1.06.13
O papel do Senado no controle de constitucionalidade
Na sessão plenária do dia 16 de maio, o Supremo Tribunal Federal voltou a discutir a questão ligada ao papel desempenhado pelo Senado no âmbito do nosso controle difuso de constitucionalidade. A matéria começou a ser discutida ainda em 2007 quando o relator da Reclamação 4.335/AC, o ministro Gilmar Mendes, exarou o entendimento de que, em face de um número significativo de modificações (constitucionais, legislativas e doutrinário-jurisprudenciais) impingidas ao nosso sistema de controle de constitucionalidade, a competência deferida ao Senado pelo artigo 52, inciso X, da Constituição Federal teria sido submetida a um processo de mutação, trazendo ao tema uma nova conformação jurídica que, ao fim e ao cabo, daria às decisões da Corte tomadas em sede de controle difuso de constitucionalidade, efeitos gerais similares àqueles que são atribuídos às decisões do controle concentrado de constitucionalidade (artigo 102, parágrafo 2o da CF).
Ainda em 2007, outros três ministros votaram no referido processo. O ministro Eros Grau, já aposentado, perfilou o entendimento firmado no voto do ministro Gilmar ressaltando que, no caso em tela, ter-se-ia por manifestada uma mutação constitucional do artigo 52, inciso X, da CF. Para ele, o referido dispositivo teria se transmutado pela ação do tempo de modo que onde se lê “compete privativamente ao Senado Federal: suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”, dever-se-ia entender: “Compete privativamente ao Senado Federal: dar publicidade à decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal que declara, no todo ou em parte, inconstitucionalidade de lei”.
Já os ministros Sepúlveda Pertence, também já aposentado, e Joaquim Barbosa divergiram do relator firmando o entendimento de que a competência constitucional do Senado deveria ser preservada. Nesses termos, a decisão do Supremo Tribunal tomada em sede de controle difuso de constitucionalidade deveria continuar a produzir efeitos apenas entre as partes envolvidas no processo.
Naquela ocasião, o ministro Ricardo Lewandoswki pediu vista do processo, suspendendo o julgamento. Na sessão do dia 16 de maio de 2013, o ministro apresentou o seu voto no sentido do que foi defendido nos votos dos ministros Pertence e Barbosa. Sem embargo dos debates que tiveram lugar na referida sessão, o julgamento da reclamação 4.335 foi suspenso novamente após novo pedido de vista, agora do ministro Teori Zavascki.
O tema é complexo e extremamente relevante, uma vez que a decisão a ser tomada pela Corte na referida reclamação pode alterar radicalmente a conformação do nosso sistema de controle de constitucionalidade.
Entre 2009 e 2010, coordenei – juntamente com a professora Tayara Talita Lemos – uma pesquisa realizada a partir de um convênio firmado entre a Faculdade de Direito de Franca e a Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) que versava exatamente sobre o dilema enfrentado pela Reclamação 4.335. Na ocasião, cuidamos de analisar os argumentos esgrimidos num e noutro sentido. A conclusão de nosso trabalho espelhou, embora com diferentes argumentos, o resultado apresentado nos votos divergentes.
Naquele momento, existiam dois trabalhos – ricos em pesquisa e densos do ponto de vista teórico – publicados sobre o tema: o primeiro deles é o texto de Lenio Streck, Marcelo Cattoni e Martônio Barreto Lima (para ler, clique aqui). Nesse artigo, os autores apontaram – logo no alvorecer das discussões – que a tese da mutação constitucional do artigo 52, X, da CF não poderia prosperar.[1] Isso por um motivo muito claro: quando se fala em alteração informal do texto da constituição (ou mutação constitucional) está-se a falar em um processo de modificação nos indicativos de sentido que se projetam como horizonte a partir do texto. Nos termos defendidos pelos autores, fala-se da alteração da norma de um texto e não da alteração do próprio texto. A tese expressada nos votos dos ministros Gilmar e Eros ultrapassaria, portanto, os limites da jurisdição e avançaria em direção a uma verdadeira alteração formal do texto da Constituição. O outro texto, igualmente importante, é assinado por Nelson Nery Jr. e joga luz, depois de acalentada discussão em torno da literatura alemã produzida sobre o tema da mutação constitucional, nesse mesmo ponto: de que a tese da mutação implicava, na verdade, alteração formal do texto da Constituição, colocando em xeque as bases de um Estado Constitucional.[2]
É interessante perceber como, em seu voto, o ministro Ricardo Lewandowski, embora chegue a resultado similar àquele defendido pelos autores dos textos citados, não coloca em claras linhas esse elemento específico da questão: de que o dilema verificado aqui aparece no momento em que a Corte se apresenta com a possibilidade de realizar uma alteração formal no texto da Constituição e não uma simples mutação constitucional. O voto permite induzir tal sentido; dá pistas de que o seu autor censura uma atividade da jurisdição constitucional que acarrete exercício de competência constituinte. Todavia, prefere afirmar essas questões a partir de argumentos ligados aos limites interpretativos que a Corte deve obedecer no exercício da mutação constitucional que, certamente, estão implicados no problema, mas, na forma como colocados pelo ministro, têm o condão de retirar o caráter absolutamente político que revestiria uma decisão da Corte tomada no sentido de asseverar que o artigo 52, X, sofreu uma mutação constitucional nos termos defendidos pelos ministros Eros Grau e Gilmar Mendes.
