6.10.12
Ficha Limpa intensificou a judicialização da política
Neste domingo, dia 7 de outubro, todos nós, brasileiros, seremos chamados a exercer o sagrado direito do voto. Em tela, as eleições municipais. É oportuno — e até mesmo um exercício de “consciência cidadã” — discutirmos em sala de aula, ou em outros meios de propagação do conhecimento, sobre as questões jurídicas com as quais a sociedade brasileira estará envolvida por ocasião do pleito.
Vejo, por ampla divulgação nos mais diversos meios de comunicação, que o Tribunal Superior Eleitoral não conseguirá julgar, antes da realização das eleições, os milhares de recursos impetrados por candidatos aos cargos de vereador e de prefeito que discutem a interpretação da legislação eleitoral. Cientifico-me, ainda, que mais de dois milhares desses recursos dizem respeito a candidaturas que estão em situação de precariedade em face da discussão sobre o enquadramento e a aplicação, na hipótese, da Lei Complementar 135/2010 (chamada Lei da Ficha Limpa).
Assim, proponho aqui uma pequena reflexão sobre as causas desse dilema que pode levar o tribunal a alterar o resultado sacramentado pelo voto popular no domingo. Um caso emblemático que pode acirrar o debate acerca da chamada judicialização da política no Brasil.
Iniciarei, contudo, a partir de uma inversão na lógica de uma ironia machadiana.
A inversão do conto
Em 1881 Machado de Assis publicou, no periódico A Gazeta de Notícias, um conto chamado “Teoria do Medalhão”. A estória é a seguinte: um pai conversa com o filho na noite em que este atinge a maioridade civil. Durante o solilóquio, o homem procura expor para o seu primogênito a arte de um ofício infalível, que deveria ser cultivado ao lado das ocupações tradicionais, para que se obtenha o sucesso social. Trata-se do ofício de medalhão.
Embevecido pela autoridade com a qual o pai construía os seus argumentos, o filho quis saber de forma mais concreta em que consistia tal ofício. O pai, então, expõe, com objetividade admirável, que a atividade do medalhão consistia numa espécie de castração de ideias: “Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente.” Vale dizer, aquele que quiser ter sucesso na vida deve evitar contrapor-se aos seus convivas ou cansá-los com discursos grandiloquentes dotados de algum sentido científico. Nos termos postos por Machado, o medalhão pode até adornar o estilo e cultivar algum tipo de interesse pela cultura. Mas isso apenas na perspectiva do diletantismo; nada que possua a possibilidade real de questionar resultados ou constranger debatedores.
Na perspectiva de tornar ainda mais palatável o que se quer com o ofício de medalhão, o pai toma um exemplo para demonstrar suas razões ao filho: faz-se uma lei. Sua aplicação não produz o efeito desejado. Instala-se o mal. Indagado sobre o que fazer para resolver o dilema instalado pela falta de eficácia da lei um bom medalhão se valeria de uma frase feita, algo que fosse facilmente apanhado no âmbito do senso comum, que fosse sintética e transparente e que possuísse a capacidade de “entrar pelos espíritos como um jorro súbito de sol”. Para o contista, a frase em caso seria: “Antes das leis, reformemos os costumes.”
Pouco mais de um século depois, o ofício de medalhão certamente não caiu em desuso. Pelo contrário, é possível encontrá-lo dentro da própria universidade. Em alguns casos, há cursos que — pela estrutura curricular e matriz de ensino — acabam por formar medalhões.
Todavia, a frase que arremata o exemplo criado por Machado para demonstrar a hipótese do medalhão poderia ser adaptada aos tempos. De fato, parece ser recorrente no nosso contexto jurídico atual a ideia de que, a resolução de determinados problemas, não podem esperar por uma reforma dos “costumes”. Há que se fazer reformas nas leis. Ou criá-las. Na verdade, há um imaginário difuso que por vezes acredita que a lei é um meio hábil para resolver problemas da realidade.
Inflação legislativa
A ironia machadiana contida no conto permanece intacta. Porém, a sua lógica está invertida. Vejamos: Há um problema em nosso sistema político? O pluralismo partidário gera efeitos deletérios? O financiamento de campanhas abre espaço para a corrupção? Ora, de quem é a culpa? Claro que… é da Constituição. Mas qual é, então, a solução? Podemos, por exemplo, realizar uma mini-constituinte exclusiva, alteramos o texto da Constituição, retiramos de lá todos esses males e, num passe de mágica, resolvemos o problema. Teremos um sistema político novo. E o trânsito? Dizem que no Brasil os índices de morte por acidente no trânsito são maiores do que os das guerras do Afeganistão e do Iraque. O que faremos para melhorar tal situação? Uma lei, por certo. Assim, basta limitarmos a liberdade individual e fazermos a lei de “tolerância zero”, ou no caso, “quase-zero”. Menos motoristas bêbados, menos acidentes, menos mortes. Tudo ótimo. Só nos esquecemos de combinar isso com aqueles que, mesmo diante da proibição, continuam a bebericar dois ou três chopinhos depois do expediente. Outra hipótese: os cargos públicos eletivos estão tomados por candidatos desqualificados, bandidos contumazes, que se utilizam de vários artifícios jurídicos para postergar condenações judiciais e, com isso, permanecem no exercício de funções públicas eletivas? Como solucionamos isso? Resposta: Lei da Ficha Limpa neles…
Não se faz necessário muito esforço para perceber que esse imaginário medalhão acaba por tornar ainda mais complexos os problemas advindos da chamada “inflação legislativa”.
