26.05.10
Conversas acadêmicas: Luís Roberto Barroso (II)
Segunda parte da entrevista com Luís Roberto Barroso
Os Constitucionalistas: O STF pode se substituir ao legislador?
Luís Roberto Barroso: Eu tive esse debate com o meu saudoso e querido amigo Carlos Alberto Direito, o ministro Menezes Direito, que tinha uma posição doutrinária contrária à minha no caso das pesquisas com células-tronco embrionárias. Eu disse a ele: “É possível criticar severamente a opção do legislador, mas num Estado Democrático de Direito esta escolha era dele”. O ministro Menezes Direito não concordou, proferiu um voto memorável na ADI 3510, do qual discordo jurídica e filosoficamente, o que não me impede de reconhecer a qualidade do trabalho que ele fez e do bom papel que desempenhou no Supremo. Pois bem. Onde há um desacordo moral razoável, se o legislador fez uma escolha, e se esta escolha é uma escolha razoável, isto é, uma escolha que não é manifestamente incompatível com a Constituição, o Judiciário deve respeitá-la. Em um debate que participei na UnB com o juiz da Suprema Corte americana Antonin Scalia, um homem extremamente inteligente, mas também com uma visão extremamente conservadora do Direito e do papel do Judiciário, ele disse que considerava direito somente aquele criado pela Constituição ou pelo legislador. Se não tivesse sido criado pela Constituição ou pelo legislador, não era direito. Com esse argumento, ele considerava válidas as leis estaduais americanas que proibiam e criminalizavam as uniões homoafetivas. Eu discordei. O legislador deve ter a sua vontade respeitada, contudo, onde existe um direito fundamental, esse direito não depende do legislador. A escolha existencial sobre onde colocar seus afetos é um direito fundamental de qualquer pessoa.
OC: Os direitos fundamentais como limite ao legislador…
Barroso: O legislador não pode proibir uma pessoa de exercer sua afetividade da maneira que ela quiser. No caso debatido com o juiz Scalia, a opção do legislador de criminalizar uma relação homoafetiva violava um direito fundamental. Essa opção você não deve respeitar. Mas quando se trata de pesquisa com células-tronco embrionárias, que, no meu entendimento, não envolve direito fundamental, a escolha política feita pelo legislador é que deve prevalecer.
OC: Uma lei aprovada por uma maioria esmagadora no Parlamento é imune ao controle de constitucionalidade?
Barroso: Não. Uma lei pode ser aprovada por 90% do Parlamento e ser inconstitucional. O papel de uma Corte Constitucional, muitas vezes, é um papel contramajoritário. É impedir que as maiorias oprimam as minorias. Se 90% do Parlamento aprovar uma lei que não admite mais a existência do partido comunista, ou do partido evangélico, esta lei é inconstitucional. O papel contramajoritário de uma Corte Constitucional sempre pode ser exercido. Se numa sala houver oito cristãos e dois muçulmanos, os oito cristãos não podem deliberar jogar os dois muçulmanos pela janela. Por quê? Porque a vida democrática não é feita só das maiorias políticas. A vida democrática também é feita da preservação dos direitos fundamentais de todas as pessoas, inclusive das que integram as minorias.
OC: Devemos então ter cuidado com as maiorias legislativas?
Barroso: O exemplo que citei é para demonstrar que às vezes as maiorias podem estar erradas. Embora seja difícil, às vezes é preciso confrontar as maiorias. Hitler chegou ao poder na Alemanha com a maioria. Chávez exerce o seu poder na Venezuela com apoio majoritário. Todavia, eu não me impressiono com o apoio majoritário no nível de mobilização política que existe na Venezuela. O que me impressiona, e aqui a valoração não é política, mas objetiva, é um presidente da República, como é o caso brasileiro, ter 80% de popularidade. Isto é impressionante em qualquer lugar do mundo com imprensa livre. É um fenômeno incomum. Agora, ter maioria como o Getúlio Vargas tinha, manipulando o DIP, não me impressiona. Maioria como o Chávez tem, ameaçando e oprimindo a imprensa, não me impressiona. Eu não citaria o Fidel Castro porque ele é um fenômeno de outra época. É muito difícil você julgar uma pessoa fora da sua época. O grande problema do Fidel é que ele viveu demais, viveu para um mundo que não comporta mais o projeto que ele simbolizava. Um projeto, hoje, historicamente derrotado. Comparar o Fidel com o Chávez é uma injustiça histórica, uma manipulação que não posso concordar. Fidel Castro foi um líder de um tempo e de um mundo que passou. O projeto socialista, como o concebido pela esquerda da década de 1950 e de 60, foi, lamento reconhecer, um projeto que desaguou em autoritarismo e pobreza. Reconheço isso porque negar os fatos da vida não é uma boa forma de você lidar com eles. Na vida a gente tem direito à própria opinião, mas não aos próprios fatos. Há uma boa-fé objetiva que impõe você reconhecer que determinadas coisas aconteceram, mesmo que você preferisse que elas não tivessem acontecido.