O argumento do ministro Gilmar é ainda mais denso. Procura ele mostrar como, através de sucessivas modificações legislativas – tanto no âmbito da reforma da Constituição quanto no âmbito das reformas na legislação ordinária – agiu o legislador de modo a acompanhar um certo entendimento sedimentado na jurisprudência da corte no sentido de conferir efeitos ampliados às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal até mesmo em sede de controle difuso de constitucionalidade.[3]
Nesse sentido, afirma que a Lei 8.038/1990, por exemplo, já havia concedido ao relator a faculdade de negar seguimento a recurso manifestamente intempestivo, incabível, improcedente ou prejudicado ou contrário à súmula do STF ou do Superior Tribunal de Justiça (o caso das chamadas súmulas impeditivas de recurso). Já o Código de Processo Civil, reformado pela Lei 9.756/1998, incorporou disposição que amplia os efeitos das decisões na medida em que autoriza o relator a dar provimento ao recurso se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com a jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de tribunal superior (artigo 557, parágrafo 1o-A do CPC).
Poder-se-ia acrescer, nesse mesmo sentido, a introdução, pela mesma lei, de um parágrafo único ao artigo 481 do CPC que autoriza aos órgãos fracionários dos tribunais a dispensar a remessa ao plenário, com a instauração do respectivo incidente de inconstitucionalidade, nos casos de pronunciamento anterior do próprio tribunal ou do plenário do STF sobre a questão.
Todas essas situações legislativas, entre outros aspectos citados pelo ministro, levariam à necessária conclusão de que o legislador ordinário se encaminha no sentido de interpretar a Constituição num sentido que leva à transformação do papel desempenhado pelo senado no controle de constitucionalidade difuso. Cada vez mais os efeitos das decisões do Supremo Tribunal seriam ampliados de modo a transcender os casos nos quais elas são prolatadas (chama-se isso de efeitos transcendentes das decisões do STF).
Outro ponto lembrado pelo ministro diz respeito à introdução, através da Emenda Constitucional 45/2004, do instituto da Súmula Vinculante, previsto no artigo 103-A da CF. Nesse caso, segundo Gilmar, a súmula acabará por dotar a declaração de inconstitucionalidade – proferida incidentalmente, no âmbito do controle difuso – de efeito vinculante. Para a formação das súmulas vinculantes exige-se reiteradas decisões da corte tomadas em processos subjetivos, no interior dos quais a inconstitucionalidade é questionada de forma incidental e concreta, bem distinto, portanto, da lógica que preside o processo objetivo que caracteriza o controle concentrado. Logo, esse fator implicaria, novamente, transformação do sentido assumido pelo controle difuso de constitucionalidade no direito brasileiro, levando a uma alteração no significado da competência atribuída pela Constituição ao Senado Federal.
Sem embargo, continuo entendendo que é insustentável a tese da mutação constitucional do artigo 52, X, da CF. São igualmente inadequadas à Constituição as teses que seguem o mesmo sentido, colocando outros nomes para a mesma coisa (v.g. objetificação do controle difuso ou abstratalização do controle difuso).
No caso dos argumentos do ministro penso que é possível colocar, ainda, mais duas objeções:
Em primeiro lugar, existe uma clara tentativa de proceder àquilo que Canotilho chama, a partir Leisner, de interpretação da Constituição conforme as Leis. Nos termos propostos pelo mestre português: com essa técnica “insinua-se que o problema da concretização da constituição poderia ser auxiliado pelo recurso a leis ordinárias. Nestas encontraríamos, algumas vezes, sugestões para a interpretação de fórmulas condensadas e indeterminadas, utilizadas nos textos constitucionais”.[4]
No caso aqui discutido, a tentativa de levar a cabo uma interpretação da Constituição conforme as leis me parece evidente. Por isso, faço aqui apenas a reprodução das advertências lançadas pelo mestre português a tal tentativa de concretização da Constituição: “A interpretação da Constituição conforme às leis tem merecido sérias reticências à doutrina. Começa a partir da ideia de uma constituição entendida não só como espaço normativo aberto mas também como campo neutro em que o legislador iria introduzindo subtilmente alterações. Em segundo lugar, não é a mesma coisa considerar como parâmetro as normas hierarquicamente superiores da constituição ou as leis infraconstitucionais. Em terceiro lugar, não deve afastar-se o perigo de a interpretação da constituição de acordo com as leis ser uma interpretação inconstitucional, quer porque o sentido das leis passadas ganhou um significado completamente diferente na constituição, quer porque as leis novas podem elas próprias ter introduzido alterações de sentido inconstitucionais. Teríamos, assim, a legalidade da constituição a sobrepor-se à constitucionalidade da lei”.[5]
O caso das Súmulas Vinculantes é um capítulo à parte. De todo modo, o argumento corre contra a tese e não a favor. Encarando de um modo mais crítico o instituto – e não o ter como um dado dogmático e indiscutível apenas – a questão que se apresenta é outra: o caráter absolutamente estranho à nossa tradição ou família jurídica. A súmula não serve para apoiar a interpretação que defende a mutação do artigo 52, X, da CF porque, a rigor, ela mesma seria inconstitucional.
