15.02.12
A novela da Ficha Limpa
Novamente o Supremo Tribunal Federal se reunirá para decidir o futuro da Lei da Ficha Limpa, como ficou conhecida a Lei Complementar n° 135/10. A referida lei foi fruto de projeto de iniciativa popular, contando com amplo apelo da mídia e da população, e alterou sensivelmente a Lei Complementar n° 64/90 – a Lei das Inelegibilidades. E nesse clima, com forte pressão da imprensa, o Congresso Nacional finalmente conseguiu aprovar uma lei complementar deixando mais servas as restrições às candidaturas.
Uma nova lei de inelegibilidades, ou a reforma da Lei Complementar n° 64/90, então vigente, era reclamada pela Constituição da República desde a Emenda Constitucional de Revisão n° 04/94, que ampliou a autorização prevista no art. 14, §9° da Constituição, de forma a permitir que o legislador restringisse candidaturas para também “proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato”.
As mudanças trazidas pela LC n° 135/10 podem assim ser sintetizadas: 1) aumento e uniformização dos prazos de inelegibilidade já previstos na LC n° 64/10, que antes variavam entre três e cinco anos, passando todos para oito anos; 2) criação de novas causas de inelegibilidade buscando preservar a probidade administrativa e a observância da vida pregressa dos candidatos; 3) tentativa de resolver uma controvérsia constitucional quanto a causa de inelegibilidade mais comum nas eleições, decorrentes da rejeição de contas públicas, para afirmar que os chefes do Poder Executivo, quando ordenadores de despesas, seriam julgados diretamente pelos tribunais de contas, e não apenas pelas câmaras municipais; e 4) a dispensa da necessidade de trânsito em julgado para as condenações eleitorais, por atos de improbidade ou criminais, que possam importar em inelegibilidade.
Ainda durante a tramitação do processo legislativo, muito já se questionava sobre a constitucionalidade material desta última mudança, em face do princípio da presunção de inocência. O Supremo Tribunal Federal julgou durante as Eleições 2008 a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 144, quando afirmou que para gerar inelegibilidade como consequência de processos criminais, seria imprescindível a “necessidade, também em tal hipótese, de condenação irrecorrível” (acórdão da ADPF n° 144).
Além da questionável constitucionalidade, a Lei da Ficha Limpa precisa superar outro obstáculo. É que a LC n° 135/10, após a aprovação pelo Congresso Nacional, e sancionada pelo presidente da República, só foi publicada no dia 07 de junho de 2010, já às vésperas do período legal para a realização de convenções partidárias para escolha dos candidatos às Eleições 2010. Além da discussão em torno da sua constitucionalidade, passou-se a questionar se as novas regras seriam aplicáveis para as Eleições 2010.
O TSE foi instado a responder a duas consultas sobre a lei, mas que foram formuladas antes mesmo da sua sanção. Afirmou o TSE na primeira consulta, em 10 de junho de 2010, que a LC n° 135/2010 seria aplicada nas Eleições 2010, afastando a interpretação que levaria a incidência do art. 16 da Constituição. Caso entendesse incidente este dispositivo constitucional, as alterações na Lei de Inelegibilidades só seriam aplicáveis para as eleições que ocorressem um ano após a sua publicação. Além deste ponto, o TSE respondeu a Consulta n° 114709, afirmando que a “incidência da nova lei a casos pretéritos não diz respeito à retroatividade de norma eleitoral, mas, sim, à sua aplicação aos pedidos de registro de candidatura futuros, posteriores à entrada em vigor”, conforme voto do ministro Arnaldo Versiani acolhido por maioria pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Estava posta a controvérsia constitucional. Logo o STF seria convocado a se pronunciar. Os partidos políticos, acreditando que a lei teria a sua eficácia suspensa pelo STF, apostaram no lançamento de vários candidatos que teriam dificuldades com as suas candidaturas, se aplicadas as novas regras.
Ocorre que nenhum partido político ousou provocar o Supremo Tribunal Federal através de ação direta de inconstitucionalidade, ou mesmo de ação declaratória de constitucionalidade. Seria um suicídio político. E inexplicavelmente, também a Procuradoria Geral da República não provocou o STF, e o processo eleitoral ocorreu em clima de forte tensão política. Somente às vésperas das Eleições 2010, chegou ao Supremo o primeiro processo envolvendo a Lei da Ficha Limpa. Era o recurso interposto pelo candidato Joaquim Roriz, que disputava o governo do Distrito Federal, e teve a sua candidatura recusada pelo TSE por ter renunciado ao mandato de senador da República em 2007 para escapar do processo de cassação por quebra de decoro parlamentar.