Como a própria denominação sugere, inflação legislativa significa um aumento na atividade legiferante de todo aparelho burocrático estatal. Com efeito, todas as esferas do Direito e as tradicionais disciplinas jurídicas passam por um momento de profundas transformações devido ao acontecimento de radicais mudanças em seus conteúdos estritamente legislativos. Aquilo que era amplamente discutido nos níveis políticos antes de ser incorporado como matéria legislativa, passa a ser rapidamente aprovado pelo Congresso no intuito de remediar situações concretas e imediatas que apontam para a exaustão do sistema ou para sua insuficiência diante de uma determinada realidade.
No âmbito do Direito Penal e Processual Penal, por exemplo, fala-se em expansão das leis penais e no surgimento de um Direito Penal Simbólico correlato. Isso porque, a insuficiência dos meios estatais para conter os problemas advindos da violência e da criminalidade são argumentos pressupostos para uma intensa atividade legislativa no sentido da construção de tipos penais voltados para proteção de bens jurídicos que escapam ao núcleo daqueles bens classicamente aparados pela tutela penal. Assim se segue um avanço de um processo criminalizador em relação a um grande número de condutas para cumprir apenas um efeito meramente “simbólico”[1].
Mesmo a Constituição não escapa desse processo de retaliação, e a cada ano se observa a realização de reformas via Emendas Constitucionais, sempre tendo como pano de fundo uma instabilidade institucional específica, cuja solução se encontra na reforma da Constituição. Tais reformas se expandiram de tal maneira que acabaram por criar quase que outro texto, paralelo àquele promulgado em 1988[2].
Aumento da judicialização
O aumento da atividade legislativa provoca, inevitavelmente, um aumento da intervenção do Judiciário em determinadas disputas sociais.
Veja-se, nesse sentido, o que estamos vivenciando por conta da aplicação da Lei Complementar 135/2010, que, na verdade, está sendo experimentada pela primeira vez no corrente pleito.
Isso porque, nas eleições de 2010, embora vários atores sociais se apressaram para postular a aplicação imediata da Lei Complementar 135/2010 — em vertiginosa infringência ao artigo 16 da Constituição Federal — o Supremo Tribunal Federal entendeu que, em face da regra constitucional da anterioridade das leis eleitorais, o referido diploma legislativo não poderia ser aplicado às eleições daquele ano. Naquela oportunidade, a decisão foi proferida de forma definitiva pelo Pretório Excelso já depois de exauridas as eleições.
Eis que nas eleições atuais, estando assentada — por decisão do mesmo Supremo Tribunal Federal — a adequação deste diploma legal ao texto da Constituição, o pleito esteja, novamente, em xeque. Note-se, portanto, que estamos vivenciando um problema em face da inevitável judicialização que ocorre a cada vez que se cria uma nova legislação. Explicarei isso melhor mais adiante. Por hora, é importante frisar que mais de 6.062 recursos aguardam julgamento junto ao Tribunal Superior Eleitoral. Desses mais de 6.000 recursos, 2.672 dizem respeito a aplicação da Lei Complementar 135/2010, sendo que, deste número, apenas 551 foram julgados.
O quadro apresentado é alarmante. Isso porque a própria ministra Cármen Lúcia, presidente do TSE, já admite publicamente que muitos desses recursos só poderão ser julgados depois das eleições. Daí o drama: o resultado das eleições, derivado do exercício da soberania popular, poderá sofrer alteração quando do julgamento desses recursos.
Novamente volta à baila, aqui, discussões acerca da judicialização da política e dos riscos que esse fenômeno pode gerar para uma democracia constitucional.
Entre 2010 e 2011, tive a oportunidade de coordenar uma pesquisa envolvendo alunos da graduação e que tinha por objeto o fenômeno da judicialização da política. Na verdade, o problema enfrentado por essa pesquisa foi o da diferenciação entre o fenômeno da judicialização da política e o fenômeno do ativismo judicial. Há uma tendência, no âmbito da produção científica do Direito, de aproximar esses dois fenômenos, de modo a torná-los quase que identificados.
