituição. Ele tem de escolher então entre sua versão de justiça e sua vinculação à norma de direito. Aqui, não é raro, o desejo de justiça, cuja natureza lhe parece tão óbvia, mostra-se muito mais concreto e convincente, enquanto o dispositivo da lei parece tão árido e abstrato, fazendo da abstinência à política um conselho insatisfatório[3].

Com o mesmo propósito de afirmar a necessidade de o Juiz não se submeter ao desejo profundamente humano de impor a sua justiça, a sua visão política e a sua moral pessoal em prejuízo da justiça, do juízo político e da moral objetivamente conformados na lei, outro conservador, Antonin Scalia, para muitos, a maior inteligência de sua geração, na composição da Suprema Corte norte-americana, em palestra proferida na Chapman Law School, em agosto de 2005, com graça e ironia, fazia a seguinte advertência aos magistrados:

se você pretende ser um juiz bom e confiável, você tem de resignar-se com o fato de que você nem sempre irá gostar das conclusões que você encontrará (na lei). Se você gostar o tempo todo (de suas conclusões), você provavelmente está fazendo algo errado[4].

Voltando-se ao caso brasileiro, entretanto, também não são poucos os que começam a suspeitar que as instituições nacionais, com o Judiciário à frente, perderam a capacidade de agir de forma funcional e estabilizadora para, usando de uma imagem hoje muito ao gosto do público, deixar de ser parte da solução e se tornar parte do problema.

E, de fato, em meio a um ambiente totalmente conturbado, parcela dos magistrados parece consentir e mesmo estimular a impressão de que, em busca de um protagonismo que se explicaria por um bem-intencionado voluntarismo salvacionista, deve-se abdicar, de forma consciente, do papel de terceiro desinteressado, que pretende habilitar-se a pacificar os conflitos dos grupos divergentes, precisamente, por sua distância e imparcialidade, para, então, promover, através e até mesmo em detrimento do direito posto, mudanças políticas e morais no comportamento das pessoas e no modelo de sociedade.

Em síntese, o Judiciário brasileiro, ao que parece, pela voz de alguns de seus mais respeitados magistrados, resolveu tomar partido, muito embora com o objetivo muito nobre – poucos discordariam – de fazer progredir a história em alguns de nossos mais recalcitrantes problemas nacionais (a corrupção à frente).

Entretanto, e essa é a dificuldade dessa opção nobilíssima, quando alguém se coloca a tarefa de transformar alguma coisa, deve ter em mente e vincular-se a uma direção certa e determinada. Isto é, deve escolher um lado para onde aplicará a sua força de transformação.

Por diversas e compreensíveis razões, contudo, é difícil convencer-se da ideia de que o magistrado que assume lado ou posição protagonista nos mais profundos e enraizados conflitos de natureza política, ideológica e ética de uma sociedade, tenha condições de arbitrar, com legitimidade, a solução para esses mesmos conflitos. Em termos acentuadamente simples, como nos esportes, quem quer ser jogador não pode pretender ser juiz da partida.

Diante da acolhida que a novidade parece, contudo, encontrar, pelo menos entre os chamados formadores de opinião (não são poucos os que flertam com a imagem do juiz-herói), a questão mais importante aqui nem é o de saber se deve o Judiciário despedir-se de seu lugar tradicional de recato e cautela, onde se coloca, exatamente, para credenciar-se a arbitrar as questões postas pelos lados em conflito, com o propósito, então, de assumir, de forma heterodoxa, o protagonismo das mudanças sociais. Não. O mais importante, parece-me, hoje, é saber se o Judiciário brasileiro será bem-sucedido nessas suas novas atribuições históricas.

Cuida-se antes, portanto, de perguntar, com seriedade e sem a paixão que as lutas pela evolução do mundo parecem inspirar, se os magistrados brasileiros, ao abandonar a função mais humilde e prudente de apenas pacificar – com a aplicação do direito – os conflitos sociais e, assim, oferecer estabilidade à ação dos verdadeiros protagonistas da sociedade (homens e mulheres, trabalhadores e empresários, eleitores e políticos, etc.), não correm o risco de acabar, em lugar de transformar a realidade para melhor, assistindo, deslegitimados e impotentes, à luta fratricida e eternizada dos interesses em conflito.

De meu lado, não obstante compreenda a boa vontade que inspira o movimento, apenas consigo ver perda e frustração. A diferenciação funcional do direito, destacando-o dos outros subsistemas sociais (exemplos: moral, economia, religião e política), é uma das maiores conquistas modernas das democracias ocidentais, pois foi ela que permitiu aos cidadãos saber o que esperar do Estado e o que Estado deles poderia exigir. No dizer de Niklas Luhmann, o direito tem a (relevantíssima) função de estabilizar normativamente as expectativas humanas e, numa sociedade cada vez mais complexa, caracterizada por um crescimento desorganizado (indeterminado) dessas expectativas, essa função só será adequadamente alcançada por meio de uma seleção (normativa) de tais expectativas[5].

