31.10.12
O Judiciário e a opinião pública: riscos e dificuldades de decidir sob aplausos e vaias
Nos últimos tempos estão sendo decididas pelo Supremo Tribunal Federal, em sequência inédita, diversas questões com grande repercussão política, moral e social. O tribunal tornou-se o centro das atenções e vem sendo submetido a uma intensa carga de elogios, de críticas ferozes e de pressões diretas e indiretas.
Não por acaso, a tensão que se estabelece entre a independência judicial e a opinião pública tornou-se o assunto do momento. De um lado, um grupo de analistas defende que os juízes não podem nem devem ser surdos à opinião pública. Precisam levá-la a sério e, em muitos casos, dela extrair a legitimação de suas decisões. O raciocínio embutido nessa visão é de que, como as instituições dependem do crédito público para preservar sua autoridade, virar as costas para as visões hegemônicas seria o passaporte para a deslegitimação e o enfraquecimento institucional.
De outro lado, há quem sustente que o que define um juiz independente é exatamente sua capacidade de decidir apenas segundo a lei e sua consciência, mantendo-se refratário às pressões externas e preservando a serenidade em face das vaias e dos aplausos. O Judiciário, como agente imparcial e cercado de garantias, deve estar apto a arcar com os ônus e desgastes decorrentes de decisões impopulares. Essa é sua função e seu encargo. A opinião pública não pode, portanto, ser um fator relevante na formação da convicção judicial.
Em termos práticos, todavia, nenhuma das duas visões pode ser levada às últimas consequências. Um tribunal refém da mídia e da opinião majoritária seria irrelevante. No pior cenário, tornar-se-ia um fantoche reprodutor das concepções dominantes, criando um ciclo nocivo e disfuncional que esvaziaria a autoridade da Constituição.
Já um tribunal totalmente hermético à pressão social corre o risco de ver sua autoridade corroída pelo descrédito, o que pode, em cenários patológicos de crise institucional, resultar no descumprimento das decisões.
Uma visão intermediária entre esses dois extremos, no sentido de que os tribunais devem ouvir a opinião pública, mas decidir segundo suas consciências, encerra um truísmo que não soluciona o conflito, mas o evidencia. Afinal, ouvir e não levar em conta a visão social seria inútil. Já ouvir e decidir sob o influxo da opinião pública deprecia o principal trunfo do Judiciário, que é justamente seu insulamento político e sua correlata capacidade de proteger os direitos de quem não tem o controle da visão majoritária. No longo prazo, um tribunal que acompanha sempre os clamores da plateia também tende a ter sua legitimação rebaixada.
Na vida real, o que acontece com grande frequência é um processo heterogêneo e complexo em que o Judiciário constrói estrategicamente sua imagem, podendo eventualmente ceder à opinião pública e em outras vezes manter-se imune a ela. As Cortes, assim como as pessoas, agem intuitivamente e tem senso de autopreservação. Colegiados são grupos humanos, e como tais podem agir segundo um cálculo da repercussão de seus atos, alternando períodos de recolhimento com outros de maior ousadia. Os juízes podem, ainda, revezar decisões impopulares com outras que aumentam seu crédito público, num processo de equilíbrio e compensação entre perdas e ganhos, que afinal pode ser ou não bem sucedido.
Num panorama tão complexo, não há como dar uma resposta binária à indagação sobre se o Judiciário pode ou deve ser permeável à opinião pública. O que é importante e decisivo no Brasil, hoje, é observar esses mecanismos de pressão que recaem sobre as Cortes, tentar entender como funcionam e buscar evitar que deságuem em desajustes institucionais. O tema é complicado e entrelaça aspectos jurídicos, da ciência política, da psicologia social e da teoria da comunicação. Jornalistas, juristas e cientistas políticos, ao tratar desse assunto, são forçados a enfrentar questões que escapam ao seu campo de expertise.
Tendo em conta essa dificuldade, o intuito do presente texto é apenas ampliar o espectro do debate, pois conclusões acadêmicas sobre o assunto dependeriam de pesquisas empíricas abrangentes. Buscarei, numa sequência de tópicos, levantar indagações que parecem importantes nessa reflexão, a qual por aqui está apenas começando a ganhar visibilidade.
