30.05.15
O debate sobre fundamentação no novo CPC precisa ser menos corporativo
Por Rafael Tomaz de Oliveira
Dentre as diversas polêmicas que envolvem o novo Código de Processo Civil, aquela que me causa maior perplexidade diz respeito ao quiproquó envolvendo o parágrafo 1º do artigo 489. Desde a aprovação do texto no Senado uma série de divergências, levantadas em sua maioria por associações de magistrados, impugnaram o dispositivo sugerindo, inclusive, que fosse vetado[1]. Sem embargo, texto do referido artigo acabou sancionado integralmente pela presidência da república. A sanção presidencial, contudo, não acalmou os ânimos e, ao que parece, o debate continua a produzir mais calor do que luz, como pode ser depreendido do episódio ocorrido na semana passada em Congresso sediado pelo TRT da 2ª Região. Posteriormente, a organizadora do evento emitiu nota procurando esclarecer alguns pontos da notícia citada.
Serei simples e direto: minha perplexidade decorre do fato de que, ao que tudo indica, o tom da discussão acaba por denotar mais um problema coorporativo do que, propriamente, democrático. Do modo como vem sendo posta, a questão parece sempre opor advogados e juízes — de forma muito maniqueísta até — resultando em argumentos, com alta dose de senso comum, provenientes de ambos os lados (se aceitarmos a polarização do debate nos termos propostos acima). Sei que é um truísmo, mas é preciso dizer: além do advogado e do juiz existe, também, um outro personagem importante nesse teatro de ideias: o jurisdicionado. Para este último, cabe perguntar: o que o novo Código tem a oferecer? E a resposta, infelizmente, é: muito pouco. A garantia da decisão fundamentada (e, de forma correlata, da estabilidade, coerência e integridade da jurisprudência que representam importantes conquistas hermenêuticas) é um dos poucos elementos qualitativos que afetam diretamente o jurisdicionado.
Nessa medida, despiciendo dizer que o auditório ao qual se dirige a fundamentação das decisões é composto por uma plateia bem maior do que aquela formada por advogados e juízes. Seu destinatário é toda a República que exige, juntamente com a regra democrática, transparência nos processos decisórios bem como uma prestação de contas com relação aos elementos pré-compreensivos envolvidos no complexo processo interpretativo do qual resulta uma decisão judicial.
Por outro lado, a exigência de fundamentação, singelamente posta no artigo 93, IX da Constituição Federal, não existe por uma razão simplesmente instrumental. Não se exigem decisões judiciais fundamentadas para assim conquistarmos uma “melhora” no funcionamento da democracia. A fundamentação das decisões é, em si mesma, um valor democrático, compondo o núcleo daquilo que pode ser nomeado como democracia normativa. Independentemente de fazê-la funcionar de forma mais eficiente (do ponto de vista econômico, da produção) ou não, a exigência de fundamentação representa uma exigência insuperável, sob pena de darmos à democracia uma conformação meramente nominal.
Por isso, o argumento de que as exigências que decorrem do parágrafo 1o. do artigo 489 do novo CPC criaria um “engessamento burocrático” no poder judiciário, diminuindo a produtividade dos juízos e tribunais (algo que só se pode afirmar em perspectiva, uma vez que não existe nenhum dado empírico que possa ser usado para amparar uma tal posição), deve ser, de plano, afastado.
Sem embargo, e voltando para o episódio descrito na notícia em epígrafe, fiquei particularmente instigado com a afirmação, feita por um dos contendores do debate, de que a aprovação em concurso público tornaria inapropriado que algum tipo de exigência normativa estabelecesse o que deve ser posto nas decisões judiciais. A afirmação é tão problemática que pode ser embargada em diversas perspectivas de análise.
a) Em primeiro lugar, o argumento acaba sofrendo de uma espécie de contradição em looping, uma vez que, como se sabe, dentro da estrutura de nosso poder judiciário, existem determinados cargos que podem ser ocupados por pessoas que nunca sequer prestaram um concurso público para juiz substituto (todos sabemos que para ser ministro do STF, para ficar só neste exemplo, não se exige aprovação em concurso para a magistratura). Assim, se é o concurso o fator determinante para retirar o processo decisório realizado pelo órgão judicante da infringência de fatores externos (inclusive legais!!!), qual seria a justificativa para que este mesmo significado pudesse operar alguma consequência para aqueles julgadores, digamos assim, não concursados?