Quando órgãos judiciários, contudo, passam a atender (expressa ou veladamente), com regularidade, expectativas sociais não selecionadas normativamente pelo direito, como são o caso de exigências essencialmente políticas, econômicas ou morais, estar-se-á esgarçando a diferenciação funcional do direito, que permitiu às democracias ocidentais uma de suas mais importantes conquistas: a previsibilidade na ação do Estado e da própria sociedade. A previsibilidade de suas decisões, além de virtude que legitima o afazer judiciário, é um de seus principais escopos. Se bem observarmos, toda a estrutura e a conformação do agir judiciário (vinculação substancial e formal do juiz à lei e à jurisprudência, a eficácia preclusiva da coisa julgada e o dever de fundamentação) voltam-se precipuamente à garantia de previsibilidade de suas decisões.

Não se trata, obviamente, de menosprezar os gravíssimos problemas que as demandas das modernas sociedades complexas colocam ao magistrado que, verdadeiramente, esteja comprometido com as suas funções. O juiz, quando revela honestidade de propósitos, vê-se permanentemente lacerado pela dificuldade de se submeter ao projeto maior de estabilidade jurídica e pacificação social, reafirmando o seu compromisso com as normas e os precedentes já conformados pelos tribunais, mas sem ter que se dobrar a decisões que lhe pareçam profundamente injustas, por, eventualmente, resultar apenas da confirmação pretérita de posições consolidadas.

Como escrevera, então, naquele artigo inaugural a que me referi, e peço licença ao leitor para insistir, ninguém prega, obviamente, o retorno a um legalismo formalista que reconhecia ao magistrado o papel absolutamente subalterno e desprezível de simples “boca da lei” (la bouche de la loi). O problema surge, contudo, quando a pretexto de realização maior da Justiça e de desígnios e valores sociais mais elevados, confere-se ao magistrado, e mesmo dele se exige, o poder de substituir a vontade política e a expressão de justiça do legislador – concretizada na lei – pela expressão política e a vontade de justiça do próprio juiz.

Essa ampliação heterodoxa das funções dos magistrados, entretanto, além das restrições de ordem estritamente jurídico-constitucional, encontra (ou deveria encontrar) limites de ordem funcional, pois nenhum sistema pode sobreviver a uma tão intensa indeterminação (aleatoriedade) de suas tarefas e funções. A indistinção funcional das decisões judiciárias faz com que o direito tenha que pagar o alto preço de não cumprir a sua principal função social, que é a de estabilizar normativamente as expectativas humanas.

A prevalência, nas decisões judiciais, de posições não selecionadas objetivamente pela Lei ilude o sistema jurídico, impedindo-o de estruturar consistentemente as expectativas humanas. A cidadania tem o direito de saber se o que vai ser veiculado numa decisão judicial é a concretização do conteúdo de um expresso de uma norma legal predisposta pelo legislador, ou a posição (política, ou moral) não revelada do magistrado e imposta ex post facto.

Para tudo resumir, parece óbvio que mesmo aqueles que sejam os beneficiários circunstanciais do resultado do ofício e do julgamento de juízes que se convertem em profetas de um novo mundo, com o passar do tempo, não depositarão muita confiança num modelo de magistrado que, abertamente, toma lado, posição e movimento, nas disputas e conflitos políticos e morais da sociedade. Aliás, acho que o fenômeno vai se tornando visível, pois, já se ouve aqui e ali a reclamação mais sensata daqueles que se ressentem do comportamento de juízes ativistas que, seja permitida a imagem, em vez de presidir a cerimônia e proclamar o casamento, parecem preferir tomar o lugar dos noivos.

Nada disso, obviamente, tem a ver com a indevida confusão entre neutralidade e imparcialidade do magistrado. O magistrado, como muitos já ressaltaram, não precisa ser neutro, mas deve ser imparcial. Mas sobre isso, seria necessária uma outra coluna.

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Néviton Guedes é desembargador federal do TRF-1, doutor em Direito pela Universidade de Coimbra e professor no UniCEUB.

Publicado originalmente na revista ConJur, edição 4.6.2018.

Foto: Nathalie/Flickr.

Notas:

[1] Martin Morlok e Lothar Michael. Staatsorganisationsrecht. Baden-Baden: Nomos, 2013, p. 358.

[2] Bork, Robert H. The Tempting of America. Versão Kindle, location 215-228.

[3] Bork, Robert. H. The Tempting of America, op cit, location 224.

[4] É a seguinte a citação literal: If you’re going to be a good and faithful judge, you have to resign yourself to the fact that you’re not always going to like the conclusions you reach. If you like them all the time, you’re probably doing something wrong.

[5] Luhmann, Niklas. Das Recht der Gesellschaft, Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1993, 1995, p. 60 e ss. Essa é a versão original (alemã). Para quem possa interessar há também a versão em inglês: Luhmann, Niklas. Law as a social system. New York: Oxford University Press, 2004, ver especialmente p. 152.



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