31.03.13
É hora de reinventarmos a interpretação constitucional
“É importante o modo como os juízes decidem os casos.” É com essa frase que Ronald Dworkin inicia a sua obra O Império do Direito, inserindo no debate da teoria do Direito a análise substantiva dos argumentos utilizados pelos magistrados na solução dos litígios. Observando o modo como grandes juízes da história norte-americana decidiram casos célebres, Dworkin rompe com a tradição positivista – que insistia na ideia de que nos casos difíceis os juízes possuíam discricionariedade, nos dizeres de Hart, ou criariam normas, nos dizeres de Kelsen -, sustentando que, em questões jurídicas complexas, os intérpretes ingressam em argumentação moral construtiva, lançando mão de princípios para justificar suas decisões.
Desde então, a teoria constitucional nunca mais foi a mesma. Se antes os constitucionalistas buscavam, primordialmente, estudar as estruturas de poder e os arranjos institucionais do Estado, atualmente o principal foco é buscar responder, a partir de uma perspectiva interna (do participante da prática jurídica), à seguinte pergunta: Como os juízes devem decidir os casos difíceis? Não por outro motivo, o estudo da interpretação constitucional ganhou destaque na doutrina e na jurisprudência nas duas últimas décadas. Técnicas de interpretação, princípios, ponderação e direitos fundamentais ingressaram de modo indelével no vocabulário dos advogados. Há um inegável encantamento pelo Poder Judiciário e por seus juízes Hércules, que, em virtude de sua capacidade de traduzir questões políticas em problemas jurídicos, tornaram-se os guardiões não só da Constituição, mas da moralidade pública em geral.
Se, por um lado, Dworkin teve os méritos de demonstrar que os juízes se utilizam de argumentos de moralidade política para julgar os casos constitucionais, por outro, o seu foco na argumentação judicial encobriu vários aspectos relevantes para a compreensão do modo como os tribunais operam dentro da engrenagem política de um Estado. De fato, a interpretação e os métodos constitucionais têm servido muitas vezes como uma cortina de fumaça para camuflar as relações de poder subjacentes às questões jurídicas, oferecendo “válvulas de escape” hermenêuticas. Quando o texto legal é claro, mas contrário aos anseios populares, invoca-se a “interpretação aberta” da Constituição para justificar determinado resultado. Quando o reconhecimento de certo direito produzirá impactos econômicos relevantes, ponderam-se os interesses e modulam-se os efeitos da decisão. Quando a causa defendida é de grande apelo social, invocam-se princípios de justiça substantiva. Quando se mostra necessária à manutenção de resultados impopulares, adota-se uma interpretação técnica e formalista.
Os julgamentos quanto à aplicação da Lei da Ficha Limpa às eleições de 2010 e à perda do mandato parlamentar em virtude de condenação criminal no caso do mensalão ilustram bem a insuficiência das teorias da interpretação para se compreender o funcionamento de nossa Suprema Corte.
No primeiro caso, julgado em 2011, a questão era saber se o artigo 16 da Carta Magna – que preceitua o prazo de um ano para que uma lei que modifique o processo eleitoral entre em vigor -, inviabilizaria a aplicação da Lei da Ficha Limpa às eleições de 2010, ano em que a ela foi editada. Os ministros Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Ellen Gracie e Ricardo Lewandowski, invocando a moralidade e a probidade administrativa, concluíram pela validade da legislação para as eleições de 2010. A maioria dos ministros, formada por Luiz Fux, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, apoiada na literalidade do artigo 16 da Constituição, decidiu que a aplicação imediata da referida lei feriria o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança.
Já no caso mensalão, julgado em 2012, o Supremo Tribunal Federal viu-se diante de outra questão constitucional envolvendo direitos políticos: os parlamentares com condenação criminal transitada em julgada perderiam automaticamente o mandato parlamentar ou seria necessária a deliberação do Congresso para sua cassação? A celeuma surgiu em razão de o artigo 55, parágrafo 2º, da Constituição Federal, preceituar que a perda do mandato, em caso de condenação criminal, “será decidida” pela Câmara ou pelo Senado em votação secreta, por maioria absoluta de votos. O ministro relator, Joaquim Barbosa, concluiu que a deliberação da Casa Legislativa possuiria efeito meramente declaratório, sem que se pudesse rever ou tornar sem efeito decisão condenatória proferida pelo Judiciário, no que foi acompanhado pelos Ministros Luiz Fux, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello. Já o ministro revisor, Ricardo Lewandowski, sustentou que tal solução feriria a literalidade da norma constitucional, voto que foi acompanhado pelos Ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Rosa Weber.
É interessante notar que, dentre os magistrados que participaram dos dois julgamentos, apenas os ministros Joaquim Barbosa e Dias Toffoli mantiveram-se fiéis aos mesmos cânones interpretativos. Enquanto o ministro Joaquim Barbosa adotou uma perspectiva moralista nos dois julgamentos, o ministro Dias Toffoli prestigiou o texto legal nas duas ocasiões. Já os ministros Luiz Fux, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello, que adotaram uma interpretação mais formalista no primeiro caso, rechaçaram a interpretação literal no segundo. Caminho inverso seguiram os ministros Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia.
