Os Constitucionalistas
24.03.10

Conversas acadêmicas: Gilmar Mendes e a Jurisdição Constitucional (II)

OC: O que é o ativismo judicial?

GM: A expressão “ativismo judicial” geralmente é associada a um juízo negativo de que o Judiciário está extravasando os limites, está produzindo decisões fora dos paradigmas ortodoxos, está usurpando atribuições de outros Poderes, como o Legislativo ou Executivo. É claro que o próprio papel do Judiciário, ao longo dos anos, vem sofrendo mudança. A concepção do Estado Social faz com que haja uma outra perspectiva, um outro tipo de provimento e isso às vezes é tipificado como ativismo. Não é uma sentença apenas que reconhece o direito ou que não reconhece o direito, mas que determina um dado tipo de ação administrativa.

Um modelo do Estado Liberal clássico era aquele dos direitos fundamentais enquanto direitos de caráter negativo. Agora, quando a gente introduz a ideia de um Estado de Direito Social vem esse tema de que tem que haver provimento. Enquanto isso é feito pelo Estado Administração, tudo bem. Mas e quando é o Estado Juiz que faz? Isso seria ativismo? Para muitos, sim. A meu ver, não, porque os paradigmas mudaram. O juiz não pode mais responder com aquela fórmula clássica de uma mera suspensão de atividade, pois o que se cobra agora é uma ação de caráter positivo. E se for ativismo, é um ativismo judicial que decorre do modelo institucional que se desenhou do próprio Estado Social.

Quando a Constituição estabelece que existe um direito subjetivo à edição de uma norma e cria para o mandado de injunção para garantir que esse direito seja assegurado, especialmente os direitos de caráter positivo, direitos sociais, pode-se dizer que o tribunal exorbita de suas funções quando cobra do Legislativo a edição da norma? Parece-me que não. Ou, quando ele não logra fazer com que o Legislativo atue, e aí ele propõe uma solução provisória, intermediária ou coisa assemelhada? Não me parece que isso seja ativismo. É uma atitude de não resignação com o modelo que aí está posto de uma inércia que bloqueia o exercício dos direitos.

Há ainda outras situações de inevitável quebra de paradigmas em razão do perfil diferenciado dos direitos que agora se asseguram. É o que se vê, por exemplo, nos casos de omissão inconstitucional, que constituem um problema em todo o mundo.

OC: É positiva a judicialização dos direitos sociais?

GM: Só a judicialização não resolve. Ela é assimétrica, não consegue universalizar os direitos, não consegue atingir de maneira homogênea os vários segmentos sociais. Medicamentos, quem leva esse pleito à Justiça? Muitas vezes a classe média, que pode pagar advogados particulares ou mesmo se valer da Defensoria Pública. Contudo, as pessoas pobres, que não podem pagar advogados, que não são assistidas por defensores públicos, continuam vivendo suas agruras. A judicialização não resolve os problemas dessas pessoas. É verdade que a judicialização, muitas vezes, faz com que a administração se organize. É o que o Luís Roberto Barroso sustenta, que aconteceu com o tratamento da AIDS no Brasil.

“O juiz não pode mais responder com aquela fórmula clássica de uma mera suspensão de atividade, pois o que se cobra agora é uma ação de caráter positivo.”

OC: A AIDS foi um grande exemplo onde a administração pública foi sensível para criar um programa e evitar as demandas?

GM: Percebeu-se que era melhor ter um modelo universalizável e padronizado, uma política pública para o tema. A judicialização, porém, pode ser tumultuária em muitos casos. Quando incide sobre o serviço de saúde de um dado município para a concessão de medicamentos, realização de transplantes ou operações complexas, a judicialização pode desarticular todo o serviço de saúde para os seus afazeres cotidianos, vacinação ou outras políticas já definidas e sendo realizadas.

OC: É a questão de como adequar o orçamento?