Nossos resultados, todavia, indicaram a necessidade de dar tratamento à questão em sentido oposto, ou seja, o de que tais fenômenos são, na verdade, bastante distintos. Algo, aliás, que — é importante frisar — já vem sendo retratado em diversos trabalhos publicados recentemente sobre o tema[3]. Pudemos observar, por exemplo, que a judicialização possui um matiz mais sociológico. Vale dizer, suas causas são de natureza política ou social; enquanto que o ativismo judicial liga-se, especialmente, a um problema de postura interpretativa por parte do Poder Judiciário. Em outras palavras: a judicialização ocorre por fatores que não guardam relação direta com a ação do Poder Judiciário. São fatores contingentes, que se apresentam em razão da adoção de uma determinada política legislativa ou administrativa. Já o ativismo judicial decorre diretamente de um ato de vontade do Poder Judiciário. Como afirma Antonie Garapon, trata-se de um fenômeno que tem origem no desejo do julgador de operar algum tipo de mudança ou conservação de determinadas posições sociais.
A Lei Complementar 135/2010 é um bom laboratório para analisarmos essas situações. Vejamos: no momento em que ela é criada tem-se por introduzido um novo elemento a compor nosso tecido legislativo. Tecido este que já se encontra bastante alargado em face do problema da inflação legislativa. Uma nova lei implica a necessidade de composição interpretativa de seu conteúdo (nos termos propostos por Lenio Streck, implica aumento da “dimensão hermenêutica do Direito”). Essa composição interpretativa desaguará, inevitavelmente, no Poder Judiciário, que deverá se pronunciar sobre as mais diversas demandas que surgirão em face da interpretação de tal dispositivo. Nesse momento, uma questão política — que, em tese, seria decida através do escrutínio popular — terá sua decisão firmada em uma instância do Judiciário. Judicializou-se a política, pois. Note-se: até aqui, não há nenhum movimento por parte do Poder Judiciário. Pelo contrário, o que existe é uma política legislativa que procura, através da edição de uma lei, resolver um problema tido como patológico no seio da sociedade.
Por outro lado, no momento em que o Judiciário foi chamado a atuar por meio das ADCs 29 e 30 e da ADI 4.578 para se pronunciar sobre a (in)constitucionalidade da Lei Complementar 135/2010, o resultado da decisão pode ser tido como a manifestação de um ativismo por parte da Corte. Aliás, me parece ter sido este o caso. Não voltarei aqui aos motivos pelos quais partilho da convicção de que a chamada “Lei da Ficha Limpa” se apresenta como inconstitucional. Permito-me, contudo, remeter o leitor para Streck, Lenio. Oliveira, Rafael. O que é isto – as garantias processuais penais. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2012.
De todo modo, é sempre importante ressaltar que uma democracia se faz através da soberania popular e pelo respeito aos direitos fundamentais. Uma lei que pretende estabelecer os bons candidatos e separá-los dos maus candidatos (sempre lembrando que essa atividade depende de uma interpretação) acaba por estabelecer uma espécie de curatela social. Neste caso, o desejo do Supremo Tribunal Federal de se alinhar aos anseios populares — já que se tratava de uma lei de iniciativa popular — acabou por prevalecer diante da Constituição e da própria jurisprudência da Corte, no que tange à interpretação do princípio da presunção de inocência (que, ao final, acabou por ser considerado como regra!!! Sobre essa questão, leia aqui).
A reflexão aqui proposta não pretendeu — nem pretende — ressuscitar a discussão acerca da inconstitucionalidade da Lei Complementar 135/2010. Na verdade, em uma democracia constitucional, é fundamental que as decisões da Corte Constitucional sejam respeitadas. Tanto é assim que o constituinte estabeleceu a possibilidade da Reclamação Constitucional como remédio contra atos dos demais órgãos do judiciário ou da administração pública que descumprirem uma decisão do Supremo Tribunal Federal dotada de efeito vinculante (art. 102, I, l da CF/1988). Na verdade, o que se pretendeu mostrar foi que a incorporação desse mecanismo legislativo ao Direito brasileiro não representa uma panaceia para a resolução de uma patologia social, mas, ao contrário, traz consigo outro problema: o aumento de judicialização. Disso devemos retirar uma conclusão. A essa altura não podemos “chorar pelo leite derramado”. A situação peculiar que vivemos em relação a estas eleições e aos recursos a serem julgados pelo TSE são facilmente explicadas. É preciso, agora, vigilância para que aquilo que outrora foi tido como remédio não se constitua, agora, como doença.
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RAFAEL TOMAZ DE OLIVEIRA é mestre e doutorando em Direito Público pela Unisinos e professor universitário.
Artigo publicado originalmente na revista Consultor Jurídico, edição 6/10/2012.
Foto: Daniel Ferreira/CB
Notas:
[1] Neste sentido Cf. MELIÁ, Manuel Cancio. De nuevo: “Derecho Penal” del enemigo? In: Directo Penal em Tempos de Crise. Lenio Luiz Streck (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 17-26.
[2] Cf. BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial, a derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 23.
[3] Nesse sentido Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, em especial o posfácio. Ver também TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.