As dificuldades de identificar a opinião pública
Em primeiro lugar, é útil avaliar criticamente o conceito de opinião pública. Em termos muito rudimentares, a opinião pública é definida como o posicionamento da maior parte (ou da parte mais influente) dos indivíduos de uma comunidade sobre um determinado assunto controvertido. É um conceito difícil porque seu alcance e implicações são distintos conforme as opiniões se manifestem de forma espontânea, ou sejam apuradas por pesquisas de opinião. A formação de uma ideia pode ser resultado da interação não planejada entre as pessoas. Pode também surgir da relação entre o público e os meios de comunicação de massa. Em certas situações, a opinião hegemônica dos cidadãos surge espontaneamente e, em sequência, é captada e vocalizada na mídia tradicional. Noutras ocasiões, diversamente, é a visão dos agentes controladores da mídia que influencia e determina a opinião da audiência. Nessa dinâmica, não raro se torna impossível apontar a origem da ideia tida por hegemônica e divisar a sempre lembrada diferença entre a opinião pública e a “opinião publicada”.
Já quando a posição popular é apurada por pesquisas – as quais, em tese, teriam o selo da imparcialidade e da objetividade – há o risco de serem produzidos resultados artificiais, seja porque quando indagadas sobre temas polêmicos as pessoas tendem a emitir julgamentos sobre assuntos sobre os quais não refletiram ou que desconhecem, seja porque o próprio processo de inquirição eventualmente sugestiona as respostas.
Tendo em conta todas essas dificuldades, determinar o grau de aprovação popular de uma decisão judicial não é tarefa fácil, pois que muitas vezes não será possível identificar com segurança a origem, extensão e a motivação das supostas opiniões sociais sobre o tema. Paralelamente, há inúmeros casos em que a função do Judiciário será a de tutelar direitos dos grupos sub-representados, marginalizados ou hostilizados na sociedade. Entender que em tal cenário os juízes devem observar a opinião social majoritária é negar a própria utilidade dos direitos constitucionais e da função de julgar.
A possível influência dos aplausos
É intuitivo que uma interação muito intensa entre Judiciário e mídia pode ser determinante no rumo de julgamentos e provocar distorções.
Normalmente pensamos na interferência da mídia a partir da crítica às decisões ou aos eventuais deslizes dos juízes. No entanto, assim como a recriminação, a celebração pela mídia de decisões que consagram certos entendimentos pode interferir na evolução da jurisprudência, ao motivar os julgadores a – consciente ou inconscientemente – reproduzir teses com ampla repercussão positiva nos veículos tradicionais.
Pense-se, por exemplo, nas teses que conferem um perfil absoluto ao direito à liberdade de expressão, que são sempre comemoradas e elogiadas pela imprensa. É interessante refletir sobre em que proporção o elevado grau de aprovação de uma opinião jurídica pela mídia pode, assim como a crítica, ecoar nos rumos da jurisprudência.
A mesma questão se colocar quando são julgadas questões criminais que geram ampla repercussão e expectativa de repressão estatal no meio social. É o que tem se chamado de publicidade opressiva do julgamento criminal (veja-se, sobre o tema, o livro de Simone Schreiber – A Publicidade Opressiva de Julgamentos Criminais, Renovar)
Em sentido semelhante, o culto à personalidade de determinados juízes pode contribuir para formação de estereótipos idealizados positivos ou negativos, o que abre espaço para o acirramento de conflitos internos, ensejando dificuldades adicionais no processo de formação de consenso nos órgãos colegiados.