b) De outra banda, o texto do parágrafo 1º do artigo 489 do novo CPC não dispõe sobre “aquilo que o juiz deve pôr na decisão”, mas sobre aquela que não deve ser considerada uma decisão com fundamentação adequada. Trata-se de uma definição pelo negativo: o dispositivo não conceitua o que seja uma decisão fundamentada, mas afirma os critérios mínimos para dizer o que não é. Essa sutileza é importante, uma vez que existem muitos argumentos que não aceitam as condicionantes do referido artigo por entenderem que, por meio dele, restringe-se o campo de autonomia do judiciário, infringindo-se, assim, sua garantia de independência funcional.
Ora, o artigo não está dizendo como os julgadores devem construir suas decisões. Ele apenas procura deixar claro aquilo que não atende de forma suficiente, deixando desprotegida, uma garantia constitucional que, por sua vez, espelha um valor democrático.
c) Por fim, não podemos, em hipótese alguma, confundir o concurso público, que é um requisito para o ingresso na carreira, com o fator de legitimação para o exercício da função jurisdicional. Qualquer órgão jurisdicional deste país retira sua legitimidade da Constituição e deve estar comprometido com a rede de pré-compromissos que nela foram lançados. Inclusive a democracia e o valor em si que ela incorpora: a fundamentação das decisões.
O concurso tem conformações outras, recortadas inclusive com relação ao perfil de profissional mais desejado para o exercício da função. Não serve como prova definitiva de que o aprovado foi ungido pelo conhecimento do Direito e que, por isso, pode decidir seus feitos segundo critérios pessoais ou critérios carentes de justificação e transparência. O concurso representa simplesmente uma fórmula que possibilita, em tese, uma concorrência igualitária entre os pares e pretende atestar, de forma republicana, que os escolhidos para exercer aquela função são os que se prepararam melhor para os desafios que ela propicia. Se a fórmula consegue ou não atingir tal desiderato; ou se ela seleciona efetivamente os candidatos com maior aptidão para o exercício da função, são assuntos para uma outra discussão.
No caso aqui posto, há que se ter em mente que, noves fora as teses de aproximação entre o common law e o sistema romano-canônico, continuamos a ser um país com tradição jurídica filiada, preponderantemente, ao estilo cultural romano-canônico.
Nesse sistema, o juiz é um funcionário do Estado e tem uma relação com o legislativo bastante distinta daquela que se observa no common law. Este último modelo cultural já chegou a ser retratado como sistema da criação judicial do direito, em face do papel que o precedente desempenha na solução dos casos jurídicos. Para autores mais extremados, a função do parlamento ou do congresso seria de natureza meramente suplementar, sendo que a principal fonte do direito seria mesmo o precedente. Atualmente, as coisas são bastante diferentes. A legislação assume um papel cada vez maior, inclusive nesses países ligados à tradição do common law. De todo modo, independentemente disso, se aos juízes remanesce algum tipo de “protagonismo” (entre os estadunidenses há quem fale em “supremacia judicial”, por conta do plus que lá existe decorrente da judicial review) há que se ter presente que o processo de seleção é completamente diferente do nosso, além do fato de se deferir ao júri um papel significativo no processo decisório de um número expressivo de casos.
Nossa tradição, por outro lado, tem uma vinculação profunda com o caráter técnico da função jurisdicional e da necessidade de aderência ou ajuste das decisões à legislação. Vale dizer, para todos os efeitos, a fonte privilegiada e imediata do direito é a lei. John Merryman, analisando a tradição romano-canônica, faz esse elemento retroagir ao direito romano pré-imperial, no interior do qual a função do judex era a de um árbitro que preside o acerto das demandas mas não formula os parâmetros de sua própria decisão. Neste caso, as fórmulas que determinariam o pronunciamento do iudex seriam proporcionadas por um outro funcionário: o praetor. Sem embargo das necessárias reflexões acerca do tipo de historiografia que aqui se está a realizar, a construção da imagem não deixa de ser interessante: o juiz romano-canônico é, de alguma forma, um herdeiro do iudex e não do praetor[2].
