2.04.18

Magistocracia, a “gran famiglia” judicial brasileira

 

Por Conrado Hübner Mendes

A democracia brasileira depositou no Poder Judiciário parte das esperanças de transformação social trazidas pela Constituição de 1988. A aposta aliou um catálogo de direitos a um repertório de ferramentas processuais de efetivação. Essa espetacular missão, contudo, caiu no colo de magistocratas. A magistocracia é mais nociva do que o temido “governo de juízes”. Magistocratas não querem tanto o ônus de governar e responder por seus atos, pois preferem o gozo discreto de seus privilégios materiais e de status. Não ser incomodados em seu condomínio lhes basta: realizam-se no exercício de seus micropoderes privados, fora dos holofotes. Ali está sua concepção de vida boa.

A promessa de 1988 fracassou e a corporação judicial tem sua fração de responsabilidade. Permaneceu refratária à incorporação de princípios de controle e de transparência a sua estrutura e sua prática institucionais e ampliou modestamente o acesso à Justiça e o grau de pluralidade demográfica dos juízes de primeira instância. Resistiu quanto pôde às mais simples formas de abertura e prestação de contas.

Magistocratas vivem num mundo à parte. O processo de assimilação à corporação passa por uma eficiente anestesia ética: poucos têm tamanho contato, desde o andar de cima, com as mazelas do andar de baixo da sociedade brasileira; poucas instituições têm tamanha capilaridade e oportunidade de proteger os mais vulneráveis contra abuso do poder político e econômico; não há quem melhor pratique seu poder corporativo para pleitear gratificações nos métodos da baixa política. Pouco importa qualquer valor republicano ou ponderação de justiça desabonadores.

“Governo de juízes” é expressão hiperbólica que aponta usurpações de poder pelo Judiciário na separação de Poderes. “Ativismo judicial” é equivalente.

A magistocracia é distinta: corrói a cultura democrática e sua pretensão igualitária. Em geral, o debate público brasileiro sobre o Judiciário tende a se concentrar no que juízes fazem ou deixam de fazer no exercício da função jurisdicional. Um ângulo fundamental, mas insuficiente. Precisamos discutir quem os juízes são, de onde vêm, o que pensam, como vivem. Ao lado da dimensão política — o quantum de poder — há uma dimensão social — o quantum de privilégios. Esta é indispensável para observar a relação do Judiciário com a democracia.

A magistocracia tem cinco atributos: é autoritária, autocrática, autárquica, rentista e dinástica. Autoritária porque viola direitos (é coautora intelectual, por exemplo, do massacre prisional brasileiro); autocrática porque reprime a independência judicial (juízes insubordinados são perseguidos por vias disciplinares internas); autárquica porque repele a prestação de contas (e sequestra o orçamento público a título de “autonomia financeira”); rentista porque prioriza interesses patrimoniais (agenda corporativa prioritária); e dinástica porque incorpora, sempre que pode, os herdeiros à rede.

Nem todo juiz, obviamente, é um magistocrata, mas esse é o ethos institucional que os governa. Um Judiciário independente, competente e imparcial é indispensável à democracia. A magistocracia é adversária desse projeto. Juízes não são beneficiários passivos da desigualdade brasileira, pois ocupam lugar estratégico para sua manutenção e não desperdiçam a oportunidade.

A batalha pelo aumento salarial fantasiado de auxílio-moradia (com isenção tributária) é exemplo menor de uma patologia profunda. O líder momentâneo da causa é um magistocrata de raiz, o ministro Luiz Fux. Quatro anos — e mais de r$ 5 bilhões — depois, retirou o caso da pauta do STF e afirmou que a Câmara de Conciliação do governo federal vai buscar “saída de consenso” entre as partes. Pretexto malandro, pois não há partes a ser conciliadas diante de situação ilegal. A desfaçatez é a de sempre. Foi o mesmo ministro que, ao fazer lobby pela nomeação de sua filha de 35 anos de idade a desembargadora do Rio de Janeiro, dizia: “É o sonho dela. É tudo o que posso deixar para ela” (revista Piauí, abril de 2016). Deu certo. A família, claro, agradece.

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Conrado Hübner Mendes é professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo, na Escócia, e mestre e doutor em Ciência Política pela USP. É o autor do livro Constitutional Courts and Deliberative Democracy, publicado em 2014 pela Oxford University Press.

Publicado originalmente no site da revista Época, edição 2.4.2018

Foto: Phil Roeder/Flickr.



