1.03.10

A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida

 

POR LUÍS ROBERTO BARROSO*
E LETÍCIA DE CAMPOS VELHO MARTEL**

I. Introdução

E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,

E que o poente é belo e é bela a noite que fica.

Assim é e assim seja”.

Fernando Pessoa, O guardador de rebanhos

Um indivíduo não tem poder sobre o início da própria vida. Sua concepção e seu nascimento são frutos da vontade alheia. É o nascimento com vida que marca o início da condição humana efetiva, com a aquisição de personalidade jurídica e da aptidão para ter direitos e obrigações [1]. O direito à vida constitui o primeiro direito de qualquer pessoa, sendo tutelado em atos internacionais, na Constituição e no direito infraconstitucional. Ao lado do direito fundamental à vida, o Direito contemporâneo – também em atos internacionais e domésticos – tutela, igualmente, a dignidade da pessoa humana. O direito de todos e de cada um a uma vida digna é a grande causa da humanidade, a principal energia que move o processo civilizatório.

Um indivíduo tem poder sobre o fim da própria vida. A inevitabilidade da morte, que é inerente à condição humana, não interfere com a capacidade de alguém pretender antecipá-la. A legitimidade ou não dessa escolha envolve um universo de questões religiosas, morais e jurídicas. Existe um direito à morte, no tempo certo, a juízo do indivíduo? A ideia de dignidade humana, que acompanha a pessoa ao longo de toda sua vida, também pode ser determinante da hora da sua morte? Assim como há direito a uma vida digna, existiria direito a uma morte digna? O estudo que se segue procura enfrentar essas questões, que têm desafiado a Ética e o Direito pelos séculos afora.

A finitude da vida e a vulnerabilidade do corpo e da mente são signos da nossa humanidade, o destino comum que iguala a todos. Representam, a um só tempo, mistério e desafio. Mistério, pela incapacidade humana de compreender em plenitude o processo da existência. Desafio, pela ambição permanente de domar a morte e prolongar a sobrevivência. A ciência e a medicina expandiram os limites da vida em todo o mundo. Porém, o humano está para a morte. A mortalidade não tem cura. É nessa confluência entre a vida e a morte, entre o conhecimento e o desconhecido, que se originam muitos dos medos contemporâneos. Antes, temiam-se as doenças e a morte. Hoje, temem-se, também, o prolongamento da vida em agonia, a morte adiada, atrasada, mais sofrida. O poder humano sobre Tanatos [2].

As reflexões aqui desenvolvidas têm por objeto o processo de terminalidade da vida, inclusive e notadamente, em situações nas quais os avanços da ciência e da tecnologia podem produzir impactos adversos. Seu principal propósito é estudar a morte com intervenção à luz da dignidade da pessoa humana, com vistas a estabelecer alguns padrões básicos para as políticas públicas brasileiras sobre a matéria. Para tanto, investe-se um esforço inicial na uniformização da terminologia utilizada em relação à morte com intervenção. Na sequência, procura-se produzir uma densificação semântica do conceito de dignidade da pessoa humana. Por fim, são apresentados e debatidos alguns procedimentos destinados a promover a dignidade na morte, alternativos à eutanásia e ao suicídio assistido.

As ideias aqui desenvolvidas, como se verá, valorizam a autonomia individual como expressão da dignidade da pessoa humana e procuram justificar as escolhas esclarecidas feitas pelas pessoas. Nada obstante isso, a morte com intervenção, no presente trabalho, não foi confinada a um debate acerca da permissão ou proibição da eutanásia e do suicídio assistido. O refinamento da discussão permite que se busque consenso em torno de alternativas moralmente menos complexas, antes de se avançar para o espaço das escolhas excludentes. O fenômeno da medicalização da vida pode transformar a morte em um processo longo e sofrido. A preocupação que moveu os autores foi a de investigar possibilidades, compatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro, capazes de tornar o processo de morrer mais humano. Isso envolve minimizar a dor e, em certos casos, permitir que o desfecho não seja inutilmente prorrogado. Ainda um último registro introdutório: as considerações sobre a morte com intervenção, aqui lançadas, referem-se tão-somente aos casos de pessoas em estado terminal ou em estado vegetativo persistente.

II. Morte com intervenção: os conceitos essenciais [3]

Nos últimos anos, os estudiosos da bioética têm procurado realizar uma determinação léxica de alguns conceitos relacionados ao final da vida. Muitos fenômenos que eram englobados sob uma mesma denominação passam a ser identificados como categorias específicas. Este esforço de limpeza conceitual deveu-se à necessidade de enfrentar a intensa polissemia na matéria, que aumentava, pela incerteza da linguagem, as dificuldades inerentes a um debate já em si complexo. Como intuitivo, facilita a racionalidade da circulação de ideias que se faça a distinção entre situações que guardam entre si variações fáticas e éticas importantes. Em certos casos, as distinções são totalmente nítidas; em outros, bastante sutis. Ainda assim, é conveniente identificar, analiticamente, as seguintes categorias operacionais: a) eutanásia; b) ortotanásia; c) distanásia; d) tratamento fútil e obstinação terapêutica; e) cuidado paliativo; f) recusa de tratamento médico e limitação consentida de tratamento; g) retirada de suporte vital (RSV) e não-oferta de suporte vital (NSV); h) ordem de não-ressuscitação ou de não-reanimação (ONR); e i) suicídio assistido [4]. Algumas dessas categorias, como se verá …

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[1] Note-se, no entanto, que a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (Código Civil, art. 2º).