Os riscos do maniqueísmo
De outro lado, quando a opinião pública (ou a publicada, ou ambas) posiciona-se de forma muito consistente e severa em favor de um dos lados da questão, o ambiente torna-se inóspito para um julgamento regular. Um exemplo emblemático foi a recente decisão do STF relacionada aos poderes de investigação do Conselho Nacional de Justiça. A gigantesca cobertura do tema e a cobrança exercida sobre o STF inviabilizava adiar o julgamento até o arrefecimento dos ânimos, naquele momento exaltados pelo embate travado na imprensa entre integrantes do CNJ. Por outro lado, o entendimento (pela subsidiariedade da ação do Conselho) que o STF já houvera adotado anteriormente em casos singulares sofreu forte oposição na mídia e, a prevalecer, geraria um severo desgaste na imagem popular – ou pelo menos na imagem midiática – da Corte. A decisão, seguindo o clamor da imprensa, conferiu poderes amplos e discricionários ao órgão de controle. Esse episódio foi emblemático, na medida em que induz à reflexão sobre se o Tribunal efetivamente decidiria daquela forma em condições normais, o que coloca em questão o quão eficiente uma ofensiva midiática pode se apresentar quando estão em pauta temas controvertidos.
A influência da elite intelectual e econômica
Outro ponto interessante do debate sobre o influxo da opinião pública nos julgamentos é saber quais segmentos sociais são os mais influentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, o cientista político Lawrence Baum faz o diagnóstico de que a Suprema Corte não se importa com a opinião da integralidade do povo norte-americano, mas leva em conta as visões de acadêmicos, jornalistas e outras elites.[1]
Se um cenário semelhante for constatado no Brasil (esse é um tópico que mereceria ampla análise empírica), teremos que concluir que a tese de que a reverência às pressões sociais amplia a legitimação da Corte é equivocada e falaciosa. Se apenas a elite intelectual e econômica é ouvida, o efeito das pressões externas pode ser exatamente o oposto, de reforçar o caráter contramajoritário e aristocrático da jurisdição constitucional.
O efeito silenciador das pressões externas
Se por um lado as pressões sociais podem ter o efeito positivo de aumentar o ônus argumentativo dos juízes, por outro, não raro, podem deflagrar uma artificial homogeneização de opiniões.
A recente unanimidade nos julgamentos acerca da união homoafetiva e da constitucionalidade do sistema de cotas, por exemplo, não refletiu o embate de visões que os referidos temas geravam no plano social.
Decisões unânimes em questões morais controvertidas sobre minorias possuem a inequívoca vantagem de reforçar a autoridade das decisões tomadas pela Corte, tornando mais improváveis eventuais resistências ao seu cumprimento e tentativas de correção da jurisprudência pela via legislativa.
Todavia, não deixa de ser inquietante que a heterogeneidade de visões sobre esses temas não tenha sido espelhada nas discussões travadas da Corte. Como bem ponderaram Diogo Werneck e Leandro Molhano em artigo sobre as recentes unanimidades:
…das duas, uma. Ou os ministros têm concepções extremamente parecidas do que significam esses espinhosos ideais constitucionais, ou a decisão do tribunal não reconheceu – e, portanto, não enfrentou – a multiplicidade de respostas possíveis.[2]
Como já dito, a unanimidade nos temas referidos gerou um benéfico incremento da autoridade da decisão, debilitando as potenciais críticas ao Tribunal pelos segmentos sociais que se posicionavam contra as teses adotadas.
No entanto, fica em aberto a questão sobre se a cobertura midiática e o televisionamento das sessões geram um efeito inibitório na exposição dos argumentos que tendem a ser minoritários no próprio Tribunal ou desaprovados na cobertura da mídia.
Esse ponto leva ao debate sobre a conveniência ou não da transmissão ao vivo das sessões, de que tratarei no próximo post.
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JANE REIS GONÇALVES PEREIRA é juíza federal, professora adjunta de Direito Constitucional da UERJ e editora do blog Estado de Direitos.
Artigo publicado originalmente no blog Estado de Direitos, edição 29/10/2012.
Foto: Fred R. Conrad/The New York Times.
Notas:
[1] “Why the Supreme Court Cares About Elites, Not the American People” (clique aqui para ler).
[2] “Quando a unanimidade não esclarece” (clique aqui para ler).
Parece que no caso da AP 470 prevaleceu a “opinião publicada” em detrimento da opinião pública.