16.03.11

A Lei Maria da Penha e seus desafios jurídicos e sociológicos

KEILA CUNHA
Especial para Os Constitucionalistas
em homenagem ao Dia Internacional da Mulher

Em épocas remotas, as mulheres se sentavam na proa das canoas e os homens na popa. As mulheres caçavam e pescavam. Elas saíam das aldeias e voltavam quando podiam ou queriam. Os homens montaram as choças, preparavam a comida, mantinham acesas as fogueiras contra o frio, cuidavam dos filhos e curtiam as peles de abrigo. Assim era a vida entre os índios Onas e Yaganes, na Terra do Fogo, até que um dia os homens mataram as mulheres e puseram as máscaras que as mulheres tinham inventado para aterrorizá-los. Somente as meninas recém-nascidas se salvaram do extermínio. Enquanto elas cresciam, os assassinos lhes diziam e repetiam que servir aos homens era seu destino. Elas acreditaram. Também suas filhas e as filhas de suas filhas… – Mujeres , conto autoridade – Eduardo Galeano.

Introdução

O presente texto busca analisar a Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha – com base no princípio da igualdade e na questão da discriminação de gênero.

A Lei Maria da Penha decorre de medidas adotadas pelo Brasil a fim de cumprir tratados e convenções internacionais que objetivam eliminar as formas de discriminação da mulher.

Uma das medidas exigidas pelas convenções internacionais, do qual o Brasil é signatário, trata da inclusão de leis no ordenamento jurídico que buscam estabelecer uma igualdade substancial de gênero.

É de relevo destacar a luta da farmacêutica de Fortaleza, Maria da Penha Fernandes, que, diante da violência doméstica suportada e da ineficiência dos meios jurídicos que pudessem salvaguardar seus direitos e sua integridade física, levou seu caso aos organismos internacionais.

A atuação corajosa e persistente da farmacêutica na busca incessante pelos seus direitos levou a Organização dos Estados Americanos a responsabilizar o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação a violência doméstica, recomendando a tomada de medidas com base no caso Maria da Penha, redundando na criação da Lei 11.340/2006.

A Lei Maria da Penha criou instrumentos para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher originária das relações afetivas.

Os movimentos sociais e a ampla divulgação da lei encorajam a vítima mulher que passou a buscar proteção e amparo.

As reações positivas e negativas da sociedade brasileira, em relação aplicação da lei pelos tribunais, ampliam o debate sobre a questão da violência doméstica contra a mulher. A discussão ultrapassa os limites dos tribunais e chega à comunidade, que começa a identificar a desigualdade de gênero. O debate jurídico e sociológico da lei identifica que os valores sociais não acompanharam os avanços jurídicos.

A Lei Maria da Penha e o Princípio da Igualdade

A lei 11340/2006 – lei da violência doméstica e familiar contra a mulher, comumente chamada de Lei Maria da Penha, entrou em vigor em 22 de setembro de 2006. A referida lei veio coroar uma longa trajetória de busca pelos direitos fundamentais das mulheres.

Com a medida, o Brasil passa a ser o 18º país da América Latina a contar com uma lei específica para os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

A citada lei alterou artigos do Código Penal e Processo Penal, possibilitando, inclusive, a prisão preventiva e em flagrante dos agressores. Deixaram de existir as penas pecuniárias, em que os agressores eram condenados ao pagamento de multas ou cestas básicas.

Tipificou a violência doméstica e familiar contra a mulher como uma das formas de violação dos direitos humanos, além de caracterizar também a violência psicológica como forma de violência.

A nova legislação inova em medidas de proteção para a mulher que está em situação de violência ou corre risco de vida. As medidas deverão ser determinadas pelo juiz em até 48 horas e vão desde a saída do agressor do domicílio e a proibição de sua aproximação física junto à mulher agredida e filhos, até o direito da mulher de reaver seus bens e cancelar procurações conferidas ao agressor.

A lei também estabelece medidas de assistência social, como a inclusão da mulher em situação de risco no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal.

Assim, a Lei Maria da Penha passou a ser efetivamente aplicada e as mulheres, antes submetidas à violência, passaram a clamar por seus direitos buscando a tutela judicial, rompendo com o silêncio.

As interpretações judiciais ampliaram o campo de atuação da lei, que antes se restringia ao âmbito do casal, e passou a ser aplicável a vários tipos de relacionamentos onde a vítima é subjugada pela condição do gênero feminino: mãe e filha; namorados; irmãos; pai e filha, etc.

De outro lado, pelo afastamento da aplicação da Lei Maria da Penha, várias decisões judiciais passaram a questionar a compatibilidade constitucional da referida lei frente ao princípio constitucional da igualdade de gêneros, dentre outros.

Nesse contexto, a fim de consolidar a lei retirando-a da esfera de possível questionamento de inconstitucionalidade, a República Federativa do Brasil interpôs no Supremo Tribunal Federal Ação Declaratória de Constitucionalidade que tem por objeto a Lei 11.340/06 (ADC n. 19), Relator Min. Marco Aurélio, ainda em trâmite.