O Supremo Tribunal Federal estava composto por apenas dez ministros, uma vez que ainda não tinha sido nomeado um substituto para a cadeira vaga com a aposentadoria do ministro Eros Grau. Resultado, após longas horas de debate, que se arrastou por duas sessões, o STF se viu num impasse, encerrando a sessão sem proclamar um resultado final: O dia em que o Supremo decidiu não decidir. Instalou-se a controvérsia: “Ficha Limpa no STF: empatou, desistiram e agora?”, foi o questionamento respondido pelo artigo escrito por Rodrigo Francelino Alves, da equipe Os Constitucionalistas. Já bem próximo da data das eleições, o candidato Joaquim Roriz renunciou a candidatura, tendo o seu partido escolhido como substituta a sua mulher, Weslian Roriz. Comunicado o fato ao STF, o Tribunal mandou o processo ao arquivo, e não resolveu antes do dia da votação a controvérsia sobre a aplicação da lei para as Eleições 2010 (acórdão do RE nº630.147).
Passado o dia da votação, mas antes que o novo ministro do STF fosse nomeado pelo presidente da República, mais um recurso versando sobre a Lei da Ficha Limpa foi chamado a julgamento no Plenário do STF. E a discussão seria rigorosamente a mesma do Caso Roriz, porque a candidatura fora barrada no TSE exatamente pelo mesmo dispositivo legal – a conhecida alínea “k” do art. 1°, I da Lei Complementar n° 64/90.
Era recorrente Jader Barbalho, deputado federal no exercício do mandato e pretenso candidato a senador pelo Pará. Ao tempo do julgamento, o recorrente já estava ciente de que se vencesse o recurso seria proclamado eleito, porque alcançou a segunda maior votação no seu Estado, quando em disputa duas vagas ao Senado Federal. Já não se discutia mais se o deputado poderia ser ou não candidato, porque em jogo era saber se ele poderia ou não ser proclamado eleito nas eleições que ocorreram dias antes. E após novo empate, que era óbvio, o Tribunal resolveu manter a decisão do TSE, negando o recurso do candidato. O jornalista Rodrigo Haidar, da revista eletrônica Consultor Jurídico, sintetizou: “Supremo, Ficha Limpa e uma decisão ficta” (acórdão do RE nº 631.102).
A questão não estava definida. Havia vários outros recursos pendentes de julgamento, e que envolviam a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, ou questões a respeito de sua aplicação. Somente após recuperar a sua composição completa, o STF se reuniu novamente para decidir sobre a controvérsia constitucional, definindo: “Lei da Ficha Limpa só pode ser aplicada em 2012” (acórdão do RE n° 633.703). O Tribunal não enfrentou os outros temas controvertidos sobre a Lei da Ficha Limpa.
E somente após afastada a aplicação da lei para as Eleições 2010, três ações de controle concentrado de constitucionalidade desembarcaram no Supremo Tribunal Federal envolvendo a Lei da Ficha Limpa: a) ADC n° 29, proposta pelo Partido Popular Socialista – PPS (inicial da ADC n° 29 e aditamento à ADI n° 29); b) ADC n° 30, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (inicial ADC n° 30); e c) ADI 4578 proposta pela Confederação Nacional das Profissões Liberais (inicial da ADI n° 4578). Em todas elas o relator, ministro Luiz Fux, adotou o “rito abreviado” do art. 12 da Lei n° 9.868/99, de forma que o Tribunal se pronunciasse direto em caráter definitivo sobre a lei.
Em parecer assinado pelo Procurador Geral da República, Roberto Gurgel, afirmou-se a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa e a necessária aplicação das novas causas de inelegibilidade inclusive alcançando fatos anteriores à lei (parecer do PGR nas ADC´s n° 29, 30 e na ADI 4578).
O ministro Luiz Fux, relator das três ações, liberou os processos para a inclusão em pauta de julgamento. No dia da sessão, o ministro Luiz Fux votou pela constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, fazendo duas pequenas ressalvas quanto a duas das novas causas, uma para explicitar em quais casos de renúncia o mandatário ficaria inelegível, e outra para declarar que dos prazos de inelegibilidade após o trânsito em julgado das decisões condenatórias, deveriam ser abatidos os prazos já cumpridos após as condenações por órgãos colegiados (voto do ministro Luiz Fux nas ADC´s n° 29 e 30 e na ADI n° 4578).