Uma análise simplista desses casos, focada unicamente nos argumentos utilizados pelos ministros em seus votos, poderia levar à ingênua conclusão de que eles se contradizem. O que tais casos parecem nos revelar, contudo, é que as teorias da interpretação e da argumentação jurídica mostram-se insuficientes para se compreender o comportamento dos magistrados, principalmente em se tratando da mais alta corte do país. O contexto socioeconômico, bem como interesses políticos e pressões da mídia, inegavelmente influenciam o modo como questões jurídicas são decididas pelos tribunais. O impacto de fatores extrajurídicos nos resultados dos casos, no entanto, continua a ser um mistério para a teoria constitucional.
É inegável que os dois casos acima mencionados possuem manifesta repercussão política, o que pode ajudar a compreender essa variação de comportamento interpretativo. Enquanto a questão da aplicação da Ficha Limpa impactou diretamente o jogo de forças políticas – influenciando, por exemplo, de sobremaneira a disputa eleitoral ao governo do Distrito Federal -, o mensalão foi caracterizado pela mídia como “o maior escândalo de corrupção do país” envolvendo nada menos do que o partido governista. O estudioso que não levar essas circunstâncias em consideração e focar exclusivamente nos métodos interpretativos utilizados pelos magistrados fará uma análise apenas parcial e incompleta desses precedentes.
É preciso, pois, um “choque de realidade” no estudo do Direito Constitucional. Urge que sejamos menos abstratos e voltemo-nos mais para o estudo dos fatos e das consequências das decisões judiciais. Para se compreender realmente como os juízes decidem os casos parece agora ser necessário inverter o caminho percorrido por Dworkin, buscando analisar não como os juízes decidem, a partir de uma perspectiva interna, mas o que leva os juízes a decidirem da forma como decidem, a partir de uma perspectiva externa (de um observador das relações causais da prática jurídica). É necessário se compreender como o Poder Judiciário exerce o seu poder político, o que demanda respostas a questionamentos difíceis, como: Quem são os beneficiados e os prejudicados nos processos judiciais? Como determinados temas ingressam na pauta do Supremo Tribunal Federal? Por que determinados casos demoram a ser julgados, enquanto outros são rapidamente apreciados? Quais são os atores políticos que influenciam na escolha de tais temas? Quais fatores levam a uma mudança de jurisprudência? Qual a influência da mídia? Qual o impacto dos movimentos sociais na formação da opinião dos magistrados? Em suma, o que torna uma questão constitucional relevante para os membros da Corte e quais os incentivos que os levam a decidir de um ou de outro modo? Estas questões – que se aproximam mais do âmbito de investigação da ciência política e da história do que da filosofia – têm recebido pouca ou quase nenhuma atenção dos constitucionalistas.
Não se pretende questionar com isso que, conforme leciona Dworkin, os juízes devam decidir com coerência e integridade, respeitando os princípios e os compromissos institucionais previamente estabelecidos. Entretanto, muito se perde ao se atravessar do plano normativo para a realidade. O debate acadêmico a respeito da interpretação constitucional, que tem sido a tônica da teoria jurídica nos últimos anos, parece ter atingido o seu ponto de saturação, pouco tendo a acrescentar à compreensão dos constitucionalistas sobre o funcionamento da corte. O que os casos da Ficha Limpa e do mensalão parecem nos sugerir, portanto, é que a ênfase doutrinária na teoria da argumentação tem se mostrado insuficiente e limitadora, principalmente nos casos de grande repercussão, o que exige uma reinvenção da teoria constitucional. Tentar responder às perguntas acima formuladas já parece ser um recomeço promissor.
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JORGE OCTÁVIO LAVOCAT GALVÃO é procurador do Distrito Federal, mestre em Direito pela New York University e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo.
Artigo publicado originalmente na revista Consultor Jurídico, edição 30/03/2013.
Foto: In Focuz.
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Excelente texto. Claro, direto, sem reservas mentais. Creio que a necessidade de se inventar uma nova interpretação constitucional, nos termos em que pensada por Jorge Octávio Lavocat Galvão, exige que se traga de volta à cena jurídico-política a questão da presença – incontornável – dos fatores reais de poder no processo de realização constitucional. É que esses elementoss atuam antes da argumentação, levando os juízes a construir as premissas que darão suporte jurídico às suas pré-decisões essencialmente políticas. Por mais que essa afirmação cause incômodo aos descendentes intelectuais de Locke e de Montesquieu, o fato é que juiz decide primeiro e só depois, trabalhando
para trás (Jerome Frank), sai em busca de razões que justifiquem as suas opções, se possível, com vistosas roupagens retórico-argumentativas. Parabéns ao autor da matéria e aos responsáveis pela sua divulgação.
É um bom momento para introduzir no circuito acadêmico brasileiro as ideias do Barry Friedman!
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[…] – sob a responsabilidade do (permitam-me, nosso) Observatório (reproduzido no blog – clique aqui para ler) que defendia, de forma vibrante, a necessidade de reinventar a interpretação […]