14.03.11

A mulher cibervítima

JANICE AGOSTINHO BARRETO ASCARI
Especial para Os Constitucionalistas
em homenagem ao Dia Internacional da Mulher

Ao longo dos anos, as mulheres têm sido as preferenciais vítimas de toda espécie de crimes. Tidas como ‘sexo frágil’ ou ‘sexo delicado’, crédulas, românticas e apaixonadas, por muitos séculos foram – e ainda são – envolvidas por parceiros ou familiares no cometimento de delitos ou como vítimas, em situações de violência e crueldade físicas tão repugnantes que às vezes nos fazem pensar em perder a fé na Humanidade.

Na Idade Média a punição da mulher era, geralmente, degradante. A intenção era expor a mulher perante a população, rebaixando-a aos olhos de seus semelhantes. A pena por um suposto adultério, uma agressão  ou mesmo por uma ‘fofoca’ poderia vir em forma de obrigatoriedade do uso público da mask of shame[1] (máscara da vergonha, de design sempre bizarro e humilhante) ou do neck-violin[2] (dispositivo de madeira com três orifícios para ser fechados à volta do  pescoço e das mãos).

A mulher sexualmente seduzida sofria dupla punição: a da sedução em si e a de ser presa ao pelourinho (pillory), para que toda a cidade visse o quanto ela havia ‘errado’.

No período contemporâneo, com o advento dos computadores e sua incrível rede mundial, a internet, o perfil de criminalidade transformou-se e expandiu-se. Acompanhando a rápida evolução da humanidade, os crimes modernos – assim como as ‘punições’ – também podem ser virtuais, cometidos por meio ou com auxílio de um computador, como resultado imediato do mundo globalizado e da evolução da comunicação entre os países.

Têm sido frequentes os casos de ciberbullying e outras formas de agressão social online, chamadas genericamente de ciberameaças.

Bullying, do inglês bully[3], é o termo que designa genericamente as agressões morais, verbais e não verbais, sofridas repetidamente por alguém, proferidas por uma ou mais pessoas, causando humilhação, dor psíquica ou física, sofrimento, desespero, sentimentos de rejeição e inferioridade.

O cyberbullying é uma das mais agressivas modalidades de crimes cometidos pela internet e até mesmo por mensagens de texto ou multimidia trocadas entre aparelhos de telefonia móvel. Casos recentes de agressões e até de suicídio entre jovens e adolescentes vítimas desse crime têm sido constantes nos noticiários e nos tribunais de todo o mundo.

Assume diferentes formas de cometimento, como simplesmente a de “queimar o filme” de alguém (flaming), assédio moral (harassment), assédio sexual (sexual harassment), ataques à honra e à imagem (denigration), apropriação de personalidade (impersonation – fazer-se passar por outra pessoa), postagem pública de mensagens ou fotos íntimas e pessoais constrangedoras, especialmente as de natureza sexual (outing), brincadeiras de mau gosto (tricking), exclusão do grupo virtual e/ou real (exclusion), perseguição (stalking), repetição de mensagens agressivas que provocam raiva (trolling). [4]

Além das ofensas pessoais e intimidação, o cyberbullying pode evoluir para ameaças reais de crimes contra a integridade pessoal ou contra a vida, racismo, crimes de ódio e de discriminação racial, social, de gênero ou religiosa (cyberthreats).[5]

São milhares de casos, porém, em que uma relação de amizade, confiança ou mesmo de amor acaba causando um imenso problema, a partir do momento em que fotografias e vídeos feitos na intimidade chegam à internet, tornando-se um pesadelo – e bem real.

As mulheres são especialmente vitimizadas por esse tipo de atitude sórdida e sem caráter. Garotas sonhadoras acedem aos pedidos do namorado para uma pose sensual, a foto é postada na internet e as meninas tomam imediatamente a fama de vadias e libertinas. Canalhas registram suas proezas sexuais, convencendo ou não a parceira sobre a filmagem caseira, e divulgam as imagens posteriormente, seja para vangloriar-se de sua performance ou como forma de vingança depois que o relacionamento acaba. É a baixeza moral tão bem retratada no filme “Sex, Lies and Videotape” protagonizado por James Spader em 1989.