O ponto de destaque do voto do ministro Luiz Fux foi afastar a alegada presunção de inocência como fundamento para a inconstitucionalidade de disposições da Lei da Ficha Limpa, o que lhe rendeu duras críticas do professor Lênio Streck: “Fux erra ao definir presunção de inocência”.
Pois bem, como estava novamente incompleto o Supremo Tribunal Federal, desta vez em razão da prematura aposentadoria da ministra Ellen Gracie. Então, o ministro Joaquim Barbosa apressou-se em antecipar um pedido de vista, tudo a evitar que a questão novamente terminasse em um empate, e fosse o Tribunal obrigado a suspender o julgamento com mais um impasse. Mas, em razão dos constantes pedidos de licença por motivos de saúde pelo ministro Joaquim Barbosa, o processo retornou ao Plenário antes mesmo do STF estar completo, apenas para a leitura do seu voto vista. Neste voto, o ministro acompanhou o relator, mas afastou as referidas ressalvas. Em seguida, o ministro Luiz Fux fez um pequeno ajuste em seu voto, e um novo pedido de vista, desta vez pelo ministro Dias Toffoli, prorrogou o desfecho da questão para o momento posterior a posse da ministra Rosa Weber. Agora, já em sua composição completa, o processo foi novamente liberado para julgamento.
Este é o quadro presente da Lei da Ficha Limpa, devendo o Supremo Tribunal Federal anunciar, após o julgamento destas ações, se há na lei algum dispositivo inconstitucional. Em resumo, está em discussão se a lei se aplica a fatos anteriores a ela e se a dispensa do trânsito em julgado para fins de inelegibilidade viola o princípio da presunção de inocência.
A jornalista Mônica Bergamo, colunista do jornal Folha de São Paulo, publicou em sua coluna que o ministro Marco Aurélio pode votar a favor da Lei da Ficha Limpa. Se esse fato surpreendente se confirmar, a Lei da Ficha Limpa deverá ser declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal com folgada maioria de votos. Mesmo que isso não ocorra, a tendência é que o STF afaste as alegações de inconstitucionalidade contra a Lei da Ficha Limpa.
Fique por dentro do julgamento e veja as principais peças processuais das ações que devem ser julgadas pelo Supremo Tribunal Federal:
a) petição nicial da ADC n° 29 e o aditamento feito à ADI n° 29;
c) petição inicial da ADI n° 4578
d) parecer do PGR nas ADC´s n° 29, 30 e na ADI 4578
e) voto do ministro Luiz Fux nas ADC´s n° 29 e 30 e na ADI n° 4578
Assista as sessões anteriores e o início do julgamento
ADC´s 29 e 30 e ADI 4578 – Parte 01/04 (dia 10/11/2011)
ADC´s 29 e 30 e ADI 4578 – Parte 02/04 (dia 10/11/2011)
ADC´s 29 e 30 e ADI 4578 – Parte 03/04 (dia 10/11/2011)
ADC´s 29 e 30 e ADI 4578 – Parte 04/04 (dia 02/12/2011)
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RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO é advogado, conselheiro seccional e presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA. É membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), fundador e articulista do Os Constitucionalistas. Siga o autor no Twitter @rodlago e no Facebook.
Foto: Julien Lagarde/Flickr.
Muito boa, Rodrigo, essa retrospectiva. E muito completa, com links e vídeos. Parabéns! Estou ansiosa por essa decisão. Já faz tanto tempo que discutimos esse assunto, não é? Apesar de contra os termos da lei, acho que o pior no momento é a indefinição às vésperas de mais uma eleição. Que tenham sabedoria para decidir da forma mais conforme com a essência de nossa Constituição e da forma que melhor atenda ao verdadeiro espírito da democracia – não à ditadura da maioria.
[…] o Supremo Tribunal Federal conseguiu decidir sobre a sua constitucionalidade. Acabou a “A novela da Ficha Limpa”, título do texto publicado no blog Os Constitucionalistas, e onde consta sintética narrativa […]
[…] o Supremo Tribunal Federal conseguiu decidir sobre a sua constitucionalidade. Acabou a “A novela da Ficha Limpa”, título do texto publicado no blog Os Constitucionalistas, e onde consta sintética narrativa […]
[…] o Supremo Tribunal Federal conseguiu decidir sobre a sua constitucionalidade. Acabou a “A novela da Ficha Limpa”, título do texto publicado no blog Os Constitucionalistas, e onde consta sintética narrativa […]