OC: Os conservadores estancam a evolução da sociedade?
Barroso: Eu não gosto de formar nenhum juízo que desqualifique quem pense diferentemente de mim. Com isso, não acho que os progressistas sejam bons e os conservadores ruins, pois na vida a gente pode ser progressista para muita coisa e conservador para outras. Devemos ouvir com respeito e seriedade o argumento do outro. Eu não considero reacionário quem, em matéria de interrupção da gestação de fetos anencefálicos, ou de uniões homoafetivas, pensa diferentemente de mim. Eu fui socialista boa parte da minha juventude, mas minhas ideias não prevaleceram. Isso faz parte da vida. Uma lição que se deve aprender cedo na vida é que não se ganha sempre. É preciso saber ser humilde na vitória e altivo na derrota. Portanto, ser conservador ou progressista não é uma posição estática. Devemos respeitar as pessoas e situá-las dentro do seu tempo. A única posição que não deve ser tolerada é a intolerância. Ou seja, alguém que, por acreditar em alguma coisa, não admite que o outro possa ser diferente. A inadmissão do outro é uma conduta gravemente censurável. Todos os pontos de vista que não violem a dignidade da pessoa humana, que não sejam depreciativos em relação ao outro e que não se movam pela violência devem ser respeitados.
OC: Por que a história constitucional americana é importante para o Direito Constitucional brasileiro?
Barroso: Porque é uma história de sucesso. E histórias de sucesso as pessoas prestam atenção. No mundo contemporâneo, merecem destaque a história constitucional americana e a história constitucional alemã do segundo pós-guerra. São dois modelos cujo sucesso teve como um dos atores principais a Corte Constitucional. Daí a afinidade que temos com essas experiências, sobretudo quando assistimos ao crescente protagonismo do Supremo Tribunal Federal. Evidente que a vida de uma instituição não é feita só de acertos ou de momentos bons. Existem decisões da Suprema Corte americana que considero lamentáveis, como Dred Scott v. Sandford ou Bush v. Gore. Ainda assim considero a história constitucional americana uma história de sucesso.
OC: O Supremo Tribunal Federal, no biênio presidido pelo ministro Gilmar Mendes, pode ser comparado à Corte de Warren?
Barroso: Difícil comparar. Nos Estados Unidos, o presidente da Suprema Corte é nomeado pelo presidente da República para um mandato vitalício. Um Chief Justice pode então liderar por dez, quinze, vinte anos a Suprema Corte americana. Isso não acontece no Brasil. O mandato de presidente do STF é de apenas dois anos. Você não consegue assim identificar as decisões do STF com o ministro que o presidia na época, tal como aconteceu na Corte Warren, que antes de se tornar presidente da Suprema Corte americana era um político conservador.
OC: Earl Warren foi um político conservador?
Barroso: Conservador e um cara durão. Earl Warren foi procurador-geral na Califórnia, governador pelo Partido Republicano e quase vice-presidente na chapa do Dwight Eisenhower, que era republicano, anticomunista e também um cara durão. Contudo, quem ganhou a indicação foi o Richard Nixon. Como prêmio de consolação, Earl Warren foi nomeado presidente da Suprema Corte americana.
OC: Prêmio de consolação?