O pedido de liminar foi indeferido e, no mérito, se postula a constitucionalidade da lei, especialmente quanto aos artigos 1º, 33 e 41 da Lei 11.340/2006.

A ação justifica-se na contrariedade dos Tribunais no tocante à constitucionalidade da lei quanto à violação do princípio da isonomia de gêneros (TJMS), ou a incompetência da lei para legislar a respeito de organização judiciária dos estados (TJRJ), além da competência da Lei 9.099/95 para os casos de violência doméstica (TJRS).(3)

A Ordem dos Advogados do Brasil atua como amicus curiae.

A insurgência contra a lei, no tocante à igualdade de gêneros, vem justificada na alegação de que a Lei Maria da Penha, ao assegurar uma posição de proteção a mulher, tornou-se inconstitucional, pois não alcançou esse direito ao homem, passando a mulher a se sobrepor em direitos ao cônjuge ou companheiro na relação, gerando desigualdade.

Embora algumas decisões se apresentem polêmicas quanto às fundamentações ideológicas e culturais, devido à diversidade cultural do país, são uniformes quanto a fundamentação jurídica – violação do princípio da igualdade.

O art. 5º, inc. I da Constituição Federal dispõe : Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

Contudo, apesar da igualdade formal estampada no referido artigo, o próprio texto da Constituição Federal prevê normas que concedem tratamento diferenciado entre homens e mulheres. Como a proteção ao mercado de trabalho feminino, mediante incentivos específicos (inciso XX, art. 7º), bem como lhe é assegurada a aposentadoria com 60 anos, enquanto que, para os homens, a idade limite é de 65 (art. 202).

A igualdade formal ali disposta pressupõe a coexistência com a igualdade material – tratamento igual aos iguais e tratamento desigual aos desiguais – direito a redução das diferenças sociais.

O princípio da igualdade perante a lei é de respeitar-se , como regra geral; não cabe invocar-se tal princípio onde a constituição mesmo, explicita ou implicitamente, permite a desigualdade. (5)

Ademais, a igualdade esta ligada a idéia de justiça, se não existe a igualdade entre as partes não há que se falar em justo.

Atualmente o discurso de igualdade formal deve ser substituído pelo discurso de desigualdade, repensando que desigualdade não significa necessariamente a hegemonia de um sobre o outro, mas igualar as diferenças.(6)

Também neste sentido a recomendação do CEDAW – Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher :

Passar da igualdade “formal” para a “substantiva”: Muitos sistemas jurídicos no mundo inteiro continuam a atuar com uma definição antiga da discriminação, baseada no que se conhece como igualdade ‘formal’. Isso significa que se considera que a discriminação ocorre apenas quando a lei destaca que um determinado grupo não pode ser objeto de tratamento inferior. Assim, quando as mesmas leis são aplicadas a todos os grupos, considera-se que a igualdade foi alcançada. Em contraste, a igualdade “substantiva”, como definida pela CEDAW, requer uma abordagem centrada nos resultados e não meramente em processos iguais. (2) Capítulo Justiça.

Assim, fica subentendido que essa igualdade formal só será atingida através de discriminações positivas que visem sanar a posição de vulnerabilidade do gênero feminino.

A Desigualdade de Gênero

A igualdade de gênero está prevista na Carta das Nações Unidas quando expressamente declara a iniciativa de alcançar “o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de… sexo” como um objetivo da Organização das Nações Unidas. (2)

A Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), do qual o Brasil é signatário, define a discriminação de gênero:

Art. 1º – Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.(1)

Por gênero entende-se a atribuição cultural feita ao sexo masculino e feminino. O termo é utilizado para mostrar que as características, traços, comportamentos e papeis de homens e mulheres não são produtos naturais da biologia, mas o resultado de uma construção de uma estrutura social que tem origem no desenvolvimento da cultura humana. Assim, o gênero apresenta-se como instrumento de análise relacional e não identitário, trabalhando a questão da mulher dentro das relações sociais e com o sexo oposto.(4)

O secretário-geral das Nações Unidas afirmou que o principal indicador de uma responsabilização que tenha em conta o gênero será a eliminação da violência contra as mulheres.(2)

A Lei 11.340/2006 é mais um passo para possibilitar a igualdade efetiva de gênero, como dito em seu preâmbulo, e não pode ser tratada como um fator discriminante em relação ao homem. Ademais, o homem sempre foi o modelo e a mulher sempre trilhou o caminho da busca pela igualdade.

Segundo Rodrigo Pereira Cunha, os fatos geradores do apartheid feminino, hoje menos acentuados em algumas sociedades, estão na essência da própria cultura. Os ordenamentos jurídicos são também tradutores destas culturas. Portanto, apesar da proclamação da igualdade pelos organismos internacionais e pelas constituições democráticas do fim deste século, não está dissolvida a desigualdade de direitos dos gêneros. A mulher continua sendo objeto da igualdade, enquanto o homem é o sujeito e o paradigma deste pretenso sistema de igualdade. Isto por si só já é um paradoxo para o qual Direito ainda não tem resposta; qualquer tentativa de normatização sobre esta igualdade terá como paradigma um discurso que é masculino.(7)

A referida lei possibilita o amparo e a proteção da mulher submetida à violência no ambiente doméstico ou em suas relações, rompe com o silêncio deste tipo de violência.