Dois exemplos recentes e já de vergonhosa memória são a divulgação de dois vídeos, ambos registrando fatos ocorridos em cidades do meu Estado de São Paulo, envolvendo traição, agressão e cibervitimização feminina.

Num deles, uma mulher em Sorocaba chama à sua bela e confortável casa a melhor amiga. Em tensa conversa, gravada por uma câmera especialmente instalada, revela que descobriu o romance extraconjugal mantido pela amiga com seu marido, apresentando e-mails trocados entre eles durante cinco anos. Depois de algum tempo, a suposta civilidade da conversa dá lugar a gritos, xingamentos e agressões físicas leves, iniciadas pela mulher traída. Inconformada com a traição do marido com a ex-melhor amiga e comadre, a mulher posta na internet o vídeo do ‘acerto de contas’, que rapidamente foi reproduzido em massa, compartilhado e replicado para milhares de outros sites.

No outro exemplo, um delegado-corregedor e outros policiais subjugam e humilham covardemente uma colega, escrivã de Polícia em Parelheiros e acusada do crime de concussão[6], em diligência de busca e apreensão pessoal. O fato ocorreu em 2009, mas só em 2011 veio a conhecimento público por meio do vídeo, que rapidamente se espalhou pela internet revoltando as mulheres e nós, os integrantes do sistema de Justiça. Sob o argumento de revistar a escrivã para localizar dinheiro de propina que estaria escondido sob suas roupas íntimas, ela é lançada ao chão, algemada, imobilizada e despida por policiais homens, sendo deixada nua da cintura para baixo, num ato enojante e criminoso de arbitrariedade e violência. Mais abjeta ainda é a circunstância de a ‘diligência’ ter sido filmada pelos valentões da corregedoria para ser usada como ‘prova’ no inquérito administrativo.

Em ambos os casos, a exposição ridicularizante na internet caracteriza uma punição adicional a todas essas mulheres. Não importa se o motivo primário foi o fato de terem cometido um erro, um crime, um deslize. Foram violados vários princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o direito à inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem (art. 5º, X), a proibição de tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), a discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI), direito à integridade física e moral (art. 5º, XLIX).

Adaptadas à vida moderna, permanecem fortes as formas de exposição degradante e criminosa da mulher. Em vez da máscara da vergonha na praça pública, a mulher do século XXI é punida pelo escancaramento de sua intimidade na internet, a ágora dos novos tempos.

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JANICE AGOSTINHO BARRETO ASCARI é procuradora regional da República em São Paulo e ex-conselheira do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

NOTAS:

[1] “Criminal Justice Throught The Ages”, volume IV-b, Mittelalterliches Kriminalmuseum, Germany, 1993, p. 154.

[2] Ob. cit., p. 163.

[3] Pessoa que usa sua força ou poder para amedrontar ou causar dano psicológico em pessoas mais fracas: “person who uses their strenght or power to frighten or hurt weaker people”, cf. Oxford Advanced Learners Dictionary, Oxford University Press, 7ª ed., 2005, p. 197.

[4] Ver WILLARD, Nancy E., “Cyberbullying and cyberthreats: responding to the challenge of online social agression, threats, and distress”, Research Press, Estados Unidos, 2007.

[5] Sobre o tema, escrevi o singelo artigo “Cybercrimes e a atuação do Ministério Público Federal”, em “Direito e Processo Penal na Justiça Federal”, Ed. Atlas, 2011, p. 147 e ss.

[6] Artigo 316 do Código Penal: Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida. Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa.



Um comentário

  1. Ellison disse:

    muito legal, mostra a discriminação q sofre uma mulher e que esse tipo de discrimição com o passar dos tempos apenas mudou de forma, mas continua o mesmo.