5.04.17
Contramajoritário, representativo e iluminista: o Supremo, seus papéis e seus críticos
Nota do editor: Posfácio inédito do livro A Razão sem Voto: Diálogos Constitucionais com Luís Roberto Barroso, organizado pelos Professores Oscar Vilhena e Rubens Gleizer[1].
Por Luís Roberto Barroso
I. INTRODUÇÃO
Meu primeiro sentimento ao escrever este posfácio é o de agradecer ao Professor Oscar Vilhena Vieira pela iniciativa deste livro. Ao receber meu artigo A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria, com o pedido de que o encaminhasse para eventual publicação em uma prestigiosa revista, Oscar teve a ideia de organizar esta coletânea. Na sequência, elaborou uma lista de colaboradores de primeira linha – com uma ou outra sugestão minha –, conseguiu que cada um enviasse previamente um texto e comandou um memorável seminário de todo o dia na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Na ocasião, pude dialogar e debater com todos os participantes desta obra, num debate franco, aberto e amistoso. Foi um dia de deleite intelectual e de grande proveito pessoal. Guardo na memória e no coração as discussões de alto nível em que a crítica sincera – ora favorável, ora divergente – estreitou laços de fraterna amizade acadêmica. Oscar é uma dessas pessoas diferenciadas, que além de brilhar com luz própria, ilumina o caminho para os outros. Sua integridade, gentileza e humildade dão um toque de classe à seriedade científica e consistência teórica da sua produção acadêmica.
II. RESPOSTA ÀS CRÍTICAS
Na concepção original dessa obra, eu deveria, após a leitura dos textos e da realização dos debates, apresentar uma resposta às posições divergentes lançadas pelos participantes. Talvez, em algum lugar do futuro, seja o caso de fazê-lo. Por ora, no entanto, pareceu-me próprio deixar aos leitores a possibilidade dialética de avaliar diferentes visões, sem que o autor do texto que originou o debate se arrogue o privilégio de dar a última palavra. De todo modo, embora abdicando da resposta individualizada aos questionamentos, apresento um comentário geral. Para tanto, extraí do conjunto notável de trabalhos que integram essa coletânea três críticas recorrentes à minha visão dos papéis do Supremo Tribunal Federal:
(1) a de que eu forneço uma legitimação móvel e apriorística para qualquer atuação do Tribunal;
(2) o risco democrático de o STF se arvorar em representante da sociedade; e
(3) a impossibilidade de prestação de uma jurisdição constitucional de qualidade, à vista do volume de processos apreciados pelo Tribunal.
São críticas bem embasadas, que merecem ser enfrentadas com seriedade e rigor científico. Não farei uma defesa analítica de fôlego das minhas teses, já longamente expostas no meu artigo. Porém, alguns breves comentários podem animar o debate e trazer novas reflexões aos leitores.
A primeira crítica é a de que meus argumentos transformariam o STF em um alvo móvel, que nunca pode ser atingido pela crítica democrática, já que lhe conferi uma legitimidade apriorística, isto é, “sobredeterminada”. Nessa linha, segue o argumento, se o Tribunal age contramajoritariamente – i.e., contra o Congresso –, ele está legitimado pela defesa, por exemplo, dos direitos fundamentais. Por outro lado, se ele age no vácuo do Congresso, mas com apoio da sociedade, está legitimado por sua função representativa. Por fim, se ele age contra o Congresso e a opinião pública, mas em nome de um avanço civilizatório, está legitimado por seu papel iluminista. Em suma, não erraria nunca. O argumento é engenhoso, mas a defesa da minha posição é simples. Esses papéis – contramajoritário, representativo e iluminista – não são fungíveis. Se o Tribunal desempenhar um deles, quando deveria desempenhar o outro, sua atuação será ilegítima.
