1.02.10
Conversas acadêmicas: Christine Peter e o Supremo Tribunal Federal (I)
CHRISTINE OLIVEIRA PETER DA SILVA
Quem é: Mestre em Direito e Estado (2001) pela Universidade de Brasília (UnB). Doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Diretora acadêmica e coordenadora do curso de Pós-Graduação Lato Sensu de Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Autora do livro Hermenêutica de Direitos Fundamentais. Assessora do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF).
O que faz: Atua e leciona nas áreas de Hermenêutica Constitucional, Direitos Fundamentais, Controle de Constitucionalidade e Processo Constitucional.
Os Constitucionalistas: Por que o curso de Direito?
Christine Peter: Eu cheguei em Brasília em 1988. Meus pais nasceram em Natal/RN. Sou filha de piloto da Força Aérea Brasileira e, como todos os filhos de militares, morei em muitos lugares do Brasil. Chegamos em Brasília, pela segunda vez, no início de 1988, e vendo toda aquela movimentação da época, me interessei pelo que era a Constituição. Lembro que um dia meu pai chegou em casa com o exemplar da Constituição para me dar de presente, pois eu – cursando a sétima série – tinha feito um trabalho sobre as Constituições do Brasil. Foi um momento que ficou na memória. No segundo grau, eu refleti quase dois minutos, como costumo fazer até hoje, e decidi: “Como quero morar em Brasília, vou fazer Direito, pois Direito é um curso que combina com Brasília”. Por isso o escolhi. Escolhi o curso de Direito por uma questão estética. É uma relação estética com a cidade de Brasília.
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Escolhi o curso de Direito por uma questão estética. É uma relação estética com a cidade de Brasília
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OC: O Supremo Tribunal Federal, quando assegura os direitos fundamentais, como o direito à defesa, ao contraditório e ao devido processo legal, impede o combate à corrupção no Brasil?
CP: O Supremo Tribunal Federal não tem outra opção que não respeitar a Constituição. Assegurar os direitos fundamentais não é uma opção, mas um dever constitucionalmente imposto à Corte. Como guardião da Constituição – não o único, mas o mais evidente – o Supremo Tribunal Federal não tem opção de inobservar os princípios constitucionais que ali estão expressos. Se o constituinte de 1988, consagrando uma tradição brasileira secular, garantiu a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal como direitos fundamentais, tanto no plano subjetivo, quanto no plano objetivo, é natural a existência de uma tradição judiciária e administrativa do STF que privilegie a concretização desses direitos. Independentemente do resultado para a sociedade civil, em geral, independentemente da opinião pública e publicizada a respeito dos casos concretos que são julgados a partir desses princípios, o Supremo Tribunal Federal é um vetor inafastável na concretização de direitos fundamentais. Ele existe institucionalmente no Estado Constitucional e de Direito para concretizar e respeitar os direitos fundamentais. Não há como o STF fingir que esses direitos fundamentais não existem quando está diante de um bandido mais famoso ou mais rico, de um bandido menos famoso ou mais pobre ou mesmo diante de um homem de bem. Esses direitos são direitos dos cidadãos brasileiros que têm que ser movimentados e trabalhados no âmbito da Corte.
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Não há como o STF fingir que esses direitos fundamentais não existem quando está diante de um bandido mais famoso ou mais rico, de um bandido menos famoso ou mais pobre ou mesmo diante de um homem de bem
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OC: No caso Cesare Battisti (Ext 1085), era essencial ao julgamento a questão da vinculação ou discricionariedade do presidente da República quanto à decisão que deferisse a extradição?
CP: O caso Cesare Battisti é um dos casos mais interessantes da jurisprudência contemporânea do Supremo Tribunal Federal. Não pelo fato específico das questões sempre tormentosas que uma extradição envolve, mas porque a movimentação do Brasil nesse momento político, social e cultural impulsionou o Supremo para uma situação institucional muito intrigante. Nós tínhamos uma imprensa quase unânime em relação à extradição do Cesare Battisti. Existia uma conformação jurídica, técnica e legislativa confortável, uma vez que a extradição é um processo muito procedimental, ou seja, cumpridos os requisitos, a extradição é deferida. A decisão do STF, na primeira parte do julgamento, foi, na minha opinião, muito responsável, foi um voto apertado, é verdade, mas muito responsável no sentido de reconhecer a legislação como válida e dar ao Estado Constitucional e de Direito o seu devido respeito. Não se afastou a legislação pertinente simplesmente porque existiam fatores ou comoções que levariam a um resultado indesejável politicamente ou midiaticamente. Entretanto, na segunda parte do julgamento, reabriu-se uma questão tormentosa, latente e pendente em todas as jurisdições constitucionais do mundo: a relação entre os poderes na concretização da Constituição. No caso, no processo de extradição, tratava-se da relação entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo. Neste ponto, sim, a decisão extrapolou a jurisprudência da Corte, neste ponto, sim, tomou-se uma decisão com base numa troca de uma maioria – e a ausência do ministro Celso de Mello na votação (afastado do julgamento por declaração de suspeição) fez muita diferença. Por causa dessas circunstâncias, o julgamento da Extradição 1085 entra para a história do Supremo num âmbito destacado e especial, quebrando uma tradição de uma centena de anos do processo de extradição. E, na minha opinião, a decisão posterior do Plenário, em questão de ordem levantada pelo ministro Cezar Peluso, não tornou a questão menos intrigante.
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Na segunda parte do julgamento [caso Cesare Battisti], reabriu-se uma questão tormentosa, latente e pendente em todas as jurisdições constitucionais do mundo: a relação entre os poderes na concretização da Constituição
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OC: É verdade que a imprensa pautou o Supremo Tribunal Federal no caso Cesare Battisti?