GM: Sim. A judicialização pode consumir tudo com o atendimento de uma peculiaridade qualquer, tornando-se assim uma judicialização tumultuária. Ela captura o orçamento para essas finalidades individuais. É preciso então alterar um pouco esse processo. Combinar as ações de modo que você não retire o caráter individual do direito, embora ele também seja um direito coletivo, mas também não transforme esse direito num direito exclusivamente individual e perca a necessidade de estabelecimento de normas gerais de organização e procedimento, que é o fundamental.

OC: As decisões do STF são paradigmas para as outras Cortes Constitucionais?

GM: Estamos nos tornando conhecidos em algumas áreas, principalmente nas áreas de direitos sociais e da omissão inconstitucional. A última obra do professor Francisco Fernández Segado traz uma ampla consideração sobre a omissão inconstitucional no Brasil e sobre as decisões tomadas no novo modelo do mandado de injunção. E em casos como fidelidade partidária, a solução que o tribunal encaminhou tem sido objeto de críticas positivas. Também se reconhece que o Brasil logrou construir uma democracia política e constitucional com grande equilíbrio.

Evidente que o maior conhecimento sobre as nossas atividades depende de termos mais especialistas se dedicando ao estudo e também ao próprio trabalho de divulgação dos brasileiros em relação ao nosso sistema. É um trabalho que demanda tempo e um diálogo científico. É fundamental que haja essa troca de visões de acadêmicos de todo o mundo.

OC: Precisamos escrever e divulgar mais…

GM: Nós temos institutos absolutamente inovadores. A reclamação, por exemplo, é um instituto muito singular e de alguma forma muito original. A jurisdição constitucional no mundo se depara com esse problema: como dar consecução à idéia do efeito vinculante? Então hoje temos um bom instrumento que se desenvolveu a partir de uma jurisprudência criativa do Supremo. É um instituto que merece destaque. A ADPF também é um instrumento com singularidades, que desperta a própria dimensão que nós demos ao controle abstrato.

“Só a judicialização não resolve. Ela é assimétrica, não consegue universalizar os direitos, não consegue atingir de maneira homogênea os vários segmentos sociais.”

OC: Em 2009, o TSE cassou o mandato de três governadores. Em duas dessas cassações, quem assumiu o mandato foram os candidatos que ficaram em segundo lugar. Essa interpretação respeita a soberania do voto do eleitor?

GM: Esse é um tema delicado. Tenho a impressão de que o TSE fez reviver uma jurisprudência antiga que repercutia, em geral, nos casos de prefeitos cassados, quando se anulavam todos os votos por considerá-los todos viciados. O que, obviamente, é uma ficção, porque mesmo que tenha havido compra de votos e abusos, dificilmente se poderá dizer que todos os votos foram obtidos por essa ou aquela forma. Mas o tribunal construiu isso por razões práticas. Com isso, ele propunha a anulação de todos os votos dados a um dado candidato e aquele candidato que era até então minoritário passa a ser majoritário. Agora, esse entendimento, estendido aos governos estaduais, torna mais evidente a distorção. Por isso uma ADPF que está posta aqui exatamente para decidirmos a constitucionalidade ou não da norma do Código Eleitoral que legitimou essa posição do TSE. Isso certamente será objeto de discussão à luz dos princípios da democracia.

OC: Quais os temas relevantes que podem ser julgados ainda na sua presidência?

GM: Nós temos um caso importante sobre saneamento, que está pendente de julgamento, e é um caso interessante porque envolve um modelo de competência federativa compartilhada. Quem é o ente ou o Poder outorgante da concessão quando envolver, por exemplo, regiões metropolitanas? Uma questão básica e aí vem a disputa do modelo do federalismo com competência existente. É o Poder estadual porque envolve interesses de vários municípios, então só o Estado pode regular? Ou são os municípios? Mas como fazer isso, considerando que a água às vezes é apanhada até em outro estado, é tratada em algum lugar…

OC: Abastece uma outra região…

GM: Abastece uma outra região. Em suma, é um todo complexo. Então isso é objeto agora de uma discussão aqui e nós vamos ter que resolver. E eu já até encaminhei no sentido de considerar o próprio ente metropolitano como Poder concedente, compreendendo aí o Estado e os municípios integrantes da região metropolitana. Mas essa é uma mudança importante.