Assim, se o Tribunal for contramajoritário quando deveria ter sido deferente, sua linha de conduta não será defensável. Se ele se arvorar em ser representativo quando não haja omissão do Congresso em atender determinada demanda social, sua ingerência será imprópria. Ou se ele agir como vanguarda iluminista fora das situações excepcionais em que deva, por exceção, se imbuir do papel de agente da história, não haverá como validar seu comportamento. Para que não haja dúvida: sem armas nem a chave do cofre, legitimado apenas por sua autoridade moral, se embaralhar seus papéis ou se os exercer atrabiliariamente, o Tribunal viverá o seu ocaso político. Quem quiser se debruçar sobre um case de prestígio mal exercido, de capital político malbaratado, basta olhar o que se passou com as Forças Armadas no Brasil de 1964 a 1985. E quantos anos no sereno e com comportamento exemplar têm sido necessários para a recuperação da própria imagem.
A segunda crítica, presente em diversos dos papers, é referente ao risco democrático. Não deixa de ser curioso que a teoria constitucional tenha superado suas angústias em relação à dificuldade contramajoritária das cortes constitucionais, mas que veja maiores problemas em uma atuação representativa. Aqui cabem duas observações importantes. A primeira é que o Tribunal não pode se investir de uma pretensão de representação metafísica da sociedade, qual um Oráculo de Delfos fora de época, com as respostas certas para todas as aflições. É necessário que estejam presentes condições concretas e socialmente controláveis de demanda social não atendida pelo processo político majoritário para justificar uma intervenção. A segunda é que este papel representativo – a representação argumentativa da sociedade, na terminologia de Alexy – é eventual e necessariamente subsidiário. Por evidente, o órgão de representação popular por excelência é o Legislativo. Portanto, aprimorar o sistema representativo é a prioridade número um. Somente nas suas falhas mais graves é que se justifica a representação supletiva pelo Supremo. Não há troca de papéis. E mais: juízes constitucionais não são os reis filósofos da República de Platão, portadores da virtude e da verdade. Seu único poder é o do convencimento racional e moral. Se falharem nesse propósito, nada os salvará.
A terceira crítica diz respeito à impossibilidade de prestação de uma jurisdição de qualidade, à vista do volume de processos. Esta talvez seja a crítica mais difícil de responder. Até porque, desde que ingressei no Tribunal, venho insistindo, em conversas internas e em manifestações públicas, na necessidade de se fazerem mudanças profundas, revolucionárias, no modo como o Supremo Tribunal Federal atua. A mais radical é a de que o STF não pode admitir mais recursos extraordinários com repercussão geral do que possa julgar em um ano. Tudo o mais, que não tenha sido selecionado, transita em julgado. Também tenho proposto que a seleção dos recursos com repercussão geral seja feita por semestre, por um critério comparativo. Feita a escolha, designa-se a data de julgamento daquele processo. Por exemplo: a repercussão geral nº 1 (RG 1), selecionada em junho de 2016, será julgada na 4a feira, dia 3 de fevereiro de 2017, como primeiro caso da pauta. A RG 2 será julgada na 4a feira, dia 10 de fevereiro de 2017, como primeiro processo da pauta. E assim por diante. No modelo atual, as pautas são feitas às 5as. feiras, com dezenas de processos para serem julgados na 4a e na 5a feira seguintes, o que é uma fórmula péssima. Sem tempo para se prepararem adequadamente, os ministros votam com pouca reflexão ou pedem vista. Também é procedente a crítica de que o volume astronômico transforma o processo decisório do Tribunal, em mais de 90% dos casos, em uma Corte de decisões monocráticas.
Na vida real, o que acontece é que os ministros e o presidente fazem, de modo individual e improvisado, o que no resto do mundo é feito de maneira institucional. Cada ministro, com seu gabinete, seleciona o que vai levar a Plenário, cabendo ao presidente fazer a pauta. De modo que julgamentos efetivos em Plenário são cerca 100 ou 200 processos por ano (julgamentos em lista não contam), o que não destoa quantitativamente de outros países. Mas, de fato, o volume de processos e a pouca antecedência da pauta compromete a qualidade da atuação do Tribunal e motivam os controvertidos pedidos de vista, apelidados, em alguns casos com justa razão, de “perdidos de vista”. De modo que os que professam essa crítica podem se juntar a mim no esforço de transformar o Tribunal, reduzindo a voracidade terceiro-mundista de tudo julgar, na crença equivocada de que competência é poder, mesmo que mal exercida.
