24.11.10

Consolidação da democracia e reforma do Judiciário no Brasil

 

 Ministro CEZAR PELUSO Presidente do Supremo Tribunal Federal*

O Brasil atravessa um intenso processo de transformação, com impactos positivos sobre a realidade social interna e sobre o perfil da inserção do país no plano internacional. Muitos fatores contribuíram para essas mudanças. Um deles, porém, não tem merecido a devida atenção dos analistas. Refiro-me à consolidação do Estado Democrático de direito e ao fortalecimento do Poder Judiciário sob a égide da Constituição de 1988.

Pensadores, como o Nobel Amartya Sem, há anos nos ensinam que as instituições jurídicas são “instrumentos” do desenvolvimento, não meros “resultados” ou “conseqüências” desse processo.

Um sistema legal sólido e eficaz garante a segurança jurídica e a rápida solução de controvérsias. A democracia fundada no Estado de direito assegura a transparência das decisões do governo, a “accountability” das autoridades e a melhor alocação dos gastos públicos e dos investimentos sociais. Instituições jurídicas funcionam, assim, como fator indutor de investimentos produtivos, com geração de renda e melhoria das condições sociais.

 A experiência indica que países com robustas estruturas constitucionais e democráticas conseguem encapsular a dimensão política dos conflitos econômicos e sociais na sede própria – a da representação política, de consensos precários e discussões permanentes – e encontrar soluções legítimas e eficientes para seus problemas.

É o que ocorre no Brasil desde a promulgação da Constituição de 1988. O Estado Democrático de direito está a consolidar-se como o modelo de organização do poder político no país. Nessa forma específica de arranjo fundamental do Estado, democracia e Constituição legitimam-se mutuamente, definindo, nas palavras de Norberto Bobbio, um conjunto de normas de procedimento – as “regras do jogo” – para a formação de decisões coletivas.

Em contraste com um passado não muito remoto, democracia e constitucionalismo representam atualmente os “pilares fundamentais” do 2 processo político brasileiro, garantindo a legitimidade tanto do processo decisório, quanto dos resultados (“output legitimacy”, no jargão técnico anglo-saxão) da operação do sistema político.

Além de assegurar os direitos e princípios fundamentais, a Carta de 1988 tem permitido a formulação de demandas por políticas públicas pela maioria da população e a adoção de medidas eficazes no interesse daquela maioria. A combinação desses dois fatores forma a base de sustentação social da nossa Constituição democrática (ou da nossa Democracia constitucional), que jamais contou com grau tão elevado de legitimidade.

Como na famosa piada de Mark Twain ao ler notícias sobre sua própria morte, a experiência brasileira parece confirmar que eram prematuras as previsões de alguns teóricos que viam o papel tradicional das Constituições reduzir-se diante de fenômenos históricos como a globalização, a perda da autonomia decisória dos governos, a unificação dos mercados num só sistema econômico de amplitude global (a “economia-mundo” de que falava Braudel) e o advento de novas ordens normativas ao lado do tradicional direito positivo.

Ao contrário, a crise financeira, que ainda nos ameaça, parece dar novo relevo ao conceito, elaborado pelo professor português José Gomes Canotilho , da chamada “Constituição-dirigente”. Trata-se, como se sabe, daquele tipo particular de texto constitucional que, além de constituir estrutura organizatória definidora de competências e reguladora de processos no âmbito de determinado Estado Nacional, atua também como espécie de estatuto político, estabelecendo o que, como e quando os legisladores e os governantes devem fazer para concretizar as diretrizes programáticas e os princípios constitucionais.

No processo de consolidação do Estado Democrático de direito, o sistema judicial brasileiro passou por reformas profundas. A Emenda Constitucional n. 45, aprovada em 2004, introduziu importante modernização no Poder Judiciário. A emenda tinha como principal objetivo aumentar a eficiência da Administração Judiciária com o fim de combater a morosidade na prestação jurisdicional – problema que, em maior ou menor grau, atinge a Justiça de todos os países.

As principais inovações da Emenda 45 foram: i) a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), instância máxima de coordenação das ações de administração do Poder Judiciário; ii) previsão constitucional para edição de súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal (STF); iii) o estabelecimento do requisito da repercussão geral para o conhecimento e o 3 julgamento de recursos extraordinários pelo STF; e iv) o reconhecimento constitucional do direito fundamental à celeridade processual (art. 5º., XLVIII).

O CNJ foi concebido como órgão central de integração e coordenação dos diversos órgãos jurisdicionais do país, salvo do Supremo Tribunal Federal, com atribuições de controle e fiscalização de caráter administrativo, financeiro e correicional. O CNJ é integrado por representantes da Magistratura, do Ministério Público, da advocacia e da sociedade civil. Tem a missão de definir a estratégia de atuação do Poder Judiciário, mas sem interferir no exercício da função jurisdicional, que, por norma constitucional expressa, continua sendo atribuição de cada tribunal ou juiz em particular.

O CNJ tem se revelado instrumento essencial para o aperfeiçoamento do sistema judiciário brasileiro e a concretização do ideal de uma Justiça célere e eficiente. Ainda há muito por fazer, mas avanços significativos já foram alcançados.

A reforma concedeu ao Supremo Tribunal Federal, o órgão máximo do Poder Judiciário, autorização para editar súmulas vinculantes, que constituem precedentes vinculativos de observância obrigatória por parte dos demais órgãos judiciais e administrativos. A institucionalização da obrigatoriedade de respeitar a orientação firmada pela cúpula do Judiciário significa forte desestímulo à procrastinação dos feitos judiciais e à judicialização de conflitos sobre temas repetitivos.