Temos também uma discussão muito sensível que envolve o problema do efeito vinculante, da possibilidade de revisão da jurisprudência, que é o critério da LOAS. Inicialmente tínhamos no Supremo uma série de ações reclamando por que não havia a lei tratando de assistência social, embora a Constituição assegurasse assistência social aos idosos, pobres e aos deficientes. Aí veio a lei, que estabelece que o critério de renda familiar não pode ultrapassar um quarto do salário mínimo. Essa lei foi questionada e, em sede de ADI, o Supremo a declarou constitucional. No entanto, juízes federais continuam concedendo benefícios para pessoas que ganham além desses limites. Essa questão vai ter que ser colocada. E aí, como vamos evoluir nessa matéria? É um caso interessante porque sugere uma omissão inconstitucional parcial. É um caso relevante, pois iremos decidir se o Supremo, em sede de reclamação, pode rever o julgamento de uma ADI sob o entendimento de que a lei, outrora declarada constitucional, evoluiu para um quadro de inconstitucionalidade.

Por isso uma ADPF que está posta aqui exatamente para decidirmos a constitucionalidade ou não da norma do Código Eleitoral que legitimou essa posição do TSE.

OC: Qual seria o limite para uma cláusula de barreira no Brasil?

GM: Essa é uma questão realmente muito sensível. O modelo alemão adota uma cláusula de 5%, que é um número alto. Na Alemanha isso se explica em razão da própria instabilidade que se verificou durante a chamada Constituição de Weimar e na tentativa de disciplinar o sistema de representação parlamentar para evitar instabilidade na formação do governo. Entendeu-se que o adequado era esse número, embora para efeito de financiamento de campanha exista um critério mais flexível. Há ainda alternativas para as minorias.

No Brasil, teríamos que combinar a cláusula de barreira com o critério da representatividade das minorias. É verdade que nós estamos hoje numa situação de um provisório permanente, pois os partidos em geral não disputam eleições de forma individualizada, eles acabam se coligando e para efeito da eleição proporcional, isso tem um grande peso. Por causa disso, não sabemos se seria realmente necessária a cláusula de barreira. Se houvesse a proibição de coligação, provavelmente muitos partidos já seriam barrados pelo fato de não conseguirem o quociente eleitoral. Essa é a questão que se coloca. Não experimentamos esse modelo. Temos sempre feito a solução da coligação, então o argumento da cláusula de barreira fica um pouco prejudicado. Teríamos que enfrentá-lo.

OC: O quociente eleitoral opera como uma cláusula de exclusão?

GM: Eu tenho a impressão que sim. Este é o problema dos critérios dos sistemas eleitorais como um todo. Esse é o grande paradoxo da democracia e o Hans Kelsen formula isso de forma muito clara. Se adotarmos, por exemplo, um modelo puramente distrital, podemos ter, por absurdo, um partido que tem a maioria dos votos, no sentido da soma de todos os votos, mas que não elege a maioria do parlamento porque na distribuição dos assentos os votos são contados tendo em vista a disputa em cada distrito.

Imaginem 10 distritos disputados pelo partido “A” e pelo partido “B”. O partido “A” ganha em 4 distritos, e o “B” em 6 distritos, todavia, na margem de votos verificamos que “A” teve mais votos do que “B” porque a disputa foi acirrada e aonde ele venceu, teve uma grande diferença de votos. Então, na soma de votos, “A” teria mais votos, mas ele é o perdedor da eleição. O governo parlamentar será formado por quem teve maioria.

O modelo proporcional tem a vantagem de permitir uma distribuição mais justa e de contemplar a posição da minoria, coisa que não acontece no modelo majoritário, em que os votos da minoria desaparecem, eles acabam não tendo nenhum efeito prático.

Agora, qual é a fórmula adequada realmente? É a que encontre um maior equilíbrio tendo em vista as pretensões que oneram o modelo. Aqui o que se quer é ter, tanto quanto possível, uma maior representatividade e também a contemplação da minoria. Vivemos esse dilema.