III. MINHAS IDEIAS CENTRAIS
Parece-me bem, antes de encerrar, reiterar de modo sintético algumas das ideias essenciais do meu texto.
1. As três dimensões da democracia contemporânea
A democracia contemporânea apresenta três dimensões. Na sua dimensão de democracia representativa, o elemento essencial é o voto e os protagonistas são o Congresso Nacional e o Presidente da República. Há problemas diversos na dimensão representativa da democracia brasileira, sobretudo no tocante à eleição para a Câmara dos Deputados. Nela, um sistema eleitoral proporcional e de lista aberta cria um modelo em que mais de 90% dos deputados não são eleitos com votação própria, mas mediante transferência de voto partidário. Nessa fórmula, o eleitor não sabe exatamente quem o elegeu e o parlamentar não sabe exatamente por quem foi eleito. Como consequência, eleitores não têm de quem cobrar e os eleitos não sabem a quem prestar contas. Não há legitimidade democrática que possa ser adequadamente satisfeita por uma equação como essa.
A segunda dimensão é a da democracia constitucional. Para além do componente puramente representativo/majoritário, a democracia é feita também, e sobretudo, do respeito aos direitos fundamentais. São eles pré-condições para que as pessoas sejam livres e iguais, e possam participar como parceiros em um projeto de autogoverno coletivo. Tivemos muitos avanços nessa área: liberdade de expressão, de associação e de reunião assinalam a paisagem institucional brasileira. Ao lado delas, foram agregadas conquistas importantes em temas de direitos sociais, como educação e saúde, e avanços nas liberdades existenciais, com o reforço na proteção dos direitos de mulheres, negros e homossexuais. O protagonista dessa dimensão da democracia é o Judiciário e, particularmente, o Supremo Tribunal Federal.
A terceira dimensão da democracia contemporânea identifica a democracia deliberativa, cujo componente essencial é a apresentação de razões, tendo por protagonista a sociedade civil. A democracia já não se limita ao momento do voto periódico, mas é feita de um debate público contínuo que deve acompanhar as decisões políticas. Participam desse debate todas as instâncias da sociedade, o que inclui o movimento social, imprensa, universidades, sindicatos, associações, cidadãos comuns, autoridades etc. A democracia deliberativa significa a troca de argumentos, o oferecimento de razões e a justificação das decisões que afetem a coletividade. A motivação, a argumentação e o oferecimento de razões suficientes e adequadas constituem, também, matéria prima da atuação judicial e fonte de legitimação de suas decisões.
2. Os três papéis do Supremo Tribunal Federal
Supremas cortes e tribunais constitucionais em todo o mundo desempenham, ao menos potencialmente, três grandes papéis: contramajoritário, representativo e iluminista. Também assim o Supremo Tribunal Federal. O papel contramajoritário identifica, como é de conhecimento geral, o poder de as cortes supremas invalidarem leis e atos normativos, emanados tanto do Legislativo quanto do Executivo. A possibilidade de juízes não eleitos sobreporem a sua interpretação da Constituição à de agentes públicos eleitos foi apelidada por Alexander Bickel como “dificuldade contramajoritária”. Como assinalado, este é um dos temas mais estudados na teoria constitucional. A despeito da subsistência de visões divergentes, entende-se que este é um papel legítimo dos tribunais, notadamente quando atuam, em nome da Constituição, para protegerem os direitos fundamentais e as regras do jogo democrático, mesmo contra a vontade das maiorias.
Em segundo lugar, cortes constitucionais em geral, e o Supremo Tribunal Federal em particular, desempenham, em diversas situações, um papel representativo. Isso ocorre quando atuam (i) para atender demandas sociais que não foram satisfeitas a tempo e a hora pelo Poder Legislativo, (ii) bem como para integrar a ordem jurídica em situações de omissão inconstitucional do legislador. No texto, citei os exemplos da proibição do nepotismo, da imposição da fidelidade partidária e da regulamentação da greve no serviço público. Numa situação um tanto intermediária em relação ao papel contramajoritário e representativo posicionam-se as decisões que interferem com a execução de políticas públicas. Nessa linha, há julgados envolvendo o tema da concretização de direitos sociais, nas quais se determinam providências como fornecimento de medicamentos, melhoria das condições de hospitais e escolas, realização de obras de saneamento e reformas de presídios, entre outras.
