23.12.09
A não dominação enquanto princípio da humanidade
POR SERGIO CRISPIM
“(…) hoje o Estado Constitucional e o Direito Internacional transformam-se em conjunto. O direito constitucional não começa onde cessa o Direito Internacional. Também é válido o contrário, ou seja, o Direito Internacional não termina onde começa o Direito Constitucional” (HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pp. 11 e 12)
O presente ensaio cuida de comentar a passagem acima, de autoria de Peter Häberle, acerca das relações íntimas entre o direito maior de um Estado nacional, que encontra assento no texto de sua Constituição, e o direito que regula as relações do Estado nacional com os demais. Imprescindível tentar compreender o tema sob enfoque mais amplo do que sistematicamente se costumou examinar de forma separada o direito constitucional do direito internacional. O que propõe o autor do texto é exatamente demonstrar que não se pode partir para uma análise estanque de um ou de outro ramo do direito, mas sim buscar entendê-los como formações de um sistema uno, mediante o qual se busca resolver aparentes antinomias, por um processo interpretativo que vai naturalmente se deslocar mais para dentro do regime constitucional de um Estado ou para fora dele, em respaldo às normas amplas que regem as relações internacionais.
A passagem acima tem encontrado nomenclaturas diversas como “interjusfundamentalidade” em Canotilho, quando os temas tratados em assuntos transnacionais encontram problemas de aplicação de direitos fundamentais que podem sofrer variações entre os diversos povos. Para Marcelo Neves o tema foi tratado sob uma ótima mais aprofundada do ponto de vista do respeito mútuo que deve haver entre as diversas inteligências das variadas culturas acerca do que é a vida e de como ela deve ser regulada, no que ele preferiu adotar a terminologia “transconstitucionalismo”. Em todas as hipóteses, o que há, em verdade, é uma maior aproximação com o tão criticado e esquecido direito natural, o que mostra uma volta às raízes humanas.
É imprescindível jamais perder de vista que o ser humano precisa muito mais de regras básicas e claras para melhor viver e conviver em um ambiente social, do que a crescente e poluída regulamentação que os Estados nacionais insistem em impor à população. Essas regras maiores em geral estão consagradas nos textos constitucionais, ou ainda fazem parte do senso comum de cada sociedade a respeito do que é o bem comum, com variações de acordo com a inteligência e a experiência costumeira de cada povo. A partir do respeito a essas regras básicas internas, quando da análise de questões transnacionais, onde se tem a oportunidade de voltar o olhar sobre as regras de hermenêutica, não para excluir aquelas primeiras ou para simplesmente se ignorar as últimas, mas sim para se buscar a convivência harmônica de institutos, com lastro no respeito aos costumes intestinos de cada povo e ainda com a visão da necessária e crescente inter-relação entre as diferentes nações, pode-se evitar dilemas que levem à imposição de isolamentos ou a declarações de guerra.
A partir desse raciocínio, pode-se buscar na interpretação dos diversos institutos de regulação interna dos Estados, em conjunto com a normatização externa, uma nova forma de encarar problemas internacionais que, em verdade, podem se transformar na própria solução, sem que se distancie de um senso comum e natural do que é o bem estar da humanidade, e sem que se falte com o respeito com o que cada povo entende como essencial aos seus propósitos.
Para tanto, contudo, é imprescindível que se abandonem dogmas tão presentes nas culturas latino-americanas e europeias, de modo geral, dos quais cito como exemplo o da prevalência do interesse público sobre o privado, onde razões de estado costumam prevalecer sobre o bem estar dos nacionais em nítida usurpação do verdadeiro interesse público que se casa com o texto de Häberle, quando prega melhor relacionamento entre o direito internacional e o constitucional de cada povo, na exata medida em que vai ao encontro de princípios naturais que se traduzem em maior harmonia na convivência dos seres humanos entre si por reconhecimento mútuo da necessidade de se respeitar enquanto seres vivos, e não de buscar a exploração e dominação que, em si mesmas, são formas perniciosas de relação entre pessoas e estados e entre estado e cidadãos.
Só assim, nesse contexto de abandono de soluções egoísticas que resultam em dominação e subjugo forçado nas relações existentes entre pessoas, entre estados e nacionais e, por fim, entre diversos estados é que se poderá construir um melhor ambiente de vida e de respeito às regras, criadas justamente para harmonizar as diversas questões que delas (das relações) nascem. Despretensiosamente, talvez aqui estejam sendo lançadas as bases para a criação do princípio da não dominação, em vista da sua imprescindibilidade a todos aqueles que co-habitam este planeta.
Contemplar a convivência harmônica e a soberania de cada país, esse é o novo desafio bem enfrentado por Härberle, Marcelo Neves, Canotilho e outros. A síntese feita pelo advogado Sergio Crispim está perfeita, e o termo foi bastante feliz: não dominação enquanto princípio. Esse é o norte para os diálogos entre os Estados Constitucionais.
Terão sempre meus aplausos as iniciativas estimulantes ao diálogo entre as várias ordens constitucionais. Parabéns Sérgio!