CP: A imprensa não pautou o STF, muito pelo contrário, o Supremo Tribunal Federal já está muito permeável a uma audiência pública mais complexa, mais plural e mais sofisticada. Os canais de comunicação com a Suprema Corte estão bastante diversificados. Chegavam cartas na Central do Cidadão, chegavam e-mails nas caixas dos ministros e das assessorias, os próprios ministros eram abordados por todo lado. No dia do julgamento, o ministro Gilmar Mendes dava aula na Universidade de Brasília (UnB), onde ocorreu uma manifestação pública: um grande abraço dos estudantes daquela Universidade na sala de aula em prol da extradição do Cesare Battisti. Tudo isso ecoa, pois a sociedade estava envolvida com esse processo. Arriscaria dizer que a imprensa foi quem menos pautou a decisão do caso Cesare Battisti.
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A imprensa não pautou o STF, muito pelo contrário, o Supremo Tribunal Federal já está muito permeável a uma audiência pública mais complexa, mais plural e mais sofisticada
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OC: A TV Justiça, a Rádio Justiça, o YouTube e, mais recentemente, o Twitter influenciam os julgamentos do Supremo Tribunal Federal? Existem ministros pop stars?
CP: Os ministros são autoridades públicas em evidência. A TV Justiça, a Rádio Justiça, o YouTube e agora o Twitter são instrumentos que evidenciam com uma maior celeridade ou com uma maior transparência esse papel institucional relevantíssimo que é o papel de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Eu não colocaria de jeito nenhum a condição de pop star, até porque os ministros agem com muita naturalidade frente a esses instrumentos, o que demonstra que não existe uma arte por trás. O artista é sempre aquele que se apresenta de uma forma muito diferente do que ele vive. Eu não sinto isso. Trabalho no Supremo Tribunal Federal há cinco anos e acompanho a Corte desde o início da minha faculdade. Eu não sinto nos ministros da Corte a presença de uma personagem quando estão diante das câmeras da TV Justiça. Eles são aquilo que são e estão acostumados com essa visibilidade de homens e mulheres públicos. Mas, sem dúvida alguma, existe uma diferença muito grande dessa postura institucional da Corte ao se abrir através desses meios de comunicação. Embora eu tenha a opinião de que eles agem muito naturalmente diante das câmeras, diante dos repórteres, diante da imprensa em geral, os ministros do STF têm a consciência de um papel institucional muito mais transparente, muito mais exposto e isso faz com que a Corte tenha uma linguagem, uma postura diferente. Cada ministro tem consciência de que o seu voto estará eternalizado na TV Justiça, na Rádio Justiça, no YouTube e no Twitter.
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Os ministros do STF têm a consciência de um papel institucional muito mais transparente, muito mais exposto e isso faz com que a Corte tenha uma linguagem, uma postura diferente
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OC: Muitos criticam o STF por se expor demais à sociedade…
CP: O Supremo Tribunal Federal realmente vive um momento muito delicado dessa exposição. Chegamos num bom limite, agora temos que ver aonde isso vai dar. Não há mais o que fazer para dar transparência. A Corte está aberta a todos os instrumentos que a tecnologia oferece. Agora o Tribunal terá que refletir sobre as consequências disso. Mundialmente, somos o único país com uma TV que transmite os julgamentos da Corte Constitucional ao vivo. O Supremo Tribunal Federal terá que ter autoconsciência desses instrumentos para descobrir os próprios limites. Eu sou muito entusiasta desse movimento. A democracia brasileira é a única no mundo com essa conformação de Poder Judiciário tecnologicamente acessível. Essa singularidade legitima o processo constitucional como processo aberto e público, publicizado, talvez. Isso torna a atividade judicial muito mais intensa, muito mais comprometida. Talvez o espaço público habermasiano encontre aí um campo sem fim de possibilidades, mas isso não basta: a legitimação da Corte também tem que vir do aspecto material dos argumentos. Considero, porém, muito relevantes as reflexões e as críticas que são feitas ao nosso modelo.
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A democracia brasileira é a única no mundo com essa conformação de Poder Judiciário tecnologicamente acessível. Essa singularidade legitima o processo constitucional como processo aberto e público, publicizado, talvez. Isso torna a atividade judicial muito mais intensa, muito mais comprometida
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(continua)
Excelente a entrevista, com questionamentos pertinentes e respostas inteligentes, assim como o conteúdo deste blog. Conheço a Drª Cristine e ela é uma excepcional constitucionalista.
Parabéns pelo trabalho de qualidade, muita qualidade.
Maurício Gieseler de Assis
Que conteúdo! A entrevistada demonstrou conhecer bem o tema dos direitos fundamentais. Esse papel do STF de garante dos direitos fundamentais ficou bem nítido na presidência do Min. Gilmar Mendes. E estou certo que irá se consolidar com o Min. Peluso.
Este blog está sensacional e já guardei nos meus favoritos.
A Professora Christine, sempre carismática e elegante, nos cativa com sua paixão pelo Direito e domínio da Constituição Brasileira!Parabéns ao blog, parabéns a Professora Christine!Ana Cândida
É mais comum se ver as críticas aos tribunais, e dificilmente se dá oportunidade para que se ouça o outro lado. Quase sempre a defesa do Judiciário temque ser feita pelos ministros, quando provocados.
É interessante ver a elegância com que a entrevistada defendeu o STF, topicamente, de cada uma das críticas, sem fugir das respostas. Enfrentou os temas mais delicados sem rodeios, permitindo os leitores conhecerem os dois lados e fazerem seu próprio julgamento. Vejo que esse espaço se consolida como uma arena democrática.
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