 A súmula vinculante deve ser aprovada por maioria de 2/3 dos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (oito votos, portanto) e tratar de matéria constitucional objeto de decisões reiteradas da Corte. A aprovação, bem como a revisão e o cancelamento de súmula vinculante podem ser provocados pelos legitimados para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade.

O requisito da repercussão geral introduziu alteração significativa no recurso mais importante do sistema processual brasileiro: o recurso extraordinário. Trata-se de filtro preliminar, em que os onze (11) Ministros da Suprema Corte brasileira avaliam se a questão constitucional submetida à apreciação do tribunal possui relevância econômica, política, social ou jurídica que justifique seu conhecimento e julgamento pelo órgão máximo do Poder Judiciário. 

A repercussão geral foi concebida, sob clara inspiração do writ of certiorari norte-americano, como requisito prévio que separa, por juízo discricionário e irrecorrível do Supremo Tribunal Federal, as causas constitucionais relevantes, que merecerão a análise da Corte, e aqueloutras causas constitucionais que, por serem destituídas de repercussão geral, serão indeferidas liminarmente e não terão o mérito analisado. Assim, o instituto da repercussão geral tem o propósito de assegurar que a Corte Suprema brasileira, desafogada dos mais de cem mil (100.000) recursos que lhe eram dirigidos anualmente, possa debruçar-se com mais acuidade sobre os casos de reconhecido impacto sobre a sociedade como um todo.

Por fim, o quadro de reformas patrocinadas pela Emenda Constitucional no. 45 completa-se com a regulamentação do processo eletrônico, que prestigia o direito fundamental à celeridade processual e busca ampliar o direito, não menos fundamental, de acesso à Justiça.

A utilização da tecnologia da informação como meio de tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais já é realidade no Brasil. A Corte Suprema e outros tribunais – o ministro Ari Pargendler tratará, a seguir, das inovações no Superior Tribunal de Justiça – recebem petições iniciais e recursais por meio eletrônico e já possuem tecnologia para operar todos os trâmites processuais integralmente na plataforma eletrônica.

Além da celeridade processual, o processamento eletrônico dos feitos constitui instrumento valioso para o controle estatístico e o gerenciamento dos processos judiciais na Corte Suprema. A informatização contribui para a ampliação do acesso dos cidadãos aos processos em tramitação no tribunal. Amplia, portanto, também a transparência da atuação do tribunal, bem como a publicidade e a credibilidade das decisões proferidas.

O CNJ tem exercido papel importante na difusão do processo eletrônico em todo o país. Desde a sua criação, o Conselho mantém grupos de trabalho para coordenar e impulsionar a adoção de instrumentos tecnológicos em todo o Judiciário brasileiro.

Desde 2006 vem sendo implantado o Processo Virtual Nacional (PROJUDI), sistema computadorizado que permite a tramitação totalmente eletrônica de processos judiciais através da internet. Desenvolvido pelo CNJ em software livre, o instrumento é distribuído gratuitamente a todos os órgãos do Judiciário interessados em adotar o processo eletrônico. Atualmente, já está em operação na maioria dos Estados da federação. 

O Judiciário brasileiro tem sido pioneiro na utilização da informática para aprimorar a qualidade dos serviços prestados aos cidadãos. Há menos de duas semanas, cento e trinta e cinco milhões (135.000.000) de brasileiros utilizaram urnas eletrônicas nas eleições presidenciais. Menos de três horas após o término da votação, o país já conhecia o resultado do pleito, de forma segura e inquestionável. 

Parafraseando John Donne, nenhum país é uma ilha. A construção de canais de diálogo pode ser definida com uma palavra: diplomacia. O Poder Judiciário brasileiro vem desenvolvendo forte atividade de diplomacia judicial, entendida como conjunto das interações e relações entre os sistemas jurídicos domésticos e estrangeiros, tendente a aprimorar o funcionamento da Justiça.

Estamos construindo sólidas relações com a Comissão de Veneza. Concretizaremos, em janeiro do próximo ano, o “II Congresso da Conferência Mundial de Justiça Constitucional”. Temos, a respeito, a fundada expectativa de reunir mais de duzentos (200) representantes de Cortes Constitucionais do mundo inteiro. Até agora, já recebemos a confirmação de quase cem (100) delegações.

Daqui a duas semanas, organizaremos, em Brasília, o “VIII Encontro das Cortes Supremas e Tribunais Constitucionais do Mercosul”. Em maio passado, criamos, em Lisboa, a Conferência das Jurisidições Constitucionais dos Países de Língua Portuguesa. No mesmo sentido, desenvolvemos, no âmbito do Mercosul, programas de intercâmbio de estudantes, servidores judiciários e magistrados. Trata-se de experiência que tem rendido resultados proveitosos para todos os envolvidos.

Estamos dispostos a ampliar nossos esforços de cooperação. Temos a possibilidade de desenvolver intercâmbio em áreas como informatização da Justiça, comunicação institucional (com a experiência inovadora da TV Justiça), resolução extrajudicial de conflitos, acesso à justiça, regras mínimas para tratamento de presos, etc. Contamos com a ajuda de instituições como o Banco Mundial para compartilhar experiências e receber novas lições.

*Apresentação feita no seminário “Brazil Judicial Reform”, promovido pelo Banco Mundial.

Washington, 10 de novembro de 2010



2 Comentários

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