[2] Na mitologia grega, Tanatos era o Deus da morte, citado por Eurípedes na tragédia Alceste. V. SCHMIDT, Joêl. Dicionário de mitologia Greco-romana. Lisboa: Edições 70, 1994, p. 250. Em trabalho clássico, publicado em 1920, Sigmund Freud procura demonstrar a existência de dois instintos opostos existentes no ser humano: um, de preservação, ligado ao prazer (Eros) e outro de destruição, de ausência de energia, de morte (Tanatos). V. FREUD, Sigmund. Beyond the pleasure-principle. In: RICKMAN, John. A general selection from the works of Sigmund Freud. N. York: Doubleday, 1989.

[3] Os conceitos aqui apresentados são, com sutis alterações e revisões, os expostos em: MARTEL, Letícia de Campos Velho. Limitação de tratamento, cuidado paliativo, eutanásia e suicídio assistido: elementos para um diálogo sobre os reflexos jurídicos da categorização. In: BARROSO, Luís Roberto. A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 369-432.  

[4] Utiliza-se aqui o marco teórico hegemônico da bioética, identificado como o principialismo, proposto por Beauchamp e Childress a partir das noções de obrigações prima facie de Ross. Segundo Florência Luna e Arleen L. F. Salles, o principialismo situa-se na primeira onda de reflexão sobre a bioética, assim como os estudos kantianos e o utilitarismo. Além dos marcos teóricos da primeira onda, há os da segunda, que apresentam diversos enfoques para o exame dos problemas morais complexos que exsurgem no cenário da bioética, como a ética da virtude, o comunitarismo, o feminismo e a casuística. LUNA, Florência. SALLES, Arleen L. F. Bioética: Nuevas reflexiones sobre debates clásicos. México D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2008.

* Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor Visitante da Universidade de Brasília – UnB. Doutor e Livre-Docente pela UERJ. Mestre em Direito pela Yale Law School. Diretor-Geral da Revista de Direito do Estado.

** Doutoranda em Direito Público na UERJ. Mestra em Instituições Jurídico-Políticas pela UFSC. Professora licenciada da Universidade do Extremo Sul Catarinense e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Direitos Humanos e Cidadania (NUPEC/UNESC). Pós-Graduanda em Estudios Superiores en Bioética FLACSO/Argentina.

Nota do blog: artigo gentilmente cedido pelo professor Luís Roberto Barroso para publicação no blog Os Constitucionalistas.



2 Comentários

  1. Bárbara Martins Pereira disse:

    Dr. Luís Barroso e Ms. Letícia,
    Incrível a forma como vocês discutiram o tema, o qual sempre gera muita polêmica. Fiz uma iniciação no ano passado do mesmo tema e, após muita pesquisa e discussão do assunto, conluí que o direito à vida em contraposição com o princípio da dignidade da pessoa humana, este último deve prevalecer, haja vista que revela ao indivíduo e aos familiares um alívio e põe fim ao sofrimento e à agonia no que concerne a esse caso em que apresenta um sofrimento físico/psíquico indescritível.
    Adorei ler sobre o assunto novamente e ouvir uma outra opinião.
    Abraços,
    Bárbara Martins Pereira – Bauru – SP.

  2. Rodrigo Pires Ferreira Lago disse:

    A riqueza e a profundidade dos argumentos utilizados pelo Dr. Barroso e pela Ms. Martel demonstram a eterna necessidade de um contraditório. É sempre forte o ataque ao que sempre se denomina, leigamente, de eutanásia. E os argumentos muitas vezes sensibiliza, sem que se ouça o outro lado. Mas a questão precisa ser vista na ótica inversa:
    1) Será que, considerada a lei dos homens e até lei da Natureza, é lícito forjar a vida?
    2) Qual o limite imposto à intervenção médica para sustentar "vivo" quem há tempos já morreu, apenas prolongando o sofrimento?
    3) Se o Homem não admite que prolonguem o sofrimento dos animais irracionais, permitindo inclusive seja este abreviado (talvez um zoocídio piedoso), por que permite que o façam com os seus pares?
    4) É razoável impor ao enfermo, já "falecido", que permaneça juridicamente "vivo", às custas do sofrimento próprio e dos seus próximos?
    Não pretendo responder a estes questionamentos. Prefiro ler as respostas impressas no brilhante texto aqui publicado.
    Excelente!
    Rodrigo Lago