Por fim, em situações excepcionais, com grande autocontenção e parcimônia, cortes constitucionais devem desempenhar um papel iluminista. Vale dizer: devem promover, em nome de valores racionais, certos avanços civilizatórios e empurrar a história. São decisões que não são propriamente contramajoritárias, por não envolverem a invalidação de uma lei específica; nem tampouco são representativas, por não expressarem necessariamente o sentimento da maioria da população. Ainda assim, são necessárias para a proteção de direitos fundamentais e para a superação de discriminações e preconceitos. Conforme registrado no texto, situam-se nessa categoria a decisão da Suprema Corte americana em Brown v. Board of Education, deslegitimando a discriminação racial nas escolas públicas, e a da Corte Constitucional da África do Sul proibindo a pena de morte. No Brasil, foi este o caso do julgado do Supremo Tribunal Federal que equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais, abrindo caminho para o casamento de pessoas do mesmo sexo.
Gostaria de enfatizar um último ponto antes de enunciar minha conclusão. Desde que cheguei ao Tribunal, em junho de 2013, tenho procurado, em certos casos, estabelecer um diálogo institucional com o Congresso. Embora, do ponto de vista formal, caiba à Suprema Corte a última palavra sobre a interpretação da Constituição, tal competência não deve significar supremacia nem muito menos arrogância judicial. Em mais de um caso em que havia omissão do legislador ou vácuo decorrente da declaração de inconstitucionalidade de alguma lei, propus uma solução que deveria ser aplicada a partir de 180 dias ou um ano, para que o Congresso pudesse dispor sobre a matéria durante este tempo, se assim desejasse. A ideia ainda não se tornou dominante, mas acho que tem uma chance razoável de ser adotada em algumas situações.
IV. CONCLUSÃO
O Brasil enfrenta muitos problemas que vêm de longe. Conseguimos avançar muito, mas ainda estamos atrasados e com pressa. Por essa razão, é preciso ir buscar soluções e respostas originais, fora da caixa. O debate de ideias deve ser universal, mas as soluções devem ser particulares. Nem tudo o que eu penso e disse pode ser universalizado. Cada povo carrega a sua própria história, as suas circunstâncias e os seus desafios. Porém, na frase feliz de Albert Einstein, “não podemos resolver nossos problemas pensando do mesmo modo como pensávamos quando os criamos”.
Dezembro de 2015.
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Luís Roberto Barroso é Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Foto: Carlos Humberto/SCO/STF.
[1] O livro A Razão sem Voto: Diálogos Constitucionais com Luís Roberto Barroso encontra-se em fase final de produção. O livro é organizado pelos Professores Oscar Vilhena e Rubens Gleizer e reúne um conjunto amplo de professores de Direito Constitucional que discutem o texto do Professor Barroso intitulado “A Razão sem Voto: O Supremo Tribunal Federal e o Governo da Maioria”. Ao final do livro, Barroso enfrenta as críticas em um Posfácio com o título “Contramajoritário, Representativo e Iluminista: O Supremo, seus Papeis e seus Críticos”. Como aperitivo para a leitura do livro, que será lançado em breve, Os Constitucionalistas publica, em primeira mão, os comentários finais do Professor e Ministro Luís Roberto Barroso.
Quantos anos se passaram até que o STF encontrasse um “defensor” à altura das provocações que a corte faz à sociedade e desta as recebe. Texto claro, preciso, elegante na sua forma e penetrante nas reflexões que provoca, com ele, mais uma vez, Luís Roberto Barroso asperge jatos de clareza sobre espaços teóricos sombrios ou mal iluminados. Vou replicar essa sua contribuição nos auditórios em que possa ser ouvido, quando mais não seja para que as críticas usualmente feitas ao STF não nos deixem, passivamente, ao relento. Replicar é preciso; calar não é preciso.
Sensacional!
Ministro Barroso, sem dúvida, é uma das mentes mais brilhantes e criativas do Supremo. Constitucionalista nato!