Por Virgílio Afonso da Silva
4.05.13

A emenda e o Supremo

 

Na semana passada, todos os holofotes estavam apontados para a Câmara dos Deputados, que discutia uma proposta de emenda constitucional (PEC) que, segundo muitos, é flagrantemente inconstitucional, por ferir a separação de poderes. Contudo, a decisão mais inquietante, em vários sentidos, inclusive em relação à própria separação de poderes, estava sendo tomada no prédio ao lado, no Supremo Tribunal Federal (STF).

No dia seguinte, nas primeiras páginas dos jornais, o grande vilão, como sempre, foi o poder Legislativo. A PEC analisada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara é polêmica, com certeza. Sua constitucionalidade é questionável, não há dúvidas. Mas, do ponto de vista jurídico, da separação de poderes e do direito comparado, a decisão do STF, que bloqueou o debate no Senado sobre as novas regras de acesso dos partidos políticos à TV e ao fundo partidário, é muito mais chocante.

O ponto mais polêmico da PEC é a exigência de que uma decisão do STF que declare a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional seja analisada pelo Congresso Nacional, o qual, se a ela se opuser, deverá enviar o caso a consulta popular.

É quase um consenso entre juristas que um tribunal constitucional ou uma suprema corte, como é o caso do STF, deve ter a última palavra na interpretação da constituição e na análise da compatibilidade das leis ordinárias com a constituição. Mas muito menos consensual é a extensão desse raciocínio para o caso das emendas constitucionais. Nos EUA, por exemplo, emendas à constituição não são controladas pelo Judiciário. A ideia é simples: se a própria constituição é alterada, não cabe à Suprema Corte analisar se o novo texto é compatível com o texto antigo. Isso quem decide é povo, por meio de seus representantes. Mesmo no caso do controle de leis ordinárias, há exemplos que relativizam o “quase consenso” mencionado acima, como é o caso do Canadá, cujo Parlamento não apenas pode anular uma decisão contrária da Suprema Corte, como também imunizar uma lei por determinado período de tempo contra novas decisões do Judiciário.

Não há dúvidas de que o caso brasileiro é diferente. A constituição brasileira possui normas que não podem ser alteradas nem mesmo por emendas constitucionais, as chamadas cláusulas pétreas. Mas não me parece que seja necessário entrar nesse complexo debate de direito constitucional, já que o intuito não é defender a decisão da CCJ, cuja conveniência e oportunidade são discutíveis.

Neste momento em que o Legislativo passa por uma séria crise de legitimidade, não parece ser a hora de tentar recuperá-la da forma como se tentou. Tampouco quero defender a constitucionalidade da PEC no seu todo. O que pretendi até aqui foi apenas apontar que, embora extremamente polêmica, a proposta é menos singular do que muitos pretenderam fazer crer.

Já a decisão do ministro Gilmar Mendes, tomada na mesma data e que mereceu muito menos atenção da imprensa, é algo que parece não ter paralelo na história do STF e na experiência internacional. Ao bloquear o debate sobre as novas regras partidárias, Gilmar Mendes simplesmente decidiu que o Senado não poderia deliberar sobre um projeto de lei porque ele, Gilmar Mendes, não concorda com o teor do projeto. Em termos muito simples, foi isso o que aconteceu. Embora em sua decisão ele procure mostrar que o STF tem o dever de zelar pelo “devido processo legislativo”, sua decisão não tem nada a ver com essa questão. Os precedentes do STF e as obras de autores brasileiros e estrangeiros que o ministro cita não têm relação com o que ele de fato decidiu. Sua decisão foi, na verdade, sobre a questão de fundo, não sobre o procedimento. Gilmar Mendes não conseguiu apontar absolutamente nenhum problema procedimental, nenhum desrespeito ao processo legislativo por parte do Senado. O máximo que ele conseguiu foi afirmar que o processo teria sido muito rápido e aparentemente casuístico. Mas, desde que respeitadas as regras do processo legislativo, o quão rápido um projeto é analisado é uma questão política, não jurídica. Não cabe ao STF ditar o ritmo do processo legislativo.

Sua decisão apoia-se em uma única e singela ideia, que pode ser resumida pelo argumento “se o projeto for aprovado, ele será inconstitucional pelas razões a, b e c”. Ora, não existe no Brasil, e em quase nenhum lugar do mundo, controle prévio de constitucionalidade feito pelo Judiciário. Mesmo nos lugares onde há esse controle prévio – como na França – ele jamais ocorre dessa forma. Na França, o Conselho Constitucional pode analisar a constitucionalidade de uma lei antes de ela entrar em vigor, mas nunca impedir o próprio debate. Uma decisão nesse sentido, de impedir o próprio debate, é simplesmente autoritária e sem paralelos na história do STF e de tribunais semelhantes em países democráticos.