Os institutos jurídicos têm história. No caso do controle difuso, seu nascimento está indissociavelmente ligado ao direito estadunidense e à construção da judicial review. Como bem assinala Georges Abboud, por lá a decisão da Suprema Corte não tem o condão de revogar um ato do Congresso.[6] “Apenas Lei revoga Lei”, diz ele. No controle concentrado, de origem europeia/kelseniana, temos o inverso: a decisão do tribunal funciona como contra-lei. Tanto que Kelsen referia-se ao Tribunal Constitucional como um legislador negativo.
Os contornos teóricos e estruturais que conformam a Suprema Corte e os Tribunais Constitucionais europeus estão separados pelo Oceano Atlântico. A impressão que se tem, às vezes, é de que parte de nossa doutrina constitucional quer suprimir essa distância, criando um sistema que promoveria uma espécie de síntese dos dois modelos. As consequências disso não são apenas jurídicas, mas, acima de tudo, políticas. Nos próximos episódios de votação da Reclamação 4.335, o plenário do Supremo Tribunal terá que dizer qual é o papel do Senado no âmbito de nosso controle difuso de constitucionalidade. Terá que dizer se ele desempenha um efetivo papel como ator político ou se, ao contrário, a competência que lhe é reservada pela Constituição representa uma simples “folha de papel”. Aguardemos!
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Rafael Tomaz de Oliveira é mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor universitário.
Artigo publicado originalmente na revista Consultor Jurídico, edição 1º/6/2013.
Nota do blog: a retomada do julgamento da Rcl 4335 se deu no dia 16 de maio de 2013 (clique aqui para ver o andamento processual), e não dia 15, como retratado no texto original. A data correta foi corrigida no presente texto.
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr.
Notas do autor:
[1] Sobre o tema, Cf. também STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, em especial a introdução.
[2] Cf. NERY JÚNIOR, Nelson. Anotações sobre mutação constitucional – Alteração da Constituição sem modificação do texto, decisionismo e Verfassungsstaat”. In: Direitos Fundamentais e Estado Constitucional. Ingo Wolfgang Sarlet e George Salomão Leite (org.) São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.94.
[3] Tais argumentos aparecem expostos, também, na obra escrita em co-autoria com Paulo Gonet Branco Curso de Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, em especial pp. 1201 e segs.
[4] Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição 7 ed. Coimbra: Almedina, p. 1234.
[5] Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição 7 ed. Coimbra: Almedina, p. 1234.
[6] Cf. ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, passim.
Prezado Prof. Rafael,
Particularmente, entendo que a discussão a respeito dos efeitos das decisões do STF a partir da teoria da mutação constitucional, tem pouco sentido prático. Primeiro, pq é uma discussão estranha à nossa tradição jurídica, uma vez que foi importada acriticamente. Em segundo lugar, pq a sua utilização mais ajuda a confundir do que a explicar. Com efeito, é de conhecimento geral que o Direito, enquanto fenômeno cultural vertido em linguagem, acompanhará o desenvolvimento da sociedade da qual faz parte, seja pela alteração de sentido das palavras, seja pela alteração dessa mesma sociedade. Chamar isso de mutação constitucional, com todo o respeito, em nada contribui para a discussão. Pode-se discutir os limites da atividade judicial (o texto, o sentido, a lei, etc.), mas aí a discussão deveria tomar outro sentido (no sentido de direção, não de significado).
Além disso, não concordo com os argumentos levantados contra o fato de que a instituição das súmulas vinculantes esvaziou, em grande medida, a discussão. Primeiro, pq o não acredito que a interpretação da Constituição não se possa dar, tb, de acordo com a legislação ordinária. Antes, acredito que existe uma relação entre Constituição e lei que não é apenas unidirecional, mas circular, aquilo que Humberto Ávila chama de postulado da coerência. De outro lado, compartilho da opinião do velho mestre Calmon de Passos para quem “Maior escândalo é que se dê ‘sabedoria divina’ ao legislador constituinte e aos que ficarão incumbidos da tarefa de ‘fazer falar’ o mudo texto constitucional, quando os primeiros são escolhidos pelo mesmo povo que escolhe os legisladores ordinários e os segundos nem direta nem indiretamente necessitam de legitimação popular”.
Em segundo lugar, a discussão a respeito da “nossa tradição jurídica”, isto é, se civil law ou se common law, parece-me também, ultrapassada, seja pelo fato de que o Brasil nunca se filiou, integralmente, a nenhuma delas, seja pelo fato de que ambas têm caminhado no sentido de uma aproximação muito grande. Realmente, todas as alterações apontadas pelo Min. Gilmar Mendes são significativas da importância que os tribunais brasileiros tem ganhado nos últimos tempos. Não enxergar tal fenômeno é, para mim, ignorar uma tradição que está se formando.
[…] Fonte: Os Constitucionalistas […]