Por certo, tanto a tradição do common law quanto a do direito romano-canônico possuem raízes culturais medievais que passam por um processo de ressignificação pelo Direito Político moderno. A tradição do constitucionalismo passa a exigir uma preocupação com a limitação do exercício do poder, construindo direitos que ficam a salvo do soberano, por um lado, e da vontade da maioria, de outro. Os fiadores destes direitos acabam sendo, de uma forma ou de outra, os tribunais.
Mas, o risco da autocracia, da tirania e da ditadura não desaparecem por meio da formulação desse esquadro funcional. Há que se ter sempre presente a necessidade de se visualizar claramente o exercício limitado do poder político. É esse exercício limitado que garantirá a legitimidade deste poder e nele poderá ser colocado o rótulo de democrático.
Mas, para isso, é preciso que esse poder “fiador dos direitos” seja exercido também de forma limitada. Isto só pode ser conseguido por meio da fundamentação. Daí porque é tão importante que estes elementos aptos a identificar uma decisão carente de fundamentação estejam postos claramente em nossa lei processual.
Em uma palavra final, importante tecer considerações a respeito da questão específica que vem posta no inciso IV do parágrafo 1o. do artigo 489 do NCPC, relativo à necessidade de enfrentamento “de todos os argumentos das partes”. O barulho que se ouve aqui diz respeito à quantidade de argumentos impertinentes ou inoportunos que são reproduzidos em escala industrial nas petições por meio da simples prática do Ctrl+C/Ctrl+V.
É preciso destacar, contudo, que a exigência do Código não diz respeito a todos os argumentos de forma absoluta. O que está posto no referido dispositivo é que não será considerada fundamentada a decisão que “não enfrentar todos os argumentos capazes de, em tese, infirmarem a conclusão adotada pelo julgador.” Parece-me evidente que o enfrentamento ou não dos argumentos situados nesse dispositivo demanda uma análise para saber se a decisão reconstruiu adequadamente toda a cadeia argumentativa necessária para o enfrentamento do caso, ajustando-a aos critérios formais e substanciais que se apliquem à questão.
Por outro lado, em uma democracia, todos os cidadãos merecem igualdade de tratamento e respeito por parte dos poderes constituídos. Isso é uma premissa básica que molda o Estado Constitucional contemporâneo. Assim, argumentos ruins ou impertinentes fazem parte do jogo. E, o mais importante, não podem ser sumariamente ignorados. Não por uma questão de atendimento de burocracias. Pelo contrário, a necessidade de enfrentamento de tais pontos decorre da necessária igualdade de condições em que estão inseridos todos os jurisdicionados. E note-se: nenhum argumento ou pedido pode ser considerado ruim de forma a priori, como parecem querer alguns discursos empenhados em destruir a pertinência do texto deste dispositivo. A determinação do que é bom ou ruim, pertinente ou impertinente, exige um necessário exame a posteriori. Desse modo, se já houve o enfrentamento – para avaliar a pertinência do pedido – por que não revelar, na fundamentação da decisão, os motivos pelos quais tal pedido deve ser considerado impertinente ou ruim do ponto de vista do direito? Parece-me que, neste ponto, o próprio senso comum apontaria para a oportunidade da disposição do futuro código. Não vejo burocracia nisto. Vejo apenas o cumprimento dos deveres de transparência e publicidade que a Constituição impõe a todos os poderes constituídos, não só ao judiciário.
Uma discussão de tamanha importância, central para nossa própria concepção de democracia, não pode ficar dependente de interesses de corporativos. A questão precisa ser posta em outro nível. Precisamos alcançar um ponto para que a discussão travada possa levar a um equacionamento minimamente científico, impessoal. Precisamos encontrar, então, um nível de leitura do problema que nos aproxime, mutatis mutandis daquela dimensão pretendida por Heráclito quando afirmava: “São sábios apenas os que escutam não a mim, mas ao discurso.”
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Rafael Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp).
Artigo publicado originalmente na revista Consultor Jurídico, edição 30.5.2015.
Foto: Kurrentschrift.
Notas:
[1] Esse movimento de defesa do veto do referido dispositivo levou a uma série de manifestações em sentido contrário. Lenio Streck e Dierle Nunes publicaram, nesta ConJur, importante texto neste sentido (clique aqui para ler).
[2] Cf. MERRYMAN, John Henry. La tradición juridical romano-canónica. México: Fondo de Cultura Economica, 1979, p. 68.