Um comentário

  1. Yulo disse:

    Prof. Conrado

    Concordo integralmente com a sua análise, porém o maior problema brasileiro é a relação entre os três poderes.

    Poder e dinheiro são, em qualquer lugar do mundo, a mola mestra da corrupção. Ninguém se corrompe por altruísmo. No Brasil, a corrupção transformou os 3 Poderes da República em parceiros do crime.

    O Executivo depende do Legislativo para aprovar as Leis, e o Legislativo cobra seu preço. Quanto mais difícil a votação, maior o preço a ser pago. Às vezes simulam até dificuldade de aprovação para aumentar o preço do apoio.

    O Judiciário depende do Executivo e Legislativo para aprovar indicações para os Tribunais Superiores e oferece, como moeda de troca, flexibilizar a interpretação das Leis (ao gosto do cliente) e fechar os olhos para os crimes dos políticos amigos. Quando não podem, pedem vistas e esperam o crime prescrever.

    O Executivo, por sua vez, é quem tem a caneta, é quem pode liberar verbas, é quem pode indicar Ministros do Tribunais Superiores. Cada ação é considerada não uma obrigação, mas um favor, e tem o seu preço.

    Ninguém se atreve a falar abertamente desta da promiscuidade. Ninguém se atreve a dizer que é esta promiscuidade que dá aos corruptos a certeza da impunidade, que garante a liberdade de políticos bandidos, enquanto o ladrão de galinhas apodrece na cadeia. Ninguém se atreve a mostrar que a corrupção cresce a cada dia porque alimenta-se desta promiscuidade.

    Para acabar (ou reduzir ao máximo) a corrupção é necessário, em primeiro lugar, não dar chances para este relacionamento promíscuo. A solução é simples: acabar com a dependência financeira (dinheiro) e de barganha (poder) entre os Poderes. Como? Orçamentos fixos para os 3 Poderes, reajustáveis de acordo com a variação do PIB do ano anterior.

    Cada orçamento deve ser considerado dentro dos mesmo percentuais, valores e obrigações considerados para o trabalhador em geral. O objetivo é ter valores justos, sem penduricalhos, sem excessos, mas suficiente para permitir que cada poder exerça suas atividades normalmente, atendendo às demandas da sociedade.

    Se o Judiciário quer premiar juízes por corrupção, concedendo-lhes aposentadoria 100% remunerada, se querem dar penduricalhos (auxílio moradia, auxílio livro, auxílio educação…), que deixe de fazer outros gastos ou tire de alguma outra despesa. Enfim, vire-se com o seu orçamento, como faz qualquer dona de casa.

    Se o Legislativo quiser aumentar a cota de emendas parlamentares (que estaria no orçamento do Legislativo), se querem aposentadoria integral, se querem verbas adicionais, que demita assessores, que demita aspones, que limite gastos para caber no orçamento. Se algum parlamentar quiser verba extra para alguma emenda, que se entenda com seus pares, mas não use seu voto como moeda de troca com o Executivo. Enfim, administre o seu orçamento, como faz qualquer trabalhador.

    Se o Executivo quiser criar 57 Ministérios, 15 Estatais, 300 secretarias especiais, que reduza as mordomias, que venda o Aerolula e compre um Embraer, que demita os aspones. Enfim funcione como qualquer empresa privada.

    Dessa forma acabamos com a promiscuidade entre os poderes. Nenhum Poder teria o que barganhar com o outro. No Legislativo, com seu orçamento variando com PIB, a maioria dos políticos deixará de lado o voto ideológico e, ainda que pense nos seus próprios benefícios, votará pelo crescimento do Brasil. O Judiciário, não tendo o que negociar, pode se tornar, de fato, independente (desconsiderando a compra de sentenças – isso dependerá de cada um). E ao Executivo, sem moeda de troca para dar, restará administrar, de fato, o País, deixando a politicagem para segundo plano.

    Como os Poderes não poderão, a seu bel prazer, lançar mão do dinheiro do orçamento, o Executivo poderia planejar corretamente, sem correr o risco de ver o Legislativo ou o Judiciário aumentar seu custo e ter que bancar este aumento. Como engenheiro, posso assegurar que um planejamento bem feito é o caminho mais curto para o sucesso.

    O grande problema é que nenhum deputado, senador, juiz, desembargador ou ministro quer acabar com a forma atual de se fazer política. É o toma lá dá cá que lhes garante toda a sorte de benefícios.