A sua efetiva aplicação pelos Tribunais pátrios trouxe a sociedade questões antes restritas ao ambiente privado.

Como escreveu Eleanor Roosevelt, ativista dos direitos humanos:

Afinal, onde começam os direitos humanos universais? Em pequenos locais, perto de casa, em locais tão pequenos que não se pode vê-los em nenhum mapa do mundo… Se esses direitos não significarem nada nesses locais, pouco significado terão em qualquer outro local. Sem uma ação coordenada dos cidadãos para defendê-los na esfera doméstica, poderemos procurar em vão pelo progresso no mundo inteiro.(2)

Em outras palavras, a justiça começa em casa.

O papel do sistema jurídico que abrange Judiciário, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil é fundamental na discussão das questões de gênero.

A atuação destes órgãos na proteção da mulher vulnerável pela violência doméstica deixa claro que as relações no ambiente familiar não estão fora do alcance da justiça. A máxima “em briga de marido e mulher não se mete a colher” cai por terra.

Com a efetividade da lei afloram na sociedade discussões sobre o papel da mulher e sua discriminação. O debate é crescente e temas como discriminação de gênero, antes restrito a ativistas feministas, passaram a ser discutidos pela sociedade e identificados nas relações interpessoais.

A conscientização a respeito da discriminação de gênero se traduz no questionamento dos costumes enraizados na sociedade brasileira, que fazem parte de uma construção ideológica voltada para a discriminação e subordinação da mulher.

Conclusão

A Lei Maria da Penha, além de coibir e reprimir a violência doméstica contra a mulher, trouxe a realidade da discriminação de gênero para ser questionada e dissolvida pela sociedade. Obviamente, essa questão ultrapassa o âmbito jurídico.

Com o objetivo de responsabilizar o agressor, amparar e proteger a vítima mulher estabelece mecanismos para combate a violência doméstica e aponta novos instrumentos de políticas públicas que devem ser implementados. A previsão de centros multidisciplinares de atendimento à mulher denota a necessidade diferenciada dessa vítima, que necessita de encorajamento para buscar seus direitos.

Como define Marilena Chauí , a violência contra a mulher consiste na maneira pela qual os homens exercem controle sobre as mulheres castigando-as e socializando-as dentro de uma categoria subordinada.

Nesse contexto cultural, a busca por proteção e auxílio significa uma luta interna para a vítima de violência doméstica, que no seu ambiente privado é submetida a todo tipo de violência: física, moral ou psicológica. A mulher encontra dificuldade em se libertar, pois mantém uma relação de dependência econômica, emocional ou social com o agressor.

A atuação do sistema jurídico, aliado ao aparato administrativo de apoio a vítima mulher de violência doméstica, reflete positivamente na questão do papel da mulher na sociedade.

De fato, o impacto das sentenças positivas não deve ser menosprezado, ao revés, conscientizam a comunidade, identificam as discriminações de gênero, encorajam a vítima da violência doméstica.

As reações negativas a aplicação da lei apenas demonstram que o Direito, em constante evolução, não foi acompanhado pelos valores sociais, o que tornam imprescindíveis campanhas de sensibilização do público.

A finalidade da lei é clara, coibir e reprimir a violência doméstica contra a mulher, responsabilizando os agressores visando combater a discriminação de gênero, esta última o grande desafio para a evolução da sociedade num contexto de igualdade.

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KEILA CUNHA é advogada, docente e especialista em Direito Público: Constitucional e Administrativo. É membro das Comissões temáticas de Estudos Constitucionais, Penal e Processo Penal da OAB/MT.

Bibliografia:

(1) Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW). Dec. nº 4.377, de 13 de setembro de 2002. www.cnj.jus.br. Acesso em fevereiro de 2011.

(2) Fundo de Desenvolvimento da Mulher para as Nações Unidas(UNIFEM). Relatório Progresso das mulheres no mundo 2008/2009 – Quem responde as mulheres? Gênero e responsabilização. Site:www.unifem.org/progres/2008.

(3) ADC 19 – AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. www.stf.jus.br. Acesso em fevereiro 2011.

(4) FERREIRA, Jeffersson Drezett. Estudo de fatores relacionados com a violência sexual contra crianças adolescentes e mulheres adultas. Centro de referência da saúde da mulher e nutrição, alimentação e desenvolvimento infantil. São Paulo, abril de 2000.

(5) PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, apud , SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição.São Paulo, Malheiros Editores Ltda,2005, P. 74

(6) SOUZA, Luiz Antônio de, e KUMPEL, Vitor Frederico. Violência Doméstica e Familiar contra a mulher. São Paulo, Editora Método, 2008.

(7) PEREIRA, Rodrigo Da Cunha. A desigualdade dos gêneros, o declínio do patriarcalismo e as discriminações positivas. In: Congresso Brasileiro de Direito de família, repensando o Direito de família, 1999, Belo Horizonte. Del Rey, 1999, p 161-173.



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