Barroso: Sim. Earl Warren não era um jurista, mas um político. Foi nomeado Chief Justice por um presidente da República conservador de quem quase foi vice-presidente. E o mais interessante: nomeado por causa de suas virtudes conservadoras, Earl Warren se tornou o Chief Justice mais progressista de toda a história da Suprema Corte americana. Eisenhower disse uma vez que cometeu dois erros na vida. Um deles, a nomeação de Warren. Earl Warren liderou uma revolução na Suprema Corte. Ele tomou posse em 1954, permaneceu na Corte até 1969 e produziu uma revolução progressista nos Estados Unidos. A começar pela primeira decisão, quando articulou a votação unânime do caso Brown v. Board of Education. Com essa decisão, a Suprema Corte acabou com a política de segregação racial nas escolas públicas, o que quase provocou uma revolução nos Estados Unidos. Essa decisão nos ensina também duas outras lições: muitas vezes o processo político majoritário é incapaz de proteger os direitos fundamentais e aí você precisa de uma Suprema Corte esclarecida e iluminista. O único problema do poder é que ele costuma agradar. É preciso então que esta vanguarda iluminista e esclarecida indispensável para dar determinados saltos históricos não presuma demais de si mesma, senão o que é virtude passa a ser vício e presumir demais de si mesmo é sempre ruim na vida.
OC: Os acórdãos do STF são o produto da soma dos votos individuais dos ministros, e não da construção argumentativa de pronunciamentos consensuais ou intermediários. É positivo esse modelo de deliberação?
Barroso: É um debate complexo. Hoje, o modelo de deliberação do STF é um modelo agregativo, não deliberativo. O agregativo é pior do que o deliberativo. O problema é que, para ser um modelo deliberativo, os julgamentos deveriam ser fechados, e eu creio que não é possível nem desejável voltar atrás. No Brasil, os tribunais debatem e julgam publicamente. Isso pode parecer natural, mas essa é uma circunstância brasileira. Em quase nenhum país do mundo o debate é publico. Você tem uma audiência, mas a deliberação é a portas fechadas, o que torna mais fácil produzir uma decisão deliberativa construindo consensos, pontes entre as posições. No caso do STF, além de ser público, o julgamento é transmitido ao vivo pela televisão, o que, evidentemente, não facilita as coisas. Eu gosto da deliberação pública e da transmissão pela televisão, mas esse modelo agregativo precisa ser repensado.
OC: Que outras mudanças são necessárias para o Supremo Tribunal Federal se tornar uma Corte verdadeiramente Constitucional?
Barroso: Penso que o Supremo deve julgar apenas mil casos por ano. A jurisdição constitucional, para ter a visibilidade e a qualidade desejáveis, precisa ser exercida às dezenas ou às poucas centenas. Uma Corte Constitucional não existe para julgar milhares de processos. Todas as Cortes Constitucionais do mundo escolhem a sua agenda e têm critérios para a seleção de casos. É fundamental também diminuir o número de competências do Supremo Tribunal Federal. Competências que não são competências constitucionais. E no momento em que você reduz significativamente processos e competências, você precisa de um sistema em que o voto do relator possa ser conhecido antes dos julgamentos. Isso é muito importante porque aprimora o debate e diminui o número de pedidos de vista. Além disso, acho que as sessões plenárias deveriam ser mais objetivas, com votos mais breves. Isso é muito difícil com a quantidade atual de processos. É que ser breve toma muito tempo de preparação. Na frase feliz de Clarice Lispector, “ser simples dá muito trabalho”. Por experiência própria, sei como é difícil, em uma sustentação oral, contar uma história, às vezes cheia de nuances e complexidades, em quinze minutos. Mas é como tem de ser. Acho que os votos não deveriam passar de vinte minutos. Não com um campainha tocando, mas como um critério convencional de autocontenção. Antes de morrer, o Ministro Carlos Alberto Direito, que era um juiz notável, um dos melhores que vi em atuação, e que era meu amigo, me disse: “Você não deve falar isso. Independentemente de ser certo ou errado, as pessoas não gostam de ouvir”. Eu disse a ele, carinhosamente, que considerava ser este o meu papel na vida pública: contribuir para o debate público e para aquilo que considero ser o aprimoramento das instituições. Agora, essa é a minha opinião. E eu respeito a dos outros. Não sou dessas pessoas que trafegam pela vida com uma mochila cheia de certezas e de verdades.