Assim, ao contrário do que se noticiou na imprensa, a decisão do STF não é uma ingerência “em escala incomparavelmente menor” do que a decisão da CCJ. É justamente o oposto. Além das razões que já mencionei antes, a decisão do STF é mais alarmante também porque produz efeitos concretos e imediatos, ao contrário da decisão da CCJ, que é apenas um passo inicial de um longo processo de debates que pode, eventualmente, não terminar em nada. E também porque, se não for revista, abre caminho para que o STF possa bloquear qualquer debate no Legislativo sempre que não gostar do que está sendo discutido. E a comprovação de que essa não é uma mera suposição veio mais rápido do que se imaginava: dois dias depois, em outra decisão sem precedentes, o ministro Dias Toffoli exigiu da Câmara dos Deputados explicações acerca do que estava sendo discutido na CCJ, como se a Câmara devesse alguma satisfação nesse sentido. É no mínimo irônico que, na mesma semana em que acusa a Câmara de desrespeitar a separação de poderes, o STF tenha tomado duas decisões que afrontaram esse princípio de forma tão inequívoca. A declaração de Carlos Velloso, um ex-ministro do STF que prima pela cautela e cordialidade, não poderia ter sido mais ilustrativa da gravidade da decisão do ministro Gilmar Mendes: “No meu tempo de Supremo, eu nunca vi nada igual”!

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VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA é professor titular de Direito Constitucional na faculdade de Direito da USP.

Artigo publicado originalmente no Valor Econômico, edição 03/05/2013.

Foto: ‘PixelPlacebo’.



4 Comentários

  1. Vanice Lírio do Valle disse:

    Precisa a análise de contexto… Secundando todas as ressalvas em relação à PEC 33, não se pode deixar de concordar com o Prof. Virgílio Afonso quando aponta as fragilidades do outro lado da polêmica.

    Observem que seja qual for a causa da suposta violação ao “devido processo legislativo” – casuísmo, excessiva celeridade, possível incompatibilidade com a decisão anterior do STF -; todas essas situações conduziriam a um mesmo resultado, a saber, o vício de constitucionalidade, que é igualmente grave e merecedor da reprovação pelo STF, ainda que a lei tivesse demorado 10 anos em processamento, ou atingisse a um segmento minoritário menos representativo do que os partidos de oposição. Significa dizer que esses indigitados “atributos” da decisão legislativa em andamento não se revelavam razão suficiente para autorizar nesse episódio, a decisão “preventiva” que acendeu a polêmica.

    A par disso, o processo legislativo não se tinha encerrado – o que significa dizer que a correção da decisão legislativa seguia em tese, possível. Parece paradoxal presumir que o Legislativo – sujeito ao dever de proteção à constituição tanto quanto o STF – vá decidir contra ela, e em nome dessa presunção, que milita contra a sistemática constitucional, admitir o controle preventivo de constitucionalidade, como apontado pelo Prof. Virgílio Afonso. A intervenção no momento em que se deu, e pelos fundamentos que se deu traduz efetivamente, controle prévio e preventivo da atividade parlamentar pelo Judiciário… Prévio, porque antes da vigência, e preventivo porque antes mesmo do delineamento definitivo da decisão pelo Parlamento.

    Em resumo, as razões apontadas para justificar esse controle prévio e preventivo não se harmonizam com o papel constitucional deferido à Corte. Mais ainda, decididas em medida liminar, afastado o princípio da colegialidade, transpõe de maneira ainda mais evidente os limites do personalismo/subjetivismo… Tenhamos em conta que esse mesmo resultado – suspensão da norma – se alcançaria pela via da ADIN, no dia mesmo de sua promulgação, se fosse esse o caso, sem tanto ineditismo no provimento jurisidicional.

    Importante à essa altura, uma avaliação ponderada, especialmente da academia; que aponte os excessos de ambos os lados. Não podemos nós, os teóricos do direito, servir de massa de manobra para um grupo ou o outro. Nesse tema, a questão não é de tomar partido (só p’ra ficar no clima) entre Legislativo e Judiciário, O jogo não é binário; se vc está com ele está contra mim. Legislativo e Judiciário são braços especializados de um poder que é uno, como aprendemos nos bancos da faculdade. E nesse conflito, entre o Legislativo e o Judiciário, eu fico com a democracia – que exige de um e outro poder a construção do jogo de relações além de equilibrado e harmônico, transparente e ponderado.

  2. Pedro Crespo disse:

    Muito bom! até que enfim alguém sensato! Claro que não se está defendendo o Poder Legislativo contra o Poder Judiciário. A questão é que os JURISTOCRATAS não conseguem enxergar que também o STF comete erros e não está acima do bem e do mal.

  3. Jorge Cauder disse:

    E o MS 22.503-MC, julgado em 1996 pelo Supremo?
    Parece que já houve coisa parecida…