Tenho a impressão de que o próprio quociente eleitoral já é uma cláusula de barreira, tanto é que não são poucos os casos de arguição de inconstitucionalidade. Vejam, por exemplo, o caso da distribuição das sobras. Só participam das sobras os partidos que conseguiram o quociente eleitoral. Há partidos que tiveram uma importante votação, porém não lograram o quociente eleitoral. Por definição legal, esses partidos estão fora da distribuição das vagas. Há processos, inclusive no Supremo, que reclamam que a sobra deveria ser dada àquele partido que eventualmente não logrou o quociente eleitoral mas que teve uma expressiva votação. Isso é absurdamente abandonado no critério da eleição proporcional.

OC: O que significa a jurisdição constitucional?

GM: É a atividade jurisdicional incumbida de dirimir as controvérsias constitucionais, seja no controle concentrado, como nós conhecemos, seja no controle difuso, e aí, no nosso sistema, qualquer juiz ou tribunal exerce em parte a jurisdição constitucional, enquanto o Supremo a exerce de forma superlativa, tanto no controle concentrado quanto no controle difuso. Evidente que o Supremo exerce funções outras que não de jurisdição puramente constitucional. Quando decide, por exemplo, atividade de jurisdição administrativa, às vezes mandado de segurança, em que discute meras questões administrativas e não de alçada constitucional ou mesmo fora de debate constitucional alguns temas da jurisdição criminal, isso não tem necessariamente a ver com jurisdição constitucional.

No Brasil, a maior atividade hoje da jurisdição constitucional, e isso não tinha grande relevância no tempo do Kelsen, é o controle de constitucionalidade não de normas, mas de sentenças. E esse é um dado importante. O controle de constitucionalidade se realiza com o recurso extraordinário e eventualmente até com a ADPF. A ADPF está surgindo um pouco como um recurso constitucional do “B”, um recurso constitucional contra atos judiciais também.

O modelo proporcional tem a vantagem de permitir uma distribuição mais justa e de contemplar a posição da minoria, coisa que não acontece no modelo majoritário, em que os votos da minoria desaparecem, eles acabam não tendo nenhum efeito prático.

OC: No julgamento da ADPF 130, o Supremo decidiu que a liberdade de imprensa é absoluta, sendo a resposta e a indenização os únicos meios que a Constituição assegura para a proteção da intimidade?

GM: Não, não foi essa a orientação e discutimos isso numa reclamação ajuizada pelo jornal Estado de São Paulo. O julgamento da ADPF 130 foi um julgamento difícil, com fundamentos dispersos, o que causa muita dificuldade. É um belo caso para estudar o problema do efeito vinculante dos próprios fundamentos. Se lermos o voto de cada ministro, verificamos que temos muitas coincidências quanto ao resultado, sem que haja coincidência quanto aos fundamentos. Daí as dificuldades que tivemos no julgamento da reclamação apresentada pelo Estado de São Paulo. Penso que todos os ministros reconheceram a importância da liberdade de imprensa e que não se pode banalizar a intervenção para a suspensão de publicações e tudo o mais. Mas o Supremo não excluiu a possibilidade de que haja intervenção judicial, tendo em vista valores como a privacidade, a intimidade, a honra e outros valores do texto constitucional.

OC: Como presidente do Supremo Tribunal Federal, o senhor rompeu paradigmas. Como que o senhor gostaria de ser lembrado na história?

GM: Isso é muito difícil de responder. Não sei… Se me fizerem justiça, penso que serei lembrado como um reformador do processo constitucional em temas como controle abstrato, modulação de efeitos, efeito vinculante, omissão inconstitucional e contribuição para o desenvolvimento de uma jurisdição constitucional mais forte. Em relação aos direitos fundamentais, a Corte cresceu muito e acredito que tive uma participação importante nisso, especialmente nos direitos de caráter processual criminal. Na minha gestão, o Supremo Tribunal Federal deu uma outra dimensão para a Jurisdição Constitucional.

(conclui na sexta, 26/03, com o Pensa rápido!)



Um comentário

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