OC: O senhor foi sondado para ser ministro do Supremo?
Barroso: Nunca fui convidado. Se algum dia for convidado, e o meu nome for aprovado pelo Senado, aceitaria com muita honra. Mas nunca fui candidato, nunca tive uma articulação política para esse fim. Nunca foi meu plano A na vida. Eu vivo a vida que escolhi e me sinto feliz e realizado. Nunca senti falta de ter poder, poder formal. Quando me mudei para Brasília, muitos disseram: “Mudou para Brasília para ir para o Supremo”. Se fosse para isso, eu deveria ter ido para São Paulo. É de lá que sai a maioria dos Ministros. Há muitos anos eu já passava um ou dois dias por semana em Brasília, por advogar junto ao STF ou ao STJ. Minha mulher e eu decidimos mudar por uma razão simples: achamos que Brasília seria um lugar melhor para criar os nossos filhos, que estavam entrando na adolescência. Jamais nos arrependemos. Gostamos da cidade e das pessoas aqui. Para ir ou deixar de ir para o Supremo eu não precisava me mudar para Brasília.
OC: Quem o senhor indicaria para o Supremo?.
Barroso: Tenho dificuldade de dizer um só nome. Há muita gente boa Alguns que poderiam ocupar o cargo de ministro do Supremo, para ficar só na minha geração, são Clèmerson Merlin Clève, Luiz Edson Fachin, Luiz Fux. Mas a lista seria longa.
OC: Os professores Paulo Bonavides e Paulo Lobo Saraiva defenderam a necessidade de elaboração de um Código de Processo Constitucional. O senhor concorda com essa ideia?
Barroso: Em princípio, e por princípio, eu sempre concordo com o professor Paulo Bonavides. Mas eu precisaria estudar o tema e uma eventual proposta. Uma ideia que eu defendo, e considero importante, é a elevação da importância da jurisprudência e dos precedentes no direito brasileiro. Acho que em uma sociedade de massas e de elevado grau de litigiosidade, é preciso dar maior dignidade à jurisprudência e criar uma cultura geral de respeito, de vinculação aos precedentes estabilizados. Considero isso um imperativo da segurança jurídica, da isonomia e da eficiência do Poder Judiciário. E acho importante que os próprios Tribunais, inclusive o STF e o STJ, tratem com cuidado e com carinho a sua própria jurisprudência. Se a jurisprudência vai ser vinculante de uma maneira geral, ela tem que ser estável.
OC: Hoje isso não acontece?
Barroso: Há um caso no Supremo em que havia uma decisão do plenário por 9 a 1, mais de 50 decisões monocráticas e decisão de uma das turmas em determinado sentido. Um dia o plenário mudou e disse que a jurisprudência não estava consolidada. Em qualquer país do mundo, uma decisão com 9 a 1 do plenário da Corte Constitucional fixa a jurisprudência. Ponto!
OC: O Brasil ainda tem de amadurecer em muitos sentidos, não?
Barroso: O Brasil começou a ingressar no mundo moderno em 1808, com a vinda da família real. Antes disso, os portos eram fechados, não havia escolas, nem estradas, nem moeda e 97% da população era de analfabetos. Nós começamos tarde. O Brasil é um país muito jovem do ponto de vista do processo civilizatório. Mas nesses 200 anos desde a vinda da família real percorremos um caminho extenso. A história brasileira é uma história de sucesso. Árduo, sofrido, difícil, mas de sucesso. E, nos últimos 21 anos,sob a Constituição de 1988, percorremos e superamos diversos ciclos do atraso institucional. Hoje temos uma democracia estável, com alternância no poder e absorção institucional dos conflitos políticos. Isso em um país cuja história sempre fora marcada por golpes e quebras da legalidade constitucional. Só quem não soube a sombra não reconhece a luz.
OC: Sempre que alguém quer mostrar que somos atrasados, cita os Estados Unidos. Na área jurídica não é diferente.
Barroso: A comparação com os Estados Unidos nos é extremamente injusta por duas grandes razões. A primeira, porque nós começamos muito depois, mais de um século e meio depois. A colonização americana, feita por pessoas que foram para lá com suas famílias para se estabelecerem, remonta a meados do século XVII. A civilização brasileira só começa de verdade no início do século XIX, com a vinda da família real, como observei antes. A segunda razão é que os Estados Unidos foram herdeiros da tradição inglesa, uma tradição milenar, que construiu a ideia de poder limitado e de rule of law ao longo dos séculos, começando com a Magna Charta, de 1215 e culminando com a primeira grande revolução liberal, em 1688. Nós somos herdeiros, com todo o carinho que nós temos por Portugal, de uma tradição autoritária de um país que se atrasou na história. Portugal foi a última nação da Europa a acabar com a Inquisição, o tráfico de escravos e o absolutismo. Portanto, nós começamos atrasados e percorremos um longo caminho. Mas o amadurecimento toma tempo. Considero que 21 anos é um tempo curto para uma democracia e nós percorremos um longo caminho neste período. Temos nos saído bem. Eu tenho pouco mais de 30 anos de vida adulta. Nesse período, o Brasil só melhorou. Não melhorou na velocidade ou na intensidade que eu gostaria, mas só melhorou.
OC: Se o presidente da República não extraditar Cesare Battisti, temos um risco de haver uma crise entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário?
Barroso: Não vejo essa possibilidade. Só se for uma crise artificial. E essa fase, nós já superamos. Eu fui, como sabem, o advogado na fase final do processo: fiz os memoriais e a sustentação perante o STF. Portanto, não gostaria de me apresentar como um comentador imparcial da questão, o que não seria verdadeiro. Mas eu considero o Direito, como prática profissional, um exercício de racionalidade. Ou seja, eu não me apaixono pelas causas. Eu me empenho, faço o melhor que posso. Vale para qualquer causa. O nepotismo e as pesquisas com células-tronco foram causa bonitas. A anencefalia é uma boa causa. Gosto de participar, mas eu não me apaixono. Ressalto isso porque sou capaz de olhar com serenidade para essas discussões. E, com o respeito devido e merecido, o Supremo errou no caso Battisti.
OC: Errou tecnicamente?
Barroso: Errou do ponto de vista político e errou do ponto de vista técnico. Errou do ponto de vista político ao sobrepor a sua valoração política à do ministro da Justiça. Eu trabalho perante o Supremo, os ministros são pessoas que eu quero bem. Por isso, faço essas observações com muito respeito. Mas a decisão não foi boa. Foi um exercício de poder, mais do que um exercício de interpretação jurídica.
OC: E do ponto de vista técnico?
Barroso: Dizer que a decisão de concessão de refúgio político é um ato vinculado não está correto. Com todo o respeito que merecem os 5 votos altamente qualificados que sustentaram diferentemente, o conceito de perseguição política não pode ser visto com algo vinculado, porque é impossível. Sempre haverá uma valoração subjetiva. Para sustentar juridicamente a posição de anular o ato de refúgio, a tese razoável, com a qual eu não estou de acordo, seria dizer: “Ainda quando seja o ato discricionário, o pressuposto de fato do ato tem que existir, porque se o pressuposto de fato não existir aí o ato é inválido”. Por esta razão, e não por dizer que é vinculado. Mas o pressuposto de fato, perseguição política, é uma valoração política.
OC: Battisti é inocente?
Barroso: A Itália, embora tenha preservado a sua democracia e mereça admiração por isso, fazia julgamentos coletivos, sob pressão política muito intensa, em um clima em que a delação premiada libertava os que colaboravam e desgraçava os que eram revés. A legislação permitia que as pessoas ficassem presas preventivamente, sem culpa formada, por mais de três anos. Um regime de exceção. Cesare Battisti foi acusado por todos os que se beneficiaram por imputar a ele todas as culpas. Rememoro brevemente o caso. Ele participou de um grupo de extrema-esquerada entre 1976 e 1979. O grupo pregava a derrubada do regime político italiano, opunha-se à aliança entre os comunistas e a democracia-cristã e foi acusado de operações das quais resultaram quatro mortes: dois policiais e dois militantes de extrema-direita. Desbaratado o grupo em 1979 e presos os seus membros, foram levados a julgamento. Battisti não foi sequer acusado de qualquer das mortes. Outras quatro pessoas foram condenadas por homicídio. Ele foi condenado a 12 anos de prisão, por participar de organização subversiva e cumpria pena em presídio para condenados não perigosos.
OC: O que aconteceu depois?
Em 1981, um dos principais líderes do grupo – Pietro Mutti –, que não havia sido preso ainda, ajudou-o a fugir da prisão. Battisti, então, refuigou-se no Mexico e, depois, na França, onde o Presidente François Miterrand dava abrigo aos militantes de esquerda que houvessem abandonado a luta armada. Depois de ele estar fora e em segurança, Pietro Mutti é preso e acusado de participação nos homicídios. Ele se torna arrependido e delator premiado e transfere a culpa dos quatro homicídios a Battisti. Os quatro militantes que já haviam sido condenados confirmam essa acusação. Diante disso, reabre-se o processo contra Battisti, ele é julgado e condenado à revelia, e pega prisão perpétua. Todos os outros acusados estão soltos, já que transferiram a culpa para ele. A história é péssima. Cesare Battisti é o bode expiatório dos anos de chumbo italianos. Mas eu quero aqui enfatizar que eu compreendo e respeito as pessoas que têm uma posição diversa. Que dizem: “Foi julgado na Itália e condenado, e não há razão para eu rever isso aqui no Brasil”. Não concordo, mas respeito. Quem trabalha com o Direito tem que aceitar a relatividade da vida e aceitar que as pessoas possam pensar de maneira diferente.
OC: Nem por este caso o senhor se apaixonou?
Barroso: Não. Eu estudei o caso previamente, antes de aceitá-lo e convenci-me da justiça da causa. Não trabalhei por ideologia ou por honorários, e sim, porque achei que era um caso justo. E continuo a achar. Mas houve uma diferença nesse caso. Eu normalmente discuto teses jurídicas, que lidam com questões morais, políticas ou econômicas. Nunca havia tido um caso em que da minha atuação dependesse a vida e a liberdade de uma pessoa física. Um escritor, um pai de família. Então, do ponto de vista pessoal, esse caso me trouxe um tipo de envolvimento que eu nunca havia vivenciado. Foi uma experiência de vida. Mas, com toda franqueza, eu não pretendo repeti-la.
[…] This post was mentioned on Twitter by Mirna Sarmento, Mirna Sarmento, Carlos Vinícius, Carlos Vinícius, Constitucionalistas and others. Constitucionalistas said: SEGUNDA parte da entrevista com Luís Roberto Barroso: http://migre.me/IzMp […]
Excelente entrevista! Parabéns a vocês do blog pela iniciativa e ao grande Doutor Luís Roberto Barroso pela excelência do conhecimento que nos brinda!
Excelente entrevista e material de estudo. O professor Luís Roberto Barroso fez uma valiosa digressão pela história do direito constitucional americano.
Parabéns novamente aos CONSTITUCIONALISTAS.
Para mais detalhes dos casos “Bush vs. Gore” e “Brown vs. Board of Education”, ambos mencionados, indico passeio pelo blog Direito Constitucional Americano, do professor Alonso Freire.
Disponível em: http://www.direitoconstitucionalamericano.com/
Abs.
Ótima entrevista, que mais pareceu uma aula. Certamente, teremos o douto Luís Roberto Barroso como um de nossos ministros do STF. Parabéns à pessoa que conduziu a entrevista, pois soube aproveitar ao máximo a oportunidade colher relevantes informações para êxito de seus leitores.
Vocês, tenham certeza, conquistaram mais um seguidor para Os Constitucionalistas.
A propósito, gostaria de sugerir a feitura de entrevista com o grande constitucionalista e juiz federal, Dr. George Marmelstein Lima, o qual tem ideias interessantíssimas e parece ser bastante acessível. Ele possui um conceituado blog, do qual deixo o endereço: http://direitosfundamentais.net/
Senhores, já sou um seguidor deste, e, principalmente, fico bastante feliz com uma entrevista clara que nos incentiva a prosseguir o caminho do direito.
Parabéns.
Sou, muito felizmente, aluno do professor Barroso na UERJ e essa entrevista é bem a cara dele. Sempre brincalhão, no bom sentido e, possuidor de grande conhecimento,além de excelente argumentação.
Entrevista marcante